|
Texto Anterior | Índice
Gênese do marxismo
O caminho de Marx para o comunismo
A Teoria
da Revolução
no Jovem Marx
Michael Löwy
Tradução: Anderson Gonçalves
Vozes
(Tel. 0/xx/11/6693-7944)
245 págs., R$ 25,00
RUY FAUSTO
Trinta anos depois de sua primeira publicação, em francês, e após as traduções
italiana, espanhola, inglesa e japonesa, "A
Teoria da Revolução no Jovem Marx"
aparece finalmente em português. O autor eliminou a parte final, que tratava da
teoria da revolução depois de Marx, e
acrescentou um prefácio recente, "Marx
está Morto?".
Além de conter, no final, uma síntese
sobre a política de Marx depois de 1840, o
livro reconstitui com finura o processo
pelo qual o democrata radical dos anos
1842-43 abandona um certo universo
teórico e político e se transforma no pensador e homem de ação comunista dos
anos 45-48. É essencial distinguir com
precisão os momentos dessa mutação, o
que os comentadores foram incapazes de
fazer (ver págs. 106 e 152).
"A primeira fase", isto é, a da primeira
mudança, é a da adesão ao "comunismo
filosófico". A segunda "é a da "descoberta"
do proletariado como classe emancipadora", mas "descoberta ainda filosófica".
A terceira é a de "uma nova descoberta,
concreta desta vez, do proletariado revolucionário". A quarta e última será a do
"comunismo de massas", tal como é
apresentado nas "Teses sobre Fueurbach" e na "Ideologia Alemã" (e ainda no
"Manifesto Comunista").
A idéia central será então, e este é o
"leitmotiv" da obra, a da autodeterminação do proletariado. Porém o livro não
pretende reconstituir apenas um processo de idéias. A sua originalidade é juntar
a história das idéias com a história social.
Nesse sentido, além do papel auto-educativo da atividade de Marx no quadro
dos grupos revolucionários, uma importância considerável é atribuída à insurreição dos tecelões da Silésia (junho de
1844), que teria sido o "catalisador" da
mutação de Marx.
A "evolução" de Marx
Defrontamo-nos aí com o difícil problema de "compor" o tempo da teoria ou
do discurso em geral e o tempo da história "concreta", principalmente como história das lutas. Löwy pretende, por meio
desses elementos, explicar a "evolução"
de Marx, não porém indicando as condições necessárias e suficientes para a eclosão dos "efeitos", mas apenas as condições necessárias (as duas juntas são como
que o limite da pesquisa). O que ele faz
-e é muito- é uma rigorosa reconstituição dos elementos da história social (e
da história ideológico-prática) que envolvem a história de vida do indivíduo Marx.
Ver, por exemplo, a reconstituição da origem social dos quadros das associações
comunistas de 1838 a 1847 e, mais adiante, a da totalidade dos membros da "Liga
dos Comunistas".
Ele vai mais longe na análise extremamente fina da noção de "partido" no
"Manifesto", que remete à prática de
construção de um partido (comunista)
dentro de um partido (do proletariado).
Löwy utiliza no essencial os conteúdos
dos discursos, não o que poderíamos denominar a forma deles. Explico-me: não
há propriamente "mise em rapport" de
estruturas teóricas (em sentido estrito)
com estruturas históricas. Se ele fala de
"totalidade", para a teoria o conceito se
resolve na categoria perigosa, porque vaga e hiperabrangente, de "concepção do
mundo" ("Weltanschauung").
Sei que é cômodo dizer o que poderia
ser feito. Mas, para dar um exemplo, um
texto como a "Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel" apresenta-se
como um movimento de passagem a registros diferentes com índice temporal
(antes da revolução burguesa, depois dela) e espacial (Alemanha, França). Esse
jogo de estruturas espaciais e temporais
com limites poderia talvez ser articulado
com os deslocamentos reais do indivíduo
Marx ou com a articulação efetiva dos
tempos e dos espaços na história que lhe é
contemporânea. Isto para dar um começo de resposta ao problema, de solução
possível dentro de certos limites, de como integrar um tipo de leitura cujo "elemento" não é a filosofia, mas a história
social das idéias, com as leituras mais especificamente filosóficas, dominantes no
Brasil.
A história (uma pré-história) das figuras político-teóricas por que passa Marx
culminaria com o momento da "Ideologia Alemã" e das "Teses sobre Feuerbach", que têm por isso mesmo um caráter "de autocrítica". Mas, sem que se negue a importância política e teórica do
que vem depois, não se deixa espaço para
pensar uma possível autocrítica dessa autocrítica. Os textos de 1845 se inscreveriam assim como "terminus" de um movimento cujos primeiros momentos são
as fases acima assinaladas. Mais precisamente: essas duas primeiras fases -deixando de lado o "grau zero", o do radicalismo democrático- poderiam representar em conjunto o primeiro momento, o do comunismo filosófico, de estilo
subjetivizante, ao qual sucederia como
primeira "negação" o momento objetivista, "materialista-metafísico", da "Sagrada Família". As "Teses" e a "Ideologia
Alemã" seriam "a "negação da negação'",
reconstituindo "a unidade entre teoria e
prática".
Dialética da maturidade
Ora, se o esquema não é sem justificação, ele não deixa de oferecer dificuldades por causa do seu ponto de chegada.
Seria fácil mostrar, e creio já o ter feito,
quanto o universo lógico da "Ideologia
Alemã" se separa do "Capital" e dos
"Grundrisse". O radicalismo antifilosófico da etapa 45-46, quando noções como
as de "substância" são denunciadas como entulho filosófico, vai a contrapelo do
discurso dialético da maturidade, em
que, por exemplo, o trabalho abstrato será dito substância do valor. Se, da "Ideologia Alemã" e das "Teses" aos "Grundrisse" e ao "Capital", é a articulação interna e o estatuto "externo" da teoria que
se altera, isso tem consequências também
para a política.
Resumindo, diria que, se o universo de
45-46 pode ser considerado como um
progresso e como a unidade dos dois momentos indicados, ele não concede à teoria o lugar que lhe cabe, a saber, o de uma
"região" que se constrói em descontinuidade com os "discursos práticos". A teoria é pensada, ali, pelo contrário, em continuidade com o movimento da práxis,
diluindo o teórico no tempo histórico
(deve-se recusar também a tese oposta,
"anti-historicista", e propor um caminho
complexo de descontinuidades e continuidades entre os dois registros). Isso
corresponde a um segundo problema, o
da natureza e o valor dos momentos do
pensamento de Marx.
Para além desta questão, resta o problema mais geral do marxismo, o de Marx,
como o dos herdeiros (considero primeiro só um aspecto). Mesmo se parece excessivo introduzir tal discussão a propósito de um livro escrito por um jovem no
início dos anos 60, o tom não-acadêmico
do livro (que coexiste com a meticulosidade de scholar), e também o teor do prefácio, a legitimam. A obra se apresenta
como uma "análise marxista da gênese
do próprio marxismo", o que significa
aceitar um certo número de pressuposições -no sentido usual do termo-
substantivas, as quais durante anos representaram o fundo inabalável da consciência da esquerda.
No essencial, a suposição de que há
uma afinidade entre o proletariado e o
comunismo -e de que, por isso mesmo,
a política marxista é a mais apta para levar a bom termo a luta do proletariado.
Seria preciso repensar tudo isso. Minha
impressão é de que o papel da política
marxista -digamos desde o momento
em que Marx e Engels adquirem um mínimo de influência sobre organizações
políticas até o ano de 1917 (o que vem depois exige um diagnóstico particular)- é
contraditório. É evidente que Marx e Engels imprimem às práticas políticas uma
perspectiva de ruptura com o antigo utopismo e "sectarismo" (um dos temas do
livro), o que foi positivo.
Mas, ao mesmo tempo, eles tomavam
como evidência que o "destino", a "vocação" ("Bestimmung") do proletariado é a
construção do comunismo. (Na esteira
da tradição lukacsiana, Löwy apela para o
conceito muito frágil de "consciência adjudicada", para dar conta da distância entre a consciência de fato do proletariado,
num momento dado, e a consciência comunista que lhe conviria). Ora, não só,
como observou Claude Lefort, seria o caso de lembrar que as grandes lutas do fim
do século 19 e da virada do século 20 ter-se-iam travado em geral em torno de objetivos democráticos ou de reforma social
(entenda-se, sem que a visada do comunismo, mesmo como objetivo último, estivesse presente), mas também se poderia
perguntar em que medida a bandeira do
comunismo teve, nesse período, um impacto positivo sobre o destino dessas lutas.
A atualidade
O prefácio nos conduz, finalmente, à
atualidade. Em torno dele se situa o quarto e último núcleo de problemas: os do
marxismo hoje (com todas as implicações teóricas e políticas).
Escrito num tom antidogmático, o prefácio propõe uma atitude aberta à obra de
toda uma série de pensadores e homens
políticos, mas culmina (em conexão com
a idéia da sobrevivência do capitalismo)
com a frase seguinte: "Desse ponto de vista, penso que Jean-Paul Sartre tinha razão
em ver no marxismo "o horizonte intelectual de nossa época': as tentativas de o superar conduzem apenas à regressão a níveis inferiores do pensamento, não além,
mas aquém de Marx". Se Löwy chega a
esta conclusão ortodoxa é porque insiste
na necessidade de incorporar contribuições de... Porém, apesar das aparências, o
mais urgente não é incorporar, mas saber
o que devemos recusar. A atitude negativa, não a atitude afirmativa, é aqui a antidogmática.
Entre as figuras da "herança marxiana"
que o autor reivindica estão Rosa Luxemburgo e Ernst Bloch, mas também Trótski e Lênin. Dos chamados "socialistas românticos" que ele quer "revisitar", há,
entre outros, W. Morris e Péguy, mas
também Georges Sorel. Esse tipo de
"abertura" escamoteia problemas. Um
dos problemas da esquerda atual é (e se
não é, deveria ser): qual a responsabilidade do bolchevismo na constituição do regime stalinista? (O capítulo final da edição francesa, eliminado por razões válidas, continha entretanto uma análise crítica importante do "ultrabolchevismo"
de Trótski.)
Outro problema: em que limites a violência (mesmo "revolucionária") é legítima? A esse respeito, confesso que o nome
de Georges Sorel (muito apreciado pelos
fascistas italianos) me dá frio na espinha.
Se me disserem que se trata de incorporar
o melhor, não o pior dele, responderia
(pedindo vênia ao meu amigo Löwy): à
luz da experiência do século 20, interessa
antes conhecer -e recusar- o pior. O
autor escreve: "Agora que o marxismo
deixou de ser usado como ideologia de
Estado por regimes burocráticos parasitários, existe uma oportunidade histórica
para redescobrir a mensagem marxiana
originária".
Até aí -afora o "pequeno" esquecimento de que ainda existem regimes desse tipo, um deles na América Latina-
concordo. Mas a conclusão é a de que "a
experiência trágica da URSS stalinista e
pós-stalinista (...) longe de "falsificar" a
teoria marxiana da revolução, é sua espantosa confirmação". A conclusão "hiperboliza" ilegitimamente o que se pode
tirar de premissas críticas válidas. Numa
época marcada por um ampla mobilização contra os efeitos da mundialização
neoliberal, mas também por uma enorme confusão a respeito dos objetivos da
esquerda, não gostaria que este livro, cuja
história conheço bem (o projeto de Löwy
era um dos temas das conversas sem fim
dos dois amigos, em suas andanças pelo
Quartier Latin, em 1962), servisse para
confirmar certezas em crise de legitimação.
Gostaria antes que funcionasse, por assim dizer, como uma peça a ser juntada
ao dossiê. Uma peça original, a fortiori, se
pensarmos na tendência geral do que se
escreve sobre Marx no Brasil, e peça que
haveria de servir não para simplificar,
mas para complicar -no melhor sentido- os problemas histórico, teórico e
político. Pensando sobretudo no que a
obra representou no momento da sua
aparição (uma leitura de Marx em ruptura com a pseudo-ortodoxia dominante),
mas também nas suas grandes qualidades como análise de um momento muito
importante da história do pensamento
político, acho que esse destino crítico é,
tudo somado, o que corresponde melhor
à "vocação" profunda desse livro.
Ruy Fausto é professor emérito da USP e autor,
entre outros livros, de "Sur le Concept de Capital
-Idée d'une Logique Dialectique" (L'Harmattan).
Texto Anterior: O designer perpétuo Índice
|