São Paulo, sábado, 11 de agosto de 2001

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As Tramas do amor


Novelas e contos do escritor norte-americano Henry James comentados pelo crítico e ensaísta Modesto Carone


MODESTO CARONE

É uma boa notícia registrar o retorno de Henry James à roda da grande ficção com um livro de novelas importante ("A Vida Privada e Outras Narrativas") e uma de suas mais fascinantes histórias breves numa antologia de "contos clássicos norte-americanos" ("América"; a novela é "A Fera na Selva").
O primeiro livro foi organizado, apresentado e traduzido com competência e sensibilidade por Onédia Célia Pereira de Queiroz, especialista em Henry James. O volume consta de três narrativas: "A Lição do Mestre", "O Desenho no Tapete" e "A Vida Privada" -nessa ordem.
Todas elas são novelas no sentido estrito; James as chamava de "tales" ou "nouvelles", para evitar a palavra "short-story", de recorte tipicamente americano.
Além disso, o modo de produção do escritor, teatrólogo malogrado, tendia abertamente para o dramático ("Dramatize! Dramatize!"), já que o espaço reduzido do gênero -"narrativa de tamanho médio entre o conto e o romance"- admite apenas um número restrito de personagens, a mudança pouco frequente de tempo e lugar e a limpeza do que não é essencial. A conclusão óbvia é que a novela é curta não por ser um "gênero intermediário", mas por causa de sua estrutura, que é "teatral". A intensidade que a especifica exige as ênfases carregadas mais que as transições fluentes, bem como um "ponto de virada" capaz de encaminhar a história para o desfecho com a necessidade interna de uma peça no palco.
"A Vida Privada" talvez seja a novela menos ardilosa do livro, apesar do tema complexo, de que se ocuparam, entre outros, o romantismo, o expressionismo e a psicanálise: o duplo. O herói da história é um escritor famoso e de talento, Clare Vawdrey, que no trato social -segundo o narrador- é de uma banalidade que não bate com a estatura do poeta.
A explicação possível é que, para produzir longe das contingências externas, ele tem um duplo. Isto é: enquanto compõe uma peça na obscuridade do seu quarto, numa estância suíça, a "duplicata" (para lembrar Mário de Andrade) se encarrega de uma sociabilidade compulsória.
Apesar de alguns toques sombrios, no entanto, a história tende ao cômico e até ao vaudeville, para o qual colaboram formalmente o cenário unificado, o número reduzido de personagens e a necessidade (aproveitada pela sátira) do cruzamento das figuras em cena. Mas na objetivação do duplo James não parece se contentar com um somente -o do escritor que tem uma vida própria e dispensa as relações sociais-, pois outro personagem, lorde Mellifont, é o seu contrário e reforço perfeito. "Ele era inteiramente público e não tinha uma vida privada correspondente, ao passo que Clare Vawdrey era exclusivamente privado, não tendo vida pública". Aqui a aproximação com "O Espelho", de Machado de Assis, é quase inevitável -e Onédia não deixa de fazê-la. Como diz Machado, "cada criatura humana tem duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro". Ou seja: uma "exterior" e outra "interior" dentro do mesmo peito. É manifesto que, em mais de um aspecto, Machado e James são almas gêmeas.
"O Desenho no Tapete" retoma a questão do artista em outra clave, mais densa e "novelesca", e nesse caso vale a pena expandir um pouco a paráfrase.
O narrador não nomeado é resenhista de um jornal literário chamado "O Meio" (por sair no meio da semana). Ele vem de produzir um ensaio crítico sobre o novo romance de Hugh Verecker, artista respeitado, e o encontra num jantar no mesmo dia da publicação.
Sem saber que está na presença do autor da resenha, Verecker declara publicamente que aquele trabalho não diz nada, "é a mesma bobagem de sempre". Percebendo a gafe que cometeu, visita o narrador-resenhista para pedir-lhe desculpas. Diz de si mesmo que é um malogro como artista, pois ninguém, esperto ou estúpido, é capaz de perceber o "pequeno ponto", "a coisa particular pela qual escrevi meus livros".
Sem ele, não teria dado nenhum valor à sua ficção. Pormenor de alto significado, esse "point" consolida "a ordem, a forma, a textura" das obras, de vez que cada página, linha e letra do lúcido esforço de sua escrita fornece a pista da leitura certa, e nesse aspecto não pode ajudar o resenhista a localizá-lo.
"A coisa é tão concreta como um pássaro numa gaiola, uma isca num anzol, um pedaço de queijo numa ratoeira." Não sabe dizer se é algo que deriva do pensamento ou do estilo, já que, para ele, ambos são uma coisa só. O leitor atento (ou astuto) que se entrega como deve ao livro que está lendo, descobriria do que se trata, porque não é nada menos que "o desenho no tapete" que cintila no cerne da ficção. O narrador passa a confissão de Verecker ao chefe do jornal, que a comunica à sua noiva e o casal decide se dedicar a desvendar a figura no tapete, que lembra um pouco a carta roubada de Poe na análise de Lacan, uma vez que está à vista de todos e ninguém a vê.
Os incidentes, percalços e peripécias se precipitam no curso da fábula e adquirem, em ritmo acelerado, o vai-e-vem de uma aventura fantástica, com viagens, casamentos, mortes, novos casamentos, cartas inesperadas que não revelam o principal, sem contar os desvios que vêm de todos os lados. No meio da correria um personagem comunica a outro que ouviu de Verecker tudo o que interessa, mas pretende guardá-lo consigo como um segredo.
Verecker morre, sua mulher também. O chefe do narrador perece na lua-de-mel e a viúva se casa pela segunda vez, morrendo de parto no segundo filho. O narrador não perde as esperanças e vai conversar com o viúvo recente, imaginando que a esposa falecida tenha transmitido, antes de morrer, o segredo; mas este recebe atônito a notícia e não sabe nada sobre a figura no tapete nem tem motivo algum para achar que ela exista.
A descrição rasa e atropelada das complicações da novela basta para dar uma idéia do pastelão que pode envolver uma questão séria -o segredo à mostra, o tesouro aberto que enobrece-, desde que lida adequadamente -uma obra literária. Como disse James, a "extraordinária cadeia de eventos, apesar do clarão inicial", permanece no escuro, aprisionada na condição inefável da "coisa mais linda do mundo". Onédia Pereira de Queiroz afirma com razão que "o próprio texto leva o leitor a acreditar que seria capaz de dizer o que ele significa e, ao mesmo tempo, torna impossível dizê-lo".
Em resumo: uma sátira implacável, com o toque da sutileza, que põe a nu as manobras dos escritores, a avidez dos críticos e o pequeno mundo onde se projetam e consumam obras que nunca serão entendidas como deveriam. E se James quis se vingar da negligência a que uma produção vasta, brilhante e crítica como a sua foi submetida por tanto tempo, não resta dúvida que o conseguiu.

A imaginação do desastre
"A Lição do Mestre" talvez seja a mais ambígua e estruturada das três histórias do livro. Tem dois atores principais, o velho escritor St. George, seu discípulo, o jovem romancista Paul Overt, e duas coadjuvantes de destaque, Miss Fancourt e Mister St. George. A novela é narrada em terceira pessoa, mas a perspectiva, ou o ponto de vista, é de Paul Overt. Reduzido ao osso, o tema é a incompatibilidade entre a atividade literária relevante e o casamento, evoluindo passo a passo através de cenas suntuosas (como a da abertura, na mansão de Lady Watermouth) e a performance de uma obra-prima. O jovem Overt percebe, logo de início, que os trabalhos mais recentes do mestre sofreram uma perda sensível de qualidade, embora a quantidade se mantenha. St. George confessa ao discípulo que esse declínio é real e se deve às exigências materiais de um matrimônio bem-sucedido: o aumento do consumo, o encaminhamento das crianças, a ostentação de uma aparência de luxo da classe média intelectual de Londres, as roupas dispendiosas de Mrs. St. George...
Segundo o experiente homem de letras, a única preocupação do artista literário deve ser com o "absoluto", visto que nada meramente relativo interessa. Nesse sentido, as esposas podem representar uma "curva perigosa", pois um escritor que se poupa não constitui nem sustenta uma família. St. George se queixa de que seu dia-a-dia se tornou infernal ao se submeter a estas pressões. A obra criada assim, obviamente, se ressentiu do impacto.
James devia saber do que estava falando, pois foi um celibatário de ferro que nunca conheceu a ameaça efetiva do casamento e chegou aos 73 anos da forma mais produtiva. Possuía, além disso, a "imaginação do desastre" e para ele a existência tinha uma catadura "ferocious and sinister", o que pode ter também funcionado como defesa em favor da vida solitária do escritor.
Voltando à "Lição", o mestre aconselha o discípulo a se afastar de Miss Fancourt, por quem estava apaixonado a ponto de se casar. Mas o fato é que Marian Fancourt apreciava os dois autores com discernimento e St. George admite que ela poderia ser a inspiradora do namorado pelo menos por um ano. Depois disso, o peso dos compromissos iria roer as forças do talentoso discípulo. Overt resolve fazer uma longa viagem para escrever um romance, atendendo aos conselhos do mestre. Fica muito tempo fora e nesse ínterim o cotidiano continua: a mulher de St. George morre, ele começa a cortejar Marian, com quem desde antes já simpatizava, e termina casado com ela. Ao visitá-lo em Londres, com o novo livro em mãos, Paul Overt fica a par das novidades e é impossível não pensar que possa ter sido alvo tanto de um bom conselho -St. George de fato parou de escrever- como de uma traição bem tramada. Lição de mestre ou golpe de mestre? Difícil dizer.
Enquanto isso, James passa a limpo a vida literária londrina, suas malícias e perfídias -um quadro que, como um todo, não deixa de ser pouco alentador. Naturalmente o realismo aqui está presente, num escritor que, ao que tudo indica, fugia dele. Mas é possível que ele buscasse a verdade não mais como seu amigo Flaubert, promovendo a varredura do mundo objetivo, mas esquadrinhando a subjetividade, onde o real se refugiou como fenômeno ou sensibilidade de época: Machado, Proust e -por que não?- Freud seguiram a mesma trilha.
James não é um simples "impressionista" ou alguém que busca o sobrenatural em "ghost-stories", mas um poeta muito razoável da realidade, que investiga com mão leve as camadas menos manifestas da vida contemporânea.
"Quando mergulhamos em nós mesmos, não encontramos uma personalidade autônoma, desvinculada de momentos sociais, mas sim as marcas de sofrimento do mundo alienado." A frase é de Adorno e sem dúvida expressa o que tantos artistas modernos vasculharam para trazer à tona o que existe de conteúdo de verdade histórica naquilo que conheceram pela experiência pessoal. A obra de James segue certamente esse caminho através da novela -"o modo de composição mais indestrutível, duro e brilhante como o soneto" (as palavras são dele).

Uma novela outonal
"A Fera na Selva" -o melhor talvez tenha ficado para o fim. Pois essa novela é universalmente considerada uma das maiores histórias criadas e compostas por James, e deve ter sido por algum mal-entendido que ela faz parte de "América", uma boa antologia de "clássicos do conto norte-americano", onde os olhos da fera brilham entre as estrelas, se é que não as superam.
Num resumo drástico, do que trata essa verdadeira renovação da história de amor, misturada à falsa consciência?
Ela é narrada em terceira pessoa, mas a perspectiva é de John Marcher, o protagonista que contracena com May Bartram, uma das mulheres mais amáveis da galeria jamesiana. Os dois encontram-se dez anos depois de terem se conhecido na Itália e no compasso inicial da novela, digna de um poema, eles se reconhecem, ou melhor: May reconhece Marcher e faz com que ele a reconheça. Ambos estão numa mansão inglesa exposta à visitação e é nesse lugar que se depara com a mulher -"bela, mas muito mais velha do que antes", segundo Marcher, que, com certeza, não vê que o mesmo deve ter acontecido com ele (essa é uma primeira indicação da sua postura auto-referida diante do mundo, das pessoas e sobretudo de May. No curso da história, esse viés narcísico vai se aprofundar).
Acontece então algo inesperado -o famoso ponto de inflexão que altera bruscamente o andamento de uma novela: May lembra ao seu parceiro a confissão, feita dez anos antes por ele, de que um evento "raro e estranho", "prodigioso e terrível", lhe estava reservado na vida. Em outros termos, o significado disso é que, como numa "ghost-story" jamesiana, a fera vai saltar a qualquer hora da selva sobre ele, talvez para esmagá-lo; mas não há nada que Marcher possa fazer para se esquivar do destino. O que ele registra, naquele momento, é apenas uma lembrança nebulosa do primeiro encontro com May. Ao tentar se recordar dos pormenores, erra todos, sem dizer que não tinha a menor memória do segredo que havia confiado àquela mulher.
May, por seu lado, não se esquecera de nada. Mas aceita a falta de jeito de Marcher e diz que vai "vigiar" ao lado dele, o que representa um conforto extraordinário ao protagonista em sua solidão. É manifesto, porém, que o casal já perdeu algo importante do passado e nesse lance o herói rejeita o que poderia ter sido uma experiência incomparável: apaixonar-se por uma mulher inteiramente voltada para ele.
No registro das ambiguidades instituídas por James, Marcher não é necessariamente um homem de má-fé. É verdade que May, no decorrer da história, se mostra dedicada como nunca a ele, mas não para atender às intenções do amigo: ele não vampiriza ninguém e chega a achar que recebe mais do que oferece. Torna-se companheiro e acompanhante da admirável senhora e vai ao ponto de imaginar que deve se casar com ela.
Mas é justamente por a querer bem que se recusa a fazê-lo: afinal é um homem marcado e incapaz de arrastar aquele lindo "lírio branco" a uma caça à fera. Através dos olhos de May ele se julga um homem de coragem.
Quando, no final, com o passar das estações -a novela tem um tom e um ritmo sazonal, o amor é outonal, o texto começa e termina no outono, o rosto de May, já doente, é pura cera e reflete a luz do ano em declínio, como um agouro -ele se pergunta se a morte dela não poderia ser o salto da fera que ele estava esperando. Sua ansiedade, nesse aspecto, é tamanha que ele pondera se May não iria morrer sem saber o que poderia ter acontecido com ele... O leitor tem o direito de suspeitar que a verdadeira fera da história é o narrador de James, que salta na garganta da vítima e do leitor com luvas de pelica.
Mas a verdade é que a falha de percepção é de Marcher, o que não o isenta de culpa. Moralmente, o nó da novela é esse. May, por sua vez, conhece o companheiro por dentro, ou seja, tanto objetivamente como por amor. É por isso que o protege e tenta fazer dele alguém como qualquer outro, ou seja, livre de um assalto da fera que, feitas as contas, poderia distingui-lo dos demais como um ser de exceção. Mas é um erro considerar que o herói esteja a par do que acontece, pois só o desenlace será capaz de mostrá-lo.
May morre, Marcher faz uma longa viagem, volta, vai visitar o túmulo e, ao se encaminhar para lá, vê -no rosto de um viúvo que caminha em sentido contrário com o rosto desfeito em lágrimas- sua própria dor. Aí fica evidente que o acontecimento dramático, que aguardava fazia tanto tempo, já havia chegado e passado, mas ele não o percebera (ao contrário de May em vida): a possibilidade de uma existência madura, se tivesse amado aquela mulher que sempre o acompanhara no perigo.
É nesse momento que a fera salta da selva e Marcher se atira de rosto sobre a cova de May. "Era ela aquilo que ele havia perdido" e o transformara numa pessoa a quem nada havia acontecido sobre a Terra. Tragédia moderna do autoconhecimento, que só chega quando já é tarde demais -expressão cara a James.


Modesto Carone é escritor, tradutor, professor de literatura e autor, entre outros livros, de "Resumo de Ana" (Cia. das Letras).

A Vida Privada e Outras Histórias
Henry James
Tradução e prefácio: Onédia Pereira de Queiroz.
Nova Alexandria (Tel.0/xx/11/5571-5637).
208 págs., R$ 23,00

América
Henry James e outros
Tradução: Celso M. Paciornik
Iluminuras (Tel.0/xx/11/3068-9433)
256 págs., R$ 39,00



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