São Paulo, sábado, 11 de maio de 2002

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Um avatar do político

Transgressão e Modernidade
Raúl Antelo
Ed. da Universidade Estadual de Ponta Grossa
(Tel. 0/xx/42/220-3308)
276 págs., R$ 32,00

BEATRIZ RESENDE

"Transgressão e Modernidade" é um conjunto de ensaios provocantes que examinam diferentes temas da cultura e da literatura contemporâneas, no Brasil e na América Latina. Dois aspectos da realidade que vivemos neste momento o tornam especialmente oportuno. O primeiro é a "latino-americanização" da Argentina. A recente crise argentina trouxe à tona o debate sobre a fragilidade das relações sociais e econômicas na América Latina e aproximou todos na constatação da crescente debilidade da vida política e da falta que fazem, às democracias que sucederam aos regimes autoritários, maiores reformas sociais e econômicas. A crise, de que parecem não poder escapar, em maior ou menor escala, todos os países do continente, evidencia que estamos tão perto uns dos outros quanto distantes das potências imperiais.
A segunda questão diz respeito, especialmente, ao debate acadêmico que hoje se trava, tomando o tema do latino-americanismo como vedete.
Néstor García Canclini tratou das diferentes visões e possibilidades de análise com certo humor e ironia num ensaio chamado "La Epica de la Globalización y el Melodrama de la Interculturalidad", criando, inclusive, o personagem do "especialista em estudos culturais, que ensina cultura latino-americana em uma bem equipada universidade americana", em debate com um antropólogo latino-americano.
Alberto Moreiras, em "A Exaustão da Diferença" (ed. da UFMG), equacionou bem o dilema entre os latino-americanistas de lá e os de cá -latino-americanistas latino-americanos- e as críticas mútuas, envolvendo acusações de expropriação, fetichização do real ou fraca relação crítica com o presente.
É aí, mas não só por isso, que Raúl Antelo aparece falando de um "locus" geopolítico e intelectual privilegiado. Argentino, vivendo e ensinando há muito no Brasil, é raríssimo exemplo de um teórico que não tem, nem com a cultura nem com a língua desses países, uma relação hierarquizada. Não guarda, em relação a nenhuma delas, uma relação "minor" ou "mayor". Por isso pode colocar, com propriedade, as poéticas de Borges e Murilo Mendes lado a lado, confrontar Euclides da Cunha com Sarmiento e questionar as múltiplas etapas da modernização por que passaram essas culturas.
Um repertório que se utiliza do que me parece o melhor da psicanálise, aquele discurso que relê Freud conhecendo o aparato conceitual lacaniano e que encontra suas bases num conhecimento filológico que nada tem a ver com a disciplina vetusta que foi vigente entre nós, brasileiros -mas que é antes tributária da tradição que se mantém forte entre pensadores italianos como Giorgio Agamben- , habilita-o a ocupar esse lugar plural, livrando-o dos perigos que costumam atingir os que se mexem entre fronteiras.
Surgem, então, debates sobre o ciclo da modernidade, visto como o "período regulado pela noção de arte como nome próprio", a modernidade tardia (termo de que se utiliza com frequência), a institucionalização do novo, para chegar, por incrível que pareça, tomando Moscou como mote, às múltiplas possibilidades de "ler a tradição" ou "reabrir o contínuo".
Em determinado momento, Raúl Antelo se pergunta, discretamente, entre parênteses, se "afinal, o crítico lê ou é lido" e formula a chave de sua própria intenção. Sim, o crítico lê, mas não lê para ninguém, que deste tipo de crítico os leitores não precisam, lê com ou às vezes contra. Mas, sobretudo, exibe a consciência de que é lido. Ou seja, de que ser crítico é ser original, reconhecer suas perplexidades e delas criar seus discursos de interpretação, especialmente quando se trata de questões que envolvem "um sistema complexo, de elementos contraditórios, que resistem à síntese, atravessam nosso corpo e tangenciam, enfim, a linguagem".
Em suas "Desleituras Criativas", passa pelos textos híbridos de Gombrowicz, "europeu despaisado" ("depaysé") que disseca o "ethos sexual latino-americano", pela poesia de Alejandra Pizarnik, por Mário de Andrade e Oswald e pelos favoritos Murilo Mendes e Jorge Luis Borges.
A meu ver, porém, é quando o conceito de transgressão -um "avatar do político"- é acionado que surgem os melhores momentos deste conjunto de estudos. Dentre eles, gostaria de destacar "Relatos de Reclusão: Entre Instinto e Instituição", um estudo sobre diferença e emancipação no romance brasileiro, discussão especialmente estimulante da construção de subjetividades no modernismo brasileiro, a partir de marcas de gênero relacionadas às marcas étnicas. Os textos, ou pretextos, são os romances "Bom-Crioulo", de Adolfo Caminha, e "O Ateneu", de Raul Pompéia. O segundo é visto como "romance de passagem", em vez do tradicional "romance de formação", enquanto, no primeiro, o "lugar de construção da identidade" é, na verdade, lugar de trabalho forçado. Mesmo agrupados como relatos de exclusão, os dois diferem quando "Bom-Crioulo" se alinha pelo instinto e "O Ateneu" postula a instituição.
Finalmente, ainda neste ensaio, termina voltando à saudável obsessão pelo modernismo e identificando um "modernismo diurno", desejado por Mário de Andrade, que se oporia àquele que coloca a literatura no lugar do segredo (o porvir, o desastre), da tara (o dom), do excesso e da exaustão. Ou seja, sem falar em transgressão não se pode falar em representação de subjetividades, como não se pode falar em condição moderna ou pós-moderna e não se pode falar em arte. Tomara que a consciência de tal necessidade de transgressão também chegue aos ouvidos de nossos obedientes dirigentes. Talvez, então, possamos salvar nossas jovens democracias.


Beatriz Resende é professora de literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro.



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