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Nossa vidinha
Pequenas Criaturas
Rubem Fonseca
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/3167-0801)
288 págs., R$ 28,00
ARTHUR NESTROVSKI
E se alguém fizesse a pergunta óbvia: afinal, para
quem falam todas essas criaturas? E por quê? Toda
essa multidão de grandes e pequenos neuróticos, pequenos e grandes farsantes, às voltas com suas próprias farsas e as dos outros, sofrendo males de amor
e ódio, em ritmo de comédia e tragédia, no labirinto
de vozes desse novo livro de contos de Rubem Fonseca -toda essa gente que não cansa de falar, sem
vergonha de confessar as piores coisas... mas confessar para quem?
"O melhor ficcionista não passa de um ventríloco",
diz um candidato a autor (em "O Bordado"), depois
de ter o nome completo da namorada, Maria Auxiliadora, tatuado no pênis, enquanto espera sua poesia ficar dura. E o leitor-confidente logo desconfia do
ventriloquismo, já que nenhum tatuador Denílson
da vida e nenhuma Maria ciumenta diriam "pênis"
quando o assunto é "pau". E se o ficcionista tem ouvido para fazer duas velhinhas implicantes refletirem sobre as diferenças entre a ofensiva palavra "artrite" e a solidária "artrose" (em "Virtudes Teologais"), fica claro que as sutilezas de registro quebrado não podem ser gratuitas.
Nem sempre funciona, mas esse estilo transversal,
que retalha um discurso por outro -seja no plano
da linguagem, seja no das personagens e acontecimentos-, é característico de Rubem Fonseca, que
embaralha também suas referências literárias, com o
mesmo sentido estratégico. Assim, os terrores do enclausuramento, por exemplo, obsessão clássica de
Edgar Allan Poe, ressurgem agora (em "Escuridão e
Lucidez") num contexto que traz à luz toda a sexy
noite escura da alma. E aludindo ainda, quem sabe,
às sedutoras teorias da leitura de Paul de Man, autor
de "Blindness and Insight" (1971), onde se lê o não
menos clássico vaticínio de que "a interpretação não
é senão a possibilidade de erro".
A frase poderia servir de epígrafe para "Pequenas
Criaturas"; não fosse o fato de o livro já ter outra melhor, extraída da "Vida de Samuel Johnson" (1791),
de Boswell: "Nada é pequeno demais para uma criatura tão pequena quanto o homem. É mediante o estudo das pequenas coisas que alcançamos a grande
arte de termos o mínimo de desgraças e o máximo
de felicidade possíveis".
Fazer o grande dr. Johnson citar "A Grande Arte"
do dr. Fonseca, com 200 anos de antecipação, não
tem nada de arrogância nem de "frisson" acadêmico: é só uma entre tantas pequenas graças de um
contista que domina suas ironias. Todas essas figuras são como um tabuleiro ou um teclado, onde ele
vem improvisar, com humores diversos e sem preocupação demais, algumas tramas da nossa "vidinha"
(como diz outro candidato a Rubem Fonseca, no livro).
Nem toda trama é um trauma; mas "todo trauma é
um drama e vice-versa". A grande metáfora do livro,
se não chega a ser o teatro do mundo, é pelo menos o
teatro do Brasil (ou do Rio de Janeiro, que não é a
mesma coisa, mas serve de emblema). Mas para
quem falam, então, as pequenas criaturas dessas três
dezenas de contos? Resposta possível: para a platéia.
Um livro de monólogos e diálogos, para uma platéia
de leitores-espectadores. Hipótese que ganha peso
quando se pensa no primeiro conto, "A Escolha",
quase uma homenagem a Samuel Beckett, com
acentos locais.
"É duro o sujeito ter de escolher entre duas coisas
que quer muito. Mas a vida é assim", monologa um
desgraçado anônimo, balançando entre duas possíveis felicidades: a dentadura nova (para comer "um
sanduíche de filé com queijo em pão francês cascudo
e torrado") ou a cadeira de rodas (para "zanzar pelo
terreno que fica em frente à minha casa, ir até o campo onde os moleques jogam pelada..."). A "escolha"
ganha outras conotações, ainda, quando sua filha
pergunta se pode trazer a namorada para morar com
eles. O conto é um triunfo cômico do não-dito, colorindo o timbre da fala com requintes dignos de um
grande encenador.
Vale o mesmo para tantas outras histórias onde: 1)
as personagens dizem tanto ou mais pelo tom do que
pelo sentido do que dizem; e 2) o leitor é generosamente posto, pelo autor, na condição de compreender melhor o que está em jogo do que as próprias
personagens. Mas cabe sempre lembrar que 3) o autor sabe mais do que nós.
Aos 77 anos, chegando a seu 19º livro (sem contar
antologias), Rubem Fonseca escreve como mestre
consumado de sua própria escola. Dá-se ao prazer
de inventar até um ou outro caso com final feliz
-"feliz" com a devida dose de absurdo, mas também a sincera parcela de afeto. Isso já era verdade em
algumas das "Histórias de Amor" (1997) ou certos
amores de "Secreções, Excreções e Desatinos"
(2001), para ficar só nesse departamento. Ganha sequência, agora, nas inversões suburbanas de "Família é uma Merda", ou no dongiovanesco "Caderninho de Nomes", ou no "novela das sete" "Miss Julie".
Que ninguém se engane: o erro, a loucura e a bruta
estupidez, tríade sagrada na origem das línguas, continua fazendo maravilhas e estragos, mesmo aqui,
aos olhos bem-humorados do escritor.
Há uma diferença, contudo, entre as ambições dos
primeiros livros, das décadas de 60 e 70 -censurados pelo regime militar, de lá para cá integrados ao
cânone popular, escolar e universitário-, e certa serenidade ou aparente tranquilidade dos mais novos.
"Pequenas Criaturas" parece escrito num ritmo televisivo, mais do que o habitual cinematográfico. Até o
realismo brutal de certos casos se conforma com limites que são, ao mesmo tempo, de ordem formal e
de estilo. Como se o autor tivesse resolvido que a essa
altura o que lhe cabe é escrever livremente, na intensidade natural de sua arte, sem ter de disputar a cada
palavra um lugar ao sol da literatura. O que houver
de irregular no resultado -e certos contos (no começo e no fim do livro) são obviamente mais fortes
do que outros- será acomodado pelo contexto. O
grande esforço é coletar, para depois exibir, com os
traços principais exagerados, essa galeria aberratória
de vozes. Uma espécie de antologia de caricaturas ou
caderno de esboços de um escritor-Daumier, cultivando sem exigências supremas a arte de andar pelas
ruas do Rio de Janeiro. E com direito a praticar também a autocaricatura.
Aberratória? Mas não está sempre aí, calada ou aos
berros, por toda a parte, para quem tiver ouvidos para ouvir? E será que ninguém escuta? Ninguém, vírgula. Não é nada incrível que caia, afinal, sobre os
ombros de Rubem Fonseca o dever, ou responsabilidade, de dar voz aos falantes e aos mudos. Faz quase
40 anos que vem sendo esse o seu dever, desde que
assumiu para si o ofício de registrar, com a devida
dose de compreensão -e indignação- as palavras
das pequenas criaturas que falam e também das que
não falam, em benefício das que podem ler.
Arthur Nestrovski é professor de literatura na Pontifícia Universidade Católica (SP) e autor de "Ironias da Modernidade" (Ática) e
"Notas Musicais" (PubliFolha), entre outros livros.
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