São Paulo, sábado, 11 de agosto de 2001

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A descoberta da Bahia

MARCUS V. DE FREITAS

A coleção "Poetas do Brasil" presta relevante serviço ao colocar à disposição dos leitores textos cujas edições andavam esgotadas. "Caramuru - Poema Épico do Descobrimento da Bahia" bem exemplifica o fato. A última publicação completa da obra data de 1945, pela extinta Edições Cultura. O trabalho editorial bem cuidado, uma característica da coleção, foi desta feita dirigido por Ronald Polito, professor da Universidade Federal de Ouro Preto. A proximidade com os arquivos da Arquidiocese de Mariana (MG) tem levado Polito a desenvolver nos últimos anos um importante trabalho de edições críticas de textos do Brasil colonial e imperial. Além do texto de Santa Rita Durão, o volume traz uma introdução histórico-crítica feita pelo editor e um glossário bastante útil.
A importância da edição assenta sobretudo no fornecimento de subsídios para um renovado estudo da poesia colonial. Se é quase inexorável que cada geração crítica reescreva a história da literatura e da cultura a partir dos seus pressupostos sincrônicos, esta edição não foge à regra. Ronald Polito enfatiza, na "Introdução", a senda aberta pelos estudos pós-coloniais no que concerne à análise de textos do nosso período colonial sob a ótica de sua inserção cultural. Antes de discorrer um pouco mais sobre as consequências desse viés de leitura, vale pensar brevemente sobre o lugar de um texto como "Caramuru" em face de outros leitores contemporâneos.
Como objeto estético, o poema parece dizer muito pouco a dois tipos de leitores, sejam os amantes da poesia, que buscam nos poemas de todas as épocas experiências poéticas que ainda e sempre falem ao seu próprio mundo; sejam os poetas, leitores interessados que, ao se debruçarem sobre o seu ofício, estão constantemente reinventando a tradição e reequilibrando o peso relativo de cada autor na série histórica da poesia.
A experiência épica realizada em "Caramuru" diz pouco aos nossos ouvidos, porque se prende demasiado a uma intenção histórico-didática. A transcendência do herói, que faz com que ele represente não uma personagem historicamente localizada, mas um ou vários aspectos da própria condição humana, está ausente do texto, e por isso um leitor de outro tempo tem dificuldade em se reconhecer naquela escrita, ao contrário do que ocorre com "Os Lusíadas" ou com o mini-épico "I-Juca Pirama". Os navegadores de Camões e o guerreiro tupi de Gonçalves Dias permanecem porque suas perguntas, sua perplexidade e sua experiência humana, organizadas pela força poética, ainda são nossas de alguma forma.
Quanto aos leitores interessados, não há sinal evidente de que os escritores contemporâneos se debrucem sobre a obra de Santa Rita Durão como o fazem com Gregório de Matos, Tomás Antônio Gonzaga, Antônio Vieira ou Cláudio Manuel da Costa. São, portanto, os historiadores da literatura e da cultura os mais interessados no texto.
A primeira edição do "Caramuru" data de 1781, e seis edições foram feitas durante o século 19, quando a demanda por uma imagem da nação motivou os escritores românticos a inventar seus precursores, lugar ocupado por Santa Rita Durão relativamente ao indianismo. Assim o texto adquire mais importância literária em relação ao movimento romântico do que em relação ao final do século 18, quando foi escrito. Se o romantismo constitui a nossa época pós-colonial, faz sentido que Eneida Leal Cunha, em tese defendida em 1993, discuta a obra do autor setecentista a partir dos parâmetros desconstrutivistas dos estudos pós-coloniais, como bem enfatiza Polito.
Cabe, entretanto, notar que essa leitura, ao centrar-se na oposição colonizador/colonizado, acaba por reforçar a miragem de um protoconceito de nação brasileira, quando essa noção é ainda uma miragem e não pode ser pensada separadamente do Império. Polito, seguindo Eneida Leal Cunha, visa criticar historiadores como Antonio Candido e Sérgio Buarque de Holanda -os quais, seguindo os românticos, estavam em busca da especificidade americana em relação à metrópole-, mas acaba por incorrer no mesmo erro de posicionamento.
Apenas pelo acaso do nascimento em Mariana, Santa Rita Durão deveria ser considerado membro da "escola mineira". O autor foi para Portugal aos 9 anos de idade e nunca mais voltou à colônia, constituindo-se culturalmente em um autor português, inserido no mundo do Império português. O Canto 9 do poema, que narra a guerra do Brasil contra os holandeses, exemplifica com clareza esse ponto: nos dizeres do narrador, ao final da batalha "triunfou Portugal" -e sua vitória fez com que o Brasil reconstituísse no hemisfério o império português.
Esse ponto deveria ter sido mais trabalhado por Polito. Concordo com a crítica à posição de Candido (sem diminuir a inestimável contribuição de sua análise pioneira do sistema intelectual), a qual busca a autonomia do espaço cultural brasileiro e encontra a imagem de uma identidade dependente. Mas discordo da ênfase na leitura desconstrucionista, pois ela deriva de um foco hodierno de discussão e não contribui para uma melhor compreensão da inserção de Durão no mundo português a partir do foco do autor, e não dos nossos interesses pós-modernos.
A leitura de Leal Cunha e a ênfase de Polito são válidas, mas não são diferentes da posição de Candido, uma vez que todas elas constituem leituras construídas a partir de recepções da obra. Os modernistas leram com olhar romântico; os contemporâneos lêem pela lente desconstrucionista. Deve-se agregar, a meu ver, uma leitura que situe o autor no tempo a partir de seus próprios parâmetros, e esses nos levariam a situar a obra no mundo português e não no brasileiro, fosse para realçar uma impossível autonomia, fosse para apontar a imposição colonialista.


Marcus Vinicius de Freitas é professor de literatura portuguesa na Universidade Federal de Minas Gerais.

Caramuru
Santa Rita Durão
Introdução, organização e fixação de texto: Ronald Polito
Martins Fontes (Tel. 0/xx/11/ 239-3677)
344 págs., R$ 29,80



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