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Sinfonia cósmica
Obra torna acessíveis as idéias da física atual
HENRIQUE FLEMING
Quando, hoje em dia, desenhamos um
projeto de alguma complexidade, recomenda-se que seja modular, isto é, composto de partes autônomas, relativamente independentes que, no conjunto, desempenhem uma tarefa bem determinada. Os detalhes do funcionamento das
partes não são importantes para a grande
função: cada uma delas dá conta, à sua
maneira, de uma parte da tarefa.
Por exemplo, um televisor moderno é
composto de módulos independentes
que, no conjunto, produzem a imagem.
Quando a televisão não funciona, localiza-se o módulo defeituoso, e ele é substituído, sem se mexer no resto. Pode-se
também atualizar o aparelho, trocando
alguns módulos por outros, que realizam
a mesma função, mas que, no detalhe, são
completamente diferentes. Não importa:
isso é a modularidade.
É concebível que o Universo, o mais
complexo dos sistemas, pudesse ser modular. Sua descrição em larga escala (galáxias, aglomerados etc.) seria feita por
uma teoria bem definida (no caso, a relatividade geral de Einstein); a matéria de
que as estrelas são constituídas (somos
todos filhos das estrelas: os planetas, os
seres vivos...), ou seja, a descrição em pequena escala, seria feita por outra teoria
(no caso, a mecânica quântica). Numa falha da mecânica quântica, bastaria substituí-la (o módulo defeituoso) por outra,
sem consequências para a descrição do
Universo em larga escala.
O Universo, porém, não é assim. A teoria quântica não conhece limitações, prevendo, por exemplo, a existência de sistemas muito grandes e quânticos, como as
estrelas de neutrons. E as estrelas de neutrons existem. Por seu lado, a descrição
em larga escala tampouco prescinde da
mecânica quântica: o Universo já foi
muito pequeno, uma sopa de partículas
elementares, e sua composição atual foi
determinada num estágio em que a teoria
"boa" para descrevê-lo era a microscópica. Portanto é necessário que exista uma
teoria que, em certas condições, reproduza a relatividade geral; em outras, a mecânica quântica atual. E isso nos leva ao tema central do livro, a incompatibilidade
conceitual entre a mecânica quântica e a
relatividade geral.
Creio que Wigner tenha sido o primeiro a ver com clareza a origem dessa dificuldade: o conceito fundamental da relatividade, o "evento", algo que acontece
em um ponto, num determinado instante. Brian Greene discute um outro aspecto dessa incompatibilidade: a "lisura"
(não ética, mas geométrica) da relatividade geral contra as flutuações violentas típicas de uma gravitação quântica.
O autor expõe, neste livro, uma teoria
que é a única existente com uma proposta de conciliação entre a gravitação (a relatividade geral é uma teoria da gravitação), o eletromagnetismo e as demais forças necessárias para construir a matéria.
Não se pense que são só maravilhas: essa
teoria, a teoria das supercordas, é uma
teoria matemática extremamente coesa,
um mecanismo de relojoaria em que a falha de uma mínima peça é suficiente para
pôr tudo a perder. Ou seja, é extremamente elegante. Logo, é instável. E depende de hipóteses muito ousadas, como a
do uso, pela natureza, da supersimetria,
que, embora extensão "natural" de um
formalismo muito bem-sucedido (a teoria dos grupos), permanece, do ponto de
vista das observações, de caráter conjectural.
E, mesmo que se venha a conseguir indícios de que a natureza é "supersimétrica", ainda haverá muitíssimo a se fazer
para obter apoio empírico à teoria das supercordas. E, ainda, não é nada claro que,
em algum limite, ela venha a reproduzir a
teoria de Einstein, que possui em seu currículo um excelente acordo com a experiência. No entanto, ela contém um elemento essencial da gravitação, uma partícula de massa zero, sem carga e de spin
2. Basta isso para que se tenha uma força
atrativa -e que diminui de intensidade
de maneira inversamente proporcional
ao quadrado da distância.
Aliás, esse é o principal encanto, na opinião de muitos, dessa teoria: a maneira
pela qual a gravitação "apareceu" na teoria. Como já me referi a isso em outra resenha, e como Greene explica o fato com
grande competência, passo adiante. Basta dizer, porém, que o grande profeta das
supercordas, Edward Witten, defende a
idéia de que a teoria já fez uma previsão
muito importante -e inédita: previu a
existência da gravidade!
Antes que o leitor me abandone, trata-se de um livro extremamente bem escrito. É um tratado que versa sobre toda a física, com excelentes exposições da teoria
da relatividade e da mecânica quântica,
sem um única equação em todo o texto
(há uma em um subtítulo, a inevitável
equação de Einstein!). O conhecimento
atual da estrutura da matéria, isto é, a física das partículas elementares, é também
magistralmente descrito, sempre de maneira elementar, mas inspiradora.
O leitor chegará ao final, acredito, sem
se aborrecer. Não irá aprender a teoria
das supercordas. Mas isso também é verdade para um físico que leia este livro.
Sairá provavelmente muito interessado,
mas daí a ler os artigos originais sobre o
tema, há ainda um ano ou dois de estudos
intensos. Quanto à edição brasileira, é tão
bem cuidada que sou tentado a dizer que
é "melhor que a original": como comparar nomes banais como Slim e Jim com
Crispim e Joaquim?
O grande problema com a teoria das
supercordas é, então, a impossibilidade
presente de confrontá-la com a experiência. Pior, não se sabe de nenhum experimento que a possa testar significativamente, mesmo a médio prazo. Logo, é
uma teoria, mas não sabemos se é física.
Trata-se, então, de perda de tempo? Não.
Em primeiro lugar, é um grave erro subestimar o poder da matemática, de conduzir os físicos em suas explorações do
desconhecido. A matemática é o sexto
sentido dos homens (e o sétimo das mulheres).
Os exemplos são muitos. O mais importante é o da descoberta da antimatéria. Paul Dirac criou a mecânica quântica
relativística quando descobriu uma
equação que descrevia com extraordinária precisão o átomo de hidrogênio. Mas
essa equação tinha soluções demais, e
embaraçosas! Primeiro, tentou-se ignorá-las. Depois, pensou-se que a teoria estava errada. Finalmente, o próprio Dirac
atinou com uma interpretação para elas,
que consistia no que hoje chamamos de
antimatéria. Poucos anos depois, a antimatéria foi observada em laboratório,
com as exatas propriedades das soluções
embaraçosas da equação de Dirac. Em
segundo lugar, mesmo que não venha a
ser confirmada, a teoria das supercordas
terá tido o seu papel. Qual papel?
No seu extraordinário livro "História
Geral da Natureza e Teoria do Céu" (que
título!) diz Kant : "O edifício cósmico me
enche de mudo estupor". A palavra é esta, "estupor", com a sua conotação de paralisia. Há que evitar esse estupor. O melhor para isso, para o início da ação, é
uma teoria. A teoria das supercordas é a
nossa defesa atual contra essa paralisia.
Os famosos versos de Emily Dickinson
("There is no frigate like a book/ To take
us lands away") continuam cheios de significado, se em lugar de "livro" se puser
"teoria".
Alguns pequenos senões neste ótimo livro: a "aula inaugural" em que Riemann
apresenta sua generalização, para um número arbitrário de dimensões, da geometria diferencial de Gauss, não foi uma aula
inaugural (até pela data, 10 de junho), senão a prova didática da "Habilitation",
que creio corresponder à nossa livre-docência. O "inaugural" aí diz respeito ao
início oficial da carreira didática de Riemann, que, portanto, era ainda bem jovem, nessa ocasião.
Nos comentários sobre o papel dessa
aula na revolução não-euclideana na geometria há algum exagero, e, surpreendentemente, Greene omite o mais interessante: que, ao final da aula, Riemann
propõe explicitamente que a determinação da geometria do espaço seja um problema de física e que a natureza do espaço possa depender "das forças agindo sobre ele". Isso é puro Einstein, em 1853, 50
anos antes!
Henrique Fleming é professor do Instituto de Física da USP.
O Universo Elegante
Brian Greene
Tradução: José Viegas Filho
Cia. das Letras (Tel. 0/xx/11/3846-0801)
480 págs., R$ 37,00
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