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Um espelho de São Paulo
BÁRBARA HELIODORA
"O objetivo da arte de representar, tanto no princípio quanto
agora, era e é o de apresentar um
espelho à natureza", e o trabalho
de Sábato Magaldi e Maria Thereza Vargas é prova disso. Segundo
informam desde logo, o livro é o
resultado do convite feito a Sábato pelo jornal "O Estado de São
Paulo" por ocasião de seu centenário, celebrado em 1975. Esclarecem ainda que, mesmo só vindo a
publicar o trabalho em um volume único um quarto de século
mais tarde, preferiram deixar as
coisas como estavam, pois 25
anos a mais, com a fartura de informações, exigiriam outro tanto
de texto. Como seria inevitável, a
falta de informações mais precisas acerca da quase totalidade dos
espetáculos montados pelo menos na primeira metade do período em questão faz com que o resultado desta cobertura da vida
teatral de São Paulo seja desigual.
Mesmo assim a mera constatação do que era feito configura um
retrato percuciente do desenvolvimento da própria cidade, pois o
século investigado vê São Paulo
passar de uma provinciana cidadezinha de 30 mil habitantes à
complexa megalópole de hoje,
com a vida teatral refletindo as
mudanças sofridas para que chegasse onde chegou. Como as primeiras informações colhidas datam ainda da época do Império
do Brasil, o jornal que foi fonte
principal da pesquisa ainda se
chamava "A Província de São
Paulo", e, como capital de Província, a cidade não tinha atividades
próprias no teatro, dependendo
de visitas de companhias que chegassem ou do Rio de Janeiro ou da
Europa.
A respeito dessas visitas européias é curioso notar que, a par da
alta frequência das companhias
francesas e principalmente italianas, aparecem grupos espanhóis,
principalmente de "zarzuela" e, o
que é mais surpreendente, há um
número considerável de companhias portuguesas, de prosa tanto
quanto de revistas.
Para os que consideram ser o
brasileiro, ainda hoje, culturalmente colonizado e priorizador
da coisa estrangeira, uma olhada
para o que acontecia no início do
último quartel do século 19 será
motivo de orgulho, dado o considerável lastro cultural de feição já
especificamente nossa. Se o século 18 já produzira por aqui alguma
poesia em centros então privilegiados como Vila Rica -e no 19
despontara também a prosa-,
não podemos esquecer que o teatro é sempre forma tardia e que,
apesar das visitas mais ou menos
constantes, Portugal não nos legou clássicos, a não ser o notável
Gil Vicente.
Os senões do livro são resultado
direto de sua origem: a encomenda feita incluía um levantamento
do muito distante, a respeito do
qual há quase nenhum material
crítico, e do mais recente, tão conhecido que não se pode apresentá-lo apenas como levantamento
-e entre uma e outra coisa hesitam esses "Cem Anos de Teatro
em São Paulo". Se, em sua cobertura das últimas décadas do século 19, o livro permanece estritamente no nível do levantamento
(e não há dúvida de que com isso
tem o mérito de abrir o caminho
para pesquisas futuras), aparecem também alguns momentos,
geralmente pitorescos, que mereceram mais atenção da imprensa
da época, como a chegada de Ernesto Rossi, acompanhada por
bandas de música e toda espécie
de festejos, ou a de Sarah Bernhardt, que tinha "grande massa
de povo a esperá-la", manifestações que ator nenhum, nacional
ou estrangeiro, parece merecer
hoje em dia.
Riqueza de montagem
Por outro lado, quando testemunhamos, desde os últimos
anos do século 20 e neste alvorecer do 21, o mar de monólogos e
de peças de dois ou no máximo
três atores, não deixa de causar inveja o que se fazia no final do século 19 em questão de riqueza de
montagem. No Rio, havia as burletas com 15 ou 20 cenários e em
São Paulo somos informados de
que "O Corsário Negro" tinha no
3º ato "um jardim de Macau, enfeitado com estátuas", e, no 4º, a
"fragata Isabel 2ª e o Brigue Voador", enquanto em uma revista
do ano o quadro "Água em Seis
Dias" apresentava "catadupas de
água verdadeira". Como e por
que teriam as companhias teatrais
de então condições de montar tudo isso, com populações tão menores? Esse seria outro bom veio
para a pesquisa.
Se a abolição da escravatura e a
proclamação da República passam apenas de leve pelos palcos
paulistas, nada é tão significativo
para o retrato que o teatro faz da
evolução da cidade e da fisionomia cultural de São Paulo quanto
o aparecimento dos "filodrammatici", que expressavam tanto a
preocupação da numerosa população italiana em preservar suas
tradições culturais, como também -o que é mais importante- as preocupações de um povo
que, com maior ou menor nível
de escolaridade que tivesse, tinha
atrás de si dois milênios de cultura
e um nível de politização ainda
desconhecido por aqui.
Ao longo de todo o percurso das
primeiras décadas do século passado, o que o livro de Sábato e
Maria Thereza mais salienta é
uma espécie de contínua constatação de que a opereta, a burleta, o
café-concerto, a revista, a comédia fácil parecem ter sempre a
preferência do público, ficando
um repertório mais exigente restrito a uma pequena elite intelectual. Porém as mudanças que vão
tendo inexorável lugar mostram
que, se Ibsen foi incompreendido
e abominado em 1899, com "Casa
de Bonecas", em 1915 ele já é
aplaudido com "Espectros", e
que, em 1916, "Flores de Sombra",
de Cláudio de Souza, um texto de
considerável requinte, é recebido
como a obra-prima do teatro brasileiro.
Os "Cem Anos de Teatro em
São Paulo" atestam ainda uma
vez a pouca importância do teatro
no Brasil em geral (e em São Paulo, em particular) para a intelectualidade de 22: se a Semana de
Arte Moderna foi organizada para contestar o academismo, o teatro não chegava sequer a ter um
academismo a ser contestado -e
é soberanamente ignorado.
As décadas de 20 e 30 são caracterizadas pela afirmação de atores
nacionais (Froes e Procópio, Dulcina, Jayme Costa) e pelo primeiro encontro de São Paulo com Pirandello, que tem na população
italiana um apoio natural. E já começam a ser sentidos os primórdios das inquietações que irão
conduzir ao moderno teatro brasileiro, ao que viria se juntar o jejum de visitas européias imposto
a partir de 1939 pela Segunda
Guerra Mundial. O panorama
apresentado a partir desses momentos é muito mais detalhado; e,
se o livro continua informativo, a
partir daqui ele passa a ter uma
postura crítica, avaliadora, que altera a natureza do texto e fica por
vezes arbitrária, pois a necessidade da compressão privilegia alguns espetáculos e autores e passa
voando por cima de outros.
Fica muito bem colocada a mudança radical do panorama teatral de São Paulo a partir da fundação do Teatro Brasileiro de Comédia em 1948, que ainda uma
vez retrata a mudança da própria
importância de São Paulo como
cidade, seja como crescimento
populacional, seja como força
econômica, seja como crescente
reduto cultural. O teatro paulista
reflete, a partir daí, com o Arena,
com o Oficina, a tomada de consciência de si mesmo e, a seguir,
das dores de crescimento às terríveis dores da censura. Todo livro
panorâmico tem limitações, mas
este ao menos situa os acontecimentos em sua perspectiva correta e com isso presta um imenso
serviço.
A riqueza iconográfica deste
"Cem Anos" é uma de suas mais
atraentes qualidades, pois permite um acompanhamento mais vivo do caminho percorrido.
Bárbara Heliodora é crítica de teatro,
tradutora e autora de "Falando de Shakespeare" (Perspectiva), entre outros.
Cem Anos de Teatro em São Paulo (1875-1974)
Sábato Magaldi e Maria Thereza
Vargas
Senac (Tel. 0/ xx/11/ 284-4322)
454 págs., R$ 45,00
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