São Paulo, sábado, 11 de maio de 2002

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O designer perpétuo

A teoria da evolução contra o desígnio divino

O Relojoeiro Cego
Richard Dawkins
Tradução: Laura Teixeira Motta
Cia. das Letras
(Tel. 0/xx/ 11/ 3167-0801)
488 págs., R$ 37,00

CRODOWALDO PAVAN

Não há nada mais interessante e prazeroso do que ler um livro de forma despretensiosa no mais puro sentido do entretenimento. Mas quanto a isso dirão: basta escolher um bom romance e está resolvido. Entretanto, quando o assunto é biologia, ou mais especificamente a evolução das espécies, como proposta por Charles Darwin e contestada por seitas religiosas, aí a leitura se torna também instrutiva e desejada.
Essas seitas religiosas não apenas refutam a concepção da evolução das espécies, mas ainda proíbem que seja discutida e mesmo lecionada em escolas que estão sob o seu controle. Situação absurda ocorre com um bom número de nossos alunos de ciências biológicas que, aprovados em curso de graduação e mesmo pós-graduação, propalam não acreditar na evolução das espécies. Muitos deles serão professores de biologia do curso médio e mesmo do curso superior, para a infelicidade de seus futuros alunos.
Para nós, brasileiros, com a nossa cultura pluralista, o criacionismo -a natureza concebida e criada segundo a vontade de Deus- não é necessariamente uma idéia imposta por questões religiosas. O evolucionismo é entendido como uma teoria científica bem alicerçada, se bem que pouco conhecida pela maioria da população, a não ser pelos próprios especialistas, para quem a evolução da espécies há muito deixou de ser teoria e hoje é fato consumado e, em sua essência, demonstrado cientificamente. Enquanto nos EUA, por exemplo, há regiões em que não se permite sequer que seja comentada a teoria evolucionista.
Dawkins concebeu seu livro com a missão de desvendar o enigma da origem da natureza e, por contingência, a nossa origem, destinado a um público em que ainda encontramos diversas pessoas que, por sua crença criacionista, não acreditam na evolução das espécies, como pregam os cientistas. O autor logo no início faz sua profissão de fé: "Posso não estar sempre certo, mas dedico-me apaixonadamente à verdade e nunca digo algo em cuja verdade não acredito". Essa tônica de paixão e verdade sustentará as mais de 400 páginas de persuasão e defesa da causa evolucionista.
O estilo é de puro engajamento em nome da causa do evolucionismo, que vem com uma precisa definição de divulgação científica: "Explicar é uma arte difícil. Pode-se explicar algo de modo que o leitor entenda as palavras; e pode-se explicar algo de modo que a pessoa se sinta tomada pelo assunto. Para conseguir este último resultado, por vezes não basta exibir os dados de forma desapaixonada. Há que se tornar um advogado e lançar mão de todos os truques dessa profissão. Este livro não é um frio tratado científico".
Depois do primeiro capítulo, em que o autor faz ressalvas, posicionamentos e consequente discussão de suas proposições filosóficas, os dez capítulos seguintes compõem uma narrativa com muita vivacidade, explicitando o design da natureza e as explicações sobre essa complexidade toda que é a vida no mundo em que vivemos.
Encontra-se um jogo interpretativo entre design e desígnio. O design remete a um conceito visual da forma de um objeto, e desígnio, ao projeto com destino determinado. Assim o emprego de design, além da significação normal, se mescla ao de desígnio, assumindo também este sentido. O significado de design torna-se mais forte: trata-se do objeto com uma forma determinada pela seleção das espécies e necessariamente para aquele uso e formato.

Evolução construtiva
O livro é feito da perspectiva da visão. A começar pela detalhada descrição do olho, como um órgão. O universo biológico é apresentado como uma construção e expressão, em permanente evolução, oferecendo-se à observação e admiração como resultado do design, de sua constituição. Os elementos constitutivos da biologia apresentam-se no imenso projeto de uma engenharia complexa: cada componente pode ser um microelemento como a célula, uma bactéria, um unicelular, um pluricelular, uma planta, um animal, um invertebrado, um vertebrado, chegando até a um ser pensante capaz de não apenas interpretar grande parte do que ocorreu desde a origem do Universo, mas também com pretensões de controlar o sistema vivo na superfície da Terra.
O designer -ou o projetista ou ainda o artífice- é a força inexorável da natureza que se constrói e se desenvolve a partir dos elementos oferecidos pela própria natureza. Os caminhos que a evolução natural procura têm uma lógica intrínseca, os elementos são fornecidos por ela mesma, praticando a seleção da evolução das espécies. O processo da evolução pode até ser considerado aleatório, mas cada passo evolutivo no tempo biológico ocorreu com precisão. Os que não se formaram com essa precisão foram eliminados pela seleção natural. Essa caminhada é cega, mas com resultados de um mecanismo com funcionamento à perfeição do relógio; suas relações combinatórias e suas engrenagens articulam-se com precisão.
O livro atinge os seus propósitos, pois explica o evolucionismo usando de um instrumental narrativo excepcional. O autor se apropria com destreza das explicações necessárias de diversas disciplinas da ciência. Além de zoólogo, Dawkins excursionou pelo mundo da informática e se mostra ainda exímio programador, desde os tempos dos remotos computadores dos anos 80.
É dessa época um programa engenhoso de biomorfos, um simulador que, dadas algumas premissas mínimas, permite ao programa que vá criando formas auto-sugeridas. Não se trata de um jogo eletrônico. Foram dados comandos e regras específicas para o programa trabalhar. Na forma de um ponto, iniciam-se traços que se articulam até surgirem formas primordiais e assim por diante, até formarem imagens que lembram aranhas, insetos, árvores etc.
Ao programa foram sugeridos, num dado momento, nove passos evolutivos, na tentativa de rever os passos da evolução das espécies. Essa simulação gerou troncos evolutivos que, na sua caminhada do tempo biológico, puderam resultar em figuras em forma de árvores, insetos, crustáceos etc. A surpresa do bom resultado foi que o programa não permitia alterações além do comando inicial; portanto o programador não pode interferir no resultado.
A indagação filosófica: de onde viemos, quem somos e para onde vamos, que deu nome até a uma das obras-primas do pintor Paul Gauguin, resume numa brevidade absoluta a explicação da teoria evolucionista de Darwin, em contraposição ao pensamento bíblico dos criacionistas que postulam "e Deus criou o mundo". Essa síntese poderia aparentemente conter o objetivo que moveu Dawkins a escrever este livro.
Zoólogo de formação, ele constrói o texto com doses de humor e muita paixão para explicar a origem das espécies e sua consequente evolução. Ao mesmo tempo, tem uma devoção sem limites às concepções de Darwin. Felizmente seu discurso vem impregnado de uma oratória do convencimento, "na mesma forma com que um advogado defende sua causa". Pacientemente constrói uma obra explicativa, envolvente, em que as informações jorram linha por linha, procurando tornar o leitor cúmplice de idéias paradoxais que acentuam como a biologia é altamente complexa e a física relativamente simples.


Crodowaldo Pavan é biólogo, professor emérito da USP e da Unicamp, e presidente da Associação Brasileira de Divulgação Científica (Abradic).



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