São Paulo, sábado, 11 de agosto de 2001

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Um espelho de São Paulo

BÁRBARA HELIODORA

"O objetivo da arte de representar, tanto no princípio quanto agora, era e é o de apresentar um espelho à natureza", e o trabalho de Sábato Magaldi e Maria Thereza Vargas é prova disso. Segundo informam desde logo, o livro é o resultado do convite feito a Sábato pelo jornal "O Estado de São Paulo" por ocasião de seu centenário, celebrado em 1975. Esclarecem ainda que, mesmo só vindo a publicar o trabalho em um volume único um quarto de século mais tarde, preferiram deixar as coisas como estavam, pois 25 anos a mais, com a fartura de informações, exigiriam outro tanto de texto. Como seria inevitável, a falta de informações mais precisas acerca da quase totalidade dos espetáculos montados pelo menos na primeira metade do período em questão faz com que o resultado desta cobertura da vida teatral de São Paulo seja desigual.
Mesmo assim a mera constatação do que era feito configura um retrato percuciente do desenvolvimento da própria cidade, pois o século investigado vê São Paulo passar de uma provinciana cidadezinha de 30 mil habitantes à complexa megalópole de hoje, com a vida teatral refletindo as mudanças sofridas para que chegasse onde chegou. Como as primeiras informações colhidas datam ainda da época do Império do Brasil, o jornal que foi fonte principal da pesquisa ainda se chamava "A Província de São Paulo", e, como capital de Província, a cidade não tinha atividades próprias no teatro, dependendo de visitas de companhias que chegassem ou do Rio de Janeiro ou da Europa.
A respeito dessas visitas européias é curioso notar que, a par da alta frequência das companhias francesas e principalmente italianas, aparecem grupos espanhóis, principalmente de "zarzuela" e, o que é mais surpreendente, há um número considerável de companhias portuguesas, de prosa tanto quanto de revistas.
Para os que consideram ser o brasileiro, ainda hoje, culturalmente colonizado e priorizador da coisa estrangeira, uma olhada para o que acontecia no início do último quartel do século 19 será motivo de orgulho, dado o considerável lastro cultural de feição já especificamente nossa. Se o século 18 já produzira por aqui alguma poesia em centros então privilegiados como Vila Rica -e no 19 despontara também a prosa-, não podemos esquecer que o teatro é sempre forma tardia e que, apesar das visitas mais ou menos constantes, Portugal não nos legou clássicos, a não ser o notável Gil Vicente.
Os senões do livro são resultado direto de sua origem: a encomenda feita incluía um levantamento do muito distante, a respeito do qual há quase nenhum material crítico, e do mais recente, tão conhecido que não se pode apresentá-lo apenas como levantamento -e entre uma e outra coisa hesitam esses "Cem Anos de Teatro em São Paulo". Se, em sua cobertura das últimas décadas do século 19, o livro permanece estritamente no nível do levantamento (e não há dúvida de que com isso tem o mérito de abrir o caminho para pesquisas futuras), aparecem também alguns momentos, geralmente pitorescos, que mereceram mais atenção da imprensa da época, como a chegada de Ernesto Rossi, acompanhada por bandas de música e toda espécie de festejos, ou a de Sarah Bernhardt, que tinha "grande massa de povo a esperá-la", manifestações que ator nenhum, nacional ou estrangeiro, parece merecer hoje em dia.

Riqueza de montagem
Por outro lado, quando testemunhamos, desde os últimos anos do século 20 e neste alvorecer do 21, o mar de monólogos e de peças de dois ou no máximo três atores, não deixa de causar inveja o que se fazia no final do século 19 em questão de riqueza de montagem. No Rio, havia as burletas com 15 ou 20 cenários e em São Paulo somos informados de que "O Corsário Negro" tinha no 3º ato "um jardim de Macau, enfeitado com estátuas", e, no 4º, a "fragata Isabel 2ª e o Brigue Voador", enquanto em uma revista do ano o quadro "Água em Seis Dias" apresentava "catadupas de água verdadeira". Como e por que teriam as companhias teatrais de então condições de montar tudo isso, com populações tão menores? Esse seria outro bom veio para a pesquisa.
Se a abolição da escravatura e a proclamação da República passam apenas de leve pelos palcos paulistas, nada é tão significativo para o retrato que o teatro faz da evolução da cidade e da fisionomia cultural de São Paulo quanto o aparecimento dos "filodrammatici", que expressavam tanto a preocupação da numerosa população italiana em preservar suas tradições culturais, como também -o que é mais importante- as preocupações de um povo que, com maior ou menor nível de escolaridade que tivesse, tinha atrás de si dois milênios de cultura e um nível de politização ainda desconhecido por aqui.
Ao longo de todo o percurso das primeiras décadas do século passado, o que o livro de Sábato e Maria Thereza mais salienta é uma espécie de contínua constatação de que a opereta, a burleta, o café-concerto, a revista, a comédia fácil parecem ter sempre a preferência do público, ficando um repertório mais exigente restrito a uma pequena elite intelectual. Porém as mudanças que vão tendo inexorável lugar mostram que, se Ibsen foi incompreendido e abominado em 1899, com "Casa de Bonecas", em 1915 ele já é aplaudido com "Espectros", e que, em 1916, "Flores de Sombra", de Cláudio de Souza, um texto de considerável requinte, é recebido como a obra-prima do teatro brasileiro.
Os "Cem Anos de Teatro em São Paulo" atestam ainda uma vez a pouca importância do teatro no Brasil em geral (e em São Paulo, em particular) para a intelectualidade de 22: se a Semana de Arte Moderna foi organizada para contestar o academismo, o teatro não chegava sequer a ter um academismo a ser contestado -e é soberanamente ignorado.
As décadas de 20 e 30 são caracterizadas pela afirmação de atores nacionais (Froes e Procópio, Dulcina, Jayme Costa) e pelo primeiro encontro de São Paulo com Pirandello, que tem na população italiana um apoio natural. E já começam a ser sentidos os primórdios das inquietações que irão conduzir ao moderno teatro brasileiro, ao que viria se juntar o jejum de visitas européias imposto a partir de 1939 pela Segunda Guerra Mundial. O panorama apresentado a partir desses momentos é muito mais detalhado; e, se o livro continua informativo, a partir daqui ele passa a ter uma postura crítica, avaliadora, que altera a natureza do texto e fica por vezes arbitrária, pois a necessidade da compressão privilegia alguns espetáculos e autores e passa voando por cima de outros.
Fica muito bem colocada a mudança radical do panorama teatral de São Paulo a partir da fundação do Teatro Brasileiro de Comédia em 1948, que ainda uma vez retrata a mudança da própria importância de São Paulo como cidade, seja como crescimento populacional, seja como força econômica, seja como crescente reduto cultural. O teatro paulista reflete, a partir daí, com o Arena, com o Oficina, a tomada de consciência de si mesmo e, a seguir, das dores de crescimento às terríveis dores da censura. Todo livro panorâmico tem limitações, mas este ao menos situa os acontecimentos em sua perspectiva correta e com isso presta um imenso serviço.
A riqueza iconográfica deste "Cem Anos" é uma de suas mais atraentes qualidades, pois permite um acompanhamento mais vivo do caminho percorrido.


Bárbara Heliodora é crítica de teatro, tradutora e autora de "Falando de Shakespeare" (Perspectiva), entre outros.

Cem Anos de Teatro em São Paulo (1875-1974)
Sábato Magaldi e Maria Thereza
Vargas
Senac (Tel. 0/ xx/11/ 284-4322)
454 págs., R$ 45,00



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