São Paulo, sábado, 11 de agosto de 2001

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Enredos

Barco a Seco
Rubens Figueiredo
Cia das Letras (Tel.0/xx/11/3846-0801)
192 págs., R$ 24,00

Com punhos de lenha, como diria Cabral, Rubens Figueiredo mantém sob absoluto controle o velame deste "Barco". Enredo torturado em torno de certo mistério ao final resolvido, figurações mergulhadas numa linguagem álgida -uma das linhas de nossa ficção contemporânea- conservam intencionalmente fora de foco a ferida inflamada do livro: elocubrações sobre o dilema da arte hoje.
Espécie de variação de "F for Fake" (Orson Welles espreita por uma fresta), o texto duplica o personagem-pintor que acaba por aderir à pele do próprio narrador, generalizando a questão e fazendo-a deslizar para a literatura. Poderão as obras de arte se adequar aos novos tempos sem vender a alma? Continuarão sendo obras de arte e ao mesmo tempo matéria de puro consumo, submetidas a interesses financeiros, envolvendo reputações e prestígios? Será a fidelidade possível (do artista, do crítico), se prejuízo ou lucro estão em jogo? Alguma saída à vista fora do compromisso?
Uma das alternativas inspira a imagem do barco a seco, morto sobre a areia. Outra, que abre e fecha o livro, a do nadador prestes a se afogar, prestes talvez a se salvar. Essa questão, de grande interesse, dedilhada incessantemente por críticos e artistas, é a mola forte do texto, bem acondicionada entretanto na pele fina da trama, na competência dos engastes. O problema (também mera provocação) é que a questão da arte surge como tema, não causando nenhum arrepio à perfeição da forma. Será ela mesma uma questão? O contrário, portanto, da venenosa pintura de Emilio Vega, sem dúvida o personagem arrebatador do livro.

No Silêncio das Nuvens
Edla van Steen
Global (Tel.0/xx/11/3277-7999)
224 págs., R$ 28,00

Edla van Steen vem há anos desenvolvendo intensa atividade cultural entre nós, aventurando-se por caminhos múltiplos, arrebatando prêmios variados, sendo traduzida em vários países. As cinco narrativas de "No Silêncio das Nuvens" são animadíssimas, com enredos que beiram às vezes o fantástico, às vezes o paródico, e são com frequência coloridos de humor. Pressinto que a epígrafe do livro, retirada de Drummond ("As coisas/ Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase"), seja um projeto estético da autora, certamente complexo e sofisticado. Por tal dificuldade -e aí vai uma provocação- não se ajustam de forma conveniente a banalidade intencional da linguagem e o excesso que pontua os textos. Além disso, fiel à vivacidade de Edla, apesar de mortes, loucura, "atração pelo lodo" etc., nada é triste. Aliás, alegríssimo. Não deixa de surpreender. Convido o leitor a conferir.

Música Anterior
Michel Laub
Cia. das Letras (Tel.0/xx/11/3846-0801)
112 págs., R$ 18,00

Acho surpreendente este livro, enraizado na narrativa tradicional de qualidade ("estamos sempre indo para casa", diz Raduan Nassar na epígrafe), mas que a reinventa por meio de uma curiosa flutuação do texto. Isso é conseguido por meio de um corte especial. Tratando-se de música, podemos dizer que o corte impulsiona a linguagem e inscreve nela, em forma de onda, um desenho fugaz: traço enigmático da memória, ao mesmo tempo imaginação do futuro, quando o narrador intui que não será mais inevitável pensar no que passou. Soa aqui uma música misteriosa, fazendo girar lentamente os corpos enlaçados. Laub usa o corte ao soltar o fio do relato, como se este fosse -mas não é, claro- uma conversa informal. O procedimento, milenar conforme sabemos, instaura pausas e elipses, atualizando-se de maneira variada.
Nesta "Música", nas voltas e mergulhos do fio, quando pensamos haver escapado o sentido inteiro do que se diz, ele volta, o fio, e nos esbofeteia. O relato -de perdas, de violência e de muita melancolia, como acontece em todas as histórias familiares- se desenrola ao rés do chão. Também no chão encharcado do banheiro de um bordel, onde flutua o sentido de uma ocorrência remota, entretanto sempre presente. Apesar da aparente pobreza de recursos, surpreendentemente a emoção lá está. De onde brota? De que canais ou de que filamentos, já que a página é tão fina? Além disso, a esfera psicológica se projeta no arco mais amplo da vida civil, mediante um processo criminal equívoco, em que o narrador funciona como juiz. Seremos também forçados a julgar? Olho em Laub, leitor.

VILMA ARÊAS



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