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A descoberta da Bahia
MARCUS V. DE FREITAS
A coleção "Poetas do Brasil"
presta relevante serviço ao colocar à disposição dos leitores textos
cujas edições andavam esgotadas.
"Caramuru - Poema Épico do
Descobrimento da Bahia" bem
exemplifica o fato. A última publicação completa da obra data de
1945, pela extinta Edições Cultura.
O trabalho editorial bem cuidado,
uma característica da coleção, foi
desta feita dirigido por Ronald
Polito, professor da Universidade
Federal de Ouro Preto. A proximidade com os arquivos da Arquidiocese de Mariana (MG) tem
levado Polito a desenvolver nos
últimos anos um importante trabalho de edições críticas de textos
do Brasil colonial e imperial.
Além do texto de Santa Rita Durão, o volume traz uma introdução histórico-crítica feita pelo editor e um glossário bastante útil.
A importância da edição assenta sobretudo no fornecimento de
subsídios para um renovado estudo da poesia colonial. Se é quase
inexorável que cada geração crítica reescreva a história da literatura e da cultura a partir dos seus
pressupostos sincrônicos, esta
edição não foge à regra. Ronald
Polito enfatiza, na "Introdução", a
senda aberta pelos estudos pós-coloniais no que concerne à análise de textos do nosso período colonial sob a ótica de sua inserção
cultural. Antes de discorrer um
pouco mais sobre as consequências desse viés de leitura, vale pensar brevemente sobre o lugar de
um texto como "Caramuru" em
face de outros leitores contemporâneos.
Como objeto estético, o poema
parece dizer muito pouco a dois
tipos de leitores, sejam os amantes da poesia, que buscam nos
poemas de todas as épocas experiências poéticas que ainda e sempre falem ao seu próprio mundo;
sejam os poetas, leitores interessados que, ao se debruçarem sobre o seu ofício, estão constantemente reinventando a tradição e
reequilibrando o peso relativo de
cada autor na série histórica da
poesia.
A experiência épica realizada
em "Caramuru" diz pouco aos
nossos ouvidos, porque se prende
demasiado a uma intenção histórico-didática. A transcendência
do herói, que faz com que ele represente não uma personagem
historicamente localizada, mas
um ou vários aspectos da própria
condição humana, está ausente
do texto, e por isso um leitor de
outro tempo tem dificuldade em
se reconhecer naquela escrita, ao
contrário do que ocorre com "Os
Lusíadas" ou com o mini-épico
"I-Juca Pirama". Os navegadores
de Camões e o guerreiro tupi de
Gonçalves Dias permanecem porque suas perguntas, sua perplexidade e sua experiência humana,
organizadas pela força poética,
ainda são nossas de alguma forma.
Quanto aos leitores interessados, não há sinal evidente de que
os escritores contemporâneos se
debrucem sobre a obra de Santa
Rita Durão como o fazem com
Gregório de Matos, Tomás Antônio Gonzaga, Antônio Vieira ou
Cláudio Manuel da Costa. São,
portanto, os historiadores da literatura e da cultura os mais interessados no texto.
A primeira edição do "Caramuru" data de 1781, e seis edições foram feitas durante o século 19,
quando a demanda por uma imagem da nação motivou os escritores românticos a inventar seus
precursores, lugar ocupado por
Santa Rita Durão relativamente
ao indianismo. Assim o texto adquire mais importância literária
em relação ao movimento romântico do que em relação ao final do século 18, quando foi escrito. Se o romantismo constitui a
nossa época pós-colonial, faz sentido que Eneida Leal Cunha, em
tese defendida em 1993, discuta a
obra do autor setecentista a partir
dos parâmetros desconstrutivistas dos estudos pós-coloniais, como bem enfatiza Polito.
Cabe, entretanto, notar que essa
leitura, ao centrar-se na oposição
colonizador/colonizado, acaba
por reforçar a miragem de um
protoconceito de nação brasileira,
quando essa noção é ainda uma
miragem e não pode ser pensada
separadamente do Império. Polito, seguindo Eneida Leal Cunha,
visa criticar historiadores como
Antonio Candido e Sérgio Buarque de Holanda -os quais, seguindo os românticos, estavam
em busca da especificidade americana em relação à metrópole-,
mas acaba por incorrer no mesmo erro de posicionamento.
Apenas pelo acaso do nascimento em Mariana, Santa Rita
Durão deveria ser considerado
membro da "escola mineira". O
autor foi para Portugal aos 9 anos
de idade e nunca mais voltou à colônia, constituindo-se culturalmente em um autor português,
inserido no mundo do Império
português. O Canto 9 do poema,
que narra a guerra do Brasil contra os holandeses, exemplifica
com clareza esse ponto: nos dizeres do narrador, ao final da batalha "triunfou Portugal" -e sua
vitória fez com que o Brasil reconstituísse no hemisfério o império português.
Esse ponto deveria ter sido mais
trabalhado por Polito. Concordo
com a crítica à posição de Candido (sem diminuir a inestimável
contribuição de sua análise pioneira do sistema intelectual), a
qual busca a autonomia do espaço cultural brasileiro e encontra a
imagem de uma identidade dependente. Mas discordo da ênfase
na leitura desconstrucionista,
pois ela deriva de um foco hodierno de discussão e não contribui
para uma melhor compreensão
da inserção de Durão no mundo
português a partir do foco do autor, e não dos nossos interesses
pós-modernos.
A leitura de Leal Cunha e a ênfase de Polito são válidas, mas não
são diferentes da posição de Candido, uma vez que todas elas
constituem leituras construídas a
partir de recepções da obra. Os
modernistas leram com olhar romântico; os contemporâneos
lêem pela lente desconstrucionista. Deve-se agregar, a meu ver,
uma leitura que situe o autor no
tempo a partir de seus próprios
parâmetros, e esses nos levariam a
situar a obra no mundo português e não no brasileiro, fosse para realçar uma impossível autonomia, fosse para apontar a imposição colonialista.
Marcus Vinicius de Freitas é professor
de literatura portuguesa na Universidade Federal de Minas Gerais.
Caramuru
Santa Rita Durão
Introdução, organização e fixação
de texto: Ronald Polito
Martins Fontes (Tel. 0/xx/11/ 239-3677)
344 págs., R$ 29,80
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