São Paulo, sábado, 11 de maio de 2002

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Gênese do marxismo

O caminho de Marx para o comunismo

A Teoria
da Revolução
no Jovem Marx
Michael Löwy
Tradução: Anderson Gonçalves
Vozes
(Tel. 0/xx/11/6693-7944)
245 págs., R$ 25,00

RUY FAUSTO

Trinta anos depois de sua primeira publicação, em francês, e após as traduções italiana, espanhola, inglesa e japonesa, "A Teoria da Revolução no Jovem Marx" aparece finalmente em português. O autor eliminou a parte final, que tratava da teoria da revolução depois de Marx, e acrescentou um prefácio recente, "Marx está Morto?".
Além de conter, no final, uma síntese sobre a política de Marx depois de 1840, o livro reconstitui com finura o processo pelo qual o democrata radical dos anos 1842-43 abandona um certo universo teórico e político e se transforma no pensador e homem de ação comunista dos anos 45-48. É essencial distinguir com precisão os momentos dessa mutação, o que os comentadores foram incapazes de fazer (ver págs. 106 e 152).
"A primeira fase", isto é, a da primeira mudança, é a da adesão ao "comunismo filosófico". A segunda "é a da "descoberta" do proletariado como classe emancipadora", mas "descoberta ainda filosófica". A terceira é a de "uma nova descoberta, concreta desta vez, do proletariado revolucionário". A quarta e última será a do "comunismo de massas", tal como é apresentado nas "Teses sobre Fueurbach" e na "Ideologia Alemã" (e ainda no "Manifesto Comunista").
A idéia central será então, e este é o "leitmotiv" da obra, a da autodeterminação do proletariado. Porém o livro não pretende reconstituir apenas um processo de idéias. A sua originalidade é juntar a história das idéias com a história social. Nesse sentido, além do papel auto-educativo da atividade de Marx no quadro dos grupos revolucionários, uma importância considerável é atribuída à insurreição dos tecelões da Silésia (junho de 1844), que teria sido o "catalisador" da mutação de Marx.

A "evolução" de Marx
Defrontamo-nos aí com o difícil problema de "compor" o tempo da teoria ou do discurso em geral e o tempo da história "concreta", principalmente como história das lutas. Löwy pretende, por meio desses elementos, explicar a "evolução" de Marx, não porém indicando as condições necessárias e suficientes para a eclosão dos "efeitos", mas apenas as condições necessárias (as duas juntas são como que o limite da pesquisa). O que ele faz -e é muito- é uma rigorosa reconstituição dos elementos da história social (e da história ideológico-prática) que envolvem a história de vida do indivíduo Marx. Ver, por exemplo, a reconstituição da origem social dos quadros das associações comunistas de 1838 a 1847 e, mais adiante, a da totalidade dos membros da "Liga dos Comunistas".
Ele vai mais longe na análise extremamente fina da noção de "partido" no "Manifesto", que remete à prática de construção de um partido (comunista) dentro de um partido (do proletariado). Löwy utiliza no essencial os conteúdos dos discursos, não o que poderíamos denominar a forma deles. Explico-me: não há propriamente "mise em rapport" de estruturas teóricas (em sentido estrito) com estruturas históricas. Se ele fala de "totalidade", para a teoria o conceito se resolve na categoria perigosa, porque vaga e hiperabrangente, de "concepção do mundo" ("Weltanschauung").
Sei que é cômodo dizer o que poderia ser feito. Mas, para dar um exemplo, um texto como a "Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel" apresenta-se como um movimento de passagem a registros diferentes com índice temporal (antes da revolução burguesa, depois dela) e espacial (Alemanha, França). Esse jogo de estruturas espaciais e temporais com limites poderia talvez ser articulado com os deslocamentos reais do indivíduo Marx ou com a articulação efetiva dos tempos e dos espaços na história que lhe é contemporânea. Isto para dar um começo de resposta ao problema, de solução possível dentro de certos limites, de como integrar um tipo de leitura cujo "elemento" não é a filosofia, mas a história social das idéias, com as leituras mais especificamente filosóficas, dominantes no Brasil.
A história (uma pré-história) das figuras político-teóricas por que passa Marx culminaria com o momento da "Ideologia Alemã" e das "Teses sobre Feuerbach", que têm por isso mesmo um caráter "de autocrítica". Mas, sem que se negue a importância política e teórica do que vem depois, não se deixa espaço para pensar uma possível autocrítica dessa autocrítica. Os textos de 1845 se inscreveriam assim como "terminus" de um movimento cujos primeiros momentos são as fases acima assinaladas. Mais precisamente: essas duas primeiras fases -deixando de lado o "grau zero", o do radicalismo democrático- poderiam representar em conjunto o primeiro momento, o do comunismo filosófico, de estilo subjetivizante, ao qual sucederia como primeira "negação" o momento objetivista, "materialista-metafísico", da "Sagrada Família". As "Teses" e a "Ideologia Alemã" seriam "a "negação da negação'", reconstituindo "a unidade entre teoria e prática".

Dialética da maturidade
Ora, se o esquema não é sem justificação, ele não deixa de oferecer dificuldades por causa do seu ponto de chegada. Seria fácil mostrar, e creio já o ter feito, quanto o universo lógico da "Ideologia Alemã" se separa do "Capital" e dos "Grundrisse". O radicalismo antifilosófico da etapa 45-46, quando noções como as de "substância" são denunciadas como entulho filosófico, vai a contrapelo do discurso dialético da maturidade, em que, por exemplo, o trabalho abstrato será dito substância do valor. Se, da "Ideologia Alemã" e das "Teses" aos "Grundrisse" e ao "Capital", é a articulação interna e o estatuto "externo" da teoria que se altera, isso tem consequências também para a política.
Resumindo, diria que, se o universo de 45-46 pode ser considerado como um progresso e como a unidade dos dois momentos indicados, ele não concede à teoria o lugar que lhe cabe, a saber, o de uma "região" que se constrói em descontinuidade com os "discursos práticos". A teoria é pensada, ali, pelo contrário, em continuidade com o movimento da práxis, diluindo o teórico no tempo histórico (deve-se recusar também a tese oposta, "anti-historicista", e propor um caminho complexo de descontinuidades e continuidades entre os dois registros). Isso corresponde a um segundo problema, o da natureza e o valor dos momentos do pensamento de Marx.
Para além desta questão, resta o problema mais geral do marxismo, o de Marx, como o dos herdeiros (considero primeiro só um aspecto). Mesmo se parece excessivo introduzir tal discussão a propósito de um livro escrito por um jovem no início dos anos 60, o tom não-acadêmico do livro (que coexiste com a meticulosidade de scholar), e também o teor do prefácio, a legitimam. A obra se apresenta como uma "análise marxista da gênese do próprio marxismo", o que significa aceitar um certo número de pressuposições -no sentido usual do termo- substantivas, as quais durante anos representaram o fundo inabalável da consciência da esquerda.
No essencial, a suposição de que há uma afinidade entre o proletariado e o comunismo -e de que, por isso mesmo, a política marxista é a mais apta para levar a bom termo a luta do proletariado. Seria preciso repensar tudo isso. Minha impressão é de que o papel da política marxista -digamos desde o momento em que Marx e Engels adquirem um mínimo de influência sobre organizações políticas até o ano de 1917 (o que vem depois exige um diagnóstico particular)- é contraditório. É evidente que Marx e Engels imprimem às práticas políticas uma perspectiva de ruptura com o antigo utopismo e "sectarismo" (um dos temas do livro), o que foi positivo.
Mas, ao mesmo tempo, eles tomavam como evidência que o "destino", a "vocação" ("Bestimmung") do proletariado é a construção do comunismo. (Na esteira da tradição lukacsiana, Löwy apela para o conceito muito frágil de "consciência adjudicada", para dar conta da distância entre a consciência de fato do proletariado, num momento dado, e a consciência comunista que lhe conviria). Ora, não só, como observou Claude Lefort, seria o caso de lembrar que as grandes lutas do fim do século 19 e da virada do século 20 ter-se-iam travado em geral em torno de objetivos democráticos ou de reforma social (entenda-se, sem que a visada do comunismo, mesmo como objetivo último, estivesse presente), mas também se poderia perguntar em que medida a bandeira do comunismo teve, nesse período, um impacto positivo sobre o destino dessas lutas.

A atualidade
O prefácio nos conduz, finalmente, à atualidade. Em torno dele se situa o quarto e último núcleo de problemas: os do marxismo hoje (com todas as implicações teóricas e políticas).
Escrito num tom antidogmático, o prefácio propõe uma atitude aberta à obra de toda uma série de pensadores e homens políticos, mas culmina (em conexão com a idéia da sobrevivência do capitalismo) com a frase seguinte: "Desse ponto de vista, penso que Jean-Paul Sartre tinha razão em ver no marxismo "o horizonte intelectual de nossa época': as tentativas de o superar conduzem apenas à regressão a níveis inferiores do pensamento, não além, mas aquém de Marx". Se Löwy chega a esta conclusão ortodoxa é porque insiste na necessidade de incorporar contribuições de... Porém, apesar das aparências, o mais urgente não é incorporar, mas saber o que devemos recusar. A atitude negativa, não a atitude afirmativa, é aqui a antidogmática.
Entre as figuras da "herança marxiana" que o autor reivindica estão Rosa Luxemburgo e Ernst Bloch, mas também Trótski e Lênin. Dos chamados "socialistas românticos" que ele quer "revisitar", há, entre outros, W. Morris e Péguy, mas também Georges Sorel. Esse tipo de "abertura" escamoteia problemas. Um dos problemas da esquerda atual é (e se não é, deveria ser): qual a responsabilidade do bolchevismo na constituição do regime stalinista? (O capítulo final da edição francesa, eliminado por razões válidas, continha entretanto uma análise crítica importante do "ultrabolchevismo" de Trótski.)
Outro problema: em que limites a violência (mesmo "revolucionária") é legítima? A esse respeito, confesso que o nome de Georges Sorel (muito apreciado pelos fascistas italianos) me dá frio na espinha. Se me disserem que se trata de incorporar o melhor, não o pior dele, responderia (pedindo vênia ao meu amigo Löwy): à luz da experiência do século 20, interessa antes conhecer -e recusar- o pior. O autor escreve: "Agora que o marxismo deixou de ser usado como ideologia de Estado por regimes burocráticos parasitários, existe uma oportunidade histórica para redescobrir a mensagem marxiana originária".
Até aí -afora o "pequeno" esquecimento de que ainda existem regimes desse tipo, um deles na América Latina- concordo. Mas a conclusão é a de que "a experiência trágica da URSS stalinista e pós-stalinista (...) longe de "falsificar" a teoria marxiana da revolução, é sua espantosa confirmação". A conclusão "hiperboliza" ilegitimamente o que se pode tirar de premissas críticas válidas. Numa época marcada por um ampla mobilização contra os efeitos da mundialização neoliberal, mas também por uma enorme confusão a respeito dos objetivos da esquerda, não gostaria que este livro, cuja história conheço bem (o projeto de Löwy era um dos temas das conversas sem fim dos dois amigos, em suas andanças pelo Quartier Latin, em 1962), servisse para confirmar certezas em crise de legitimação.
Gostaria antes que funcionasse, por assim dizer, como uma peça a ser juntada ao dossiê. Uma peça original, a fortiori, se pensarmos na tendência geral do que se escreve sobre Marx no Brasil, e peça que haveria de servir não para simplificar, mas para complicar -no melhor sentido- os problemas histórico, teórico e político. Pensando sobretudo no que a obra representou no momento da sua aparição (uma leitura de Marx em ruptura com a pseudo-ortodoxia dominante), mas também nas suas grandes qualidades como análise de um momento muito importante da história do pensamento político, acho que esse destino crítico é, tudo somado, o que corresponde melhor à "vocação" profunda desse livro.


Ruy Fausto é professor emérito da USP e autor, entre outros livros, de "Sur le Concept de Capital -Idée d'une Logique Dialectique" (L'Harmattan).



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