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Toussaint e a revolução
A primeira república negra da história
MODESTO FLORENZANO
A Revolução de São Domingos (1791-1804) e Toussaint L'Ouverture (1743-1803), seu mais destacado protagonista,
tiveram de esperar pela publicação do livro de C.L.R. James, em 1938, para ganhar, finalmente, um historiador à altura
de suas próprias e extraordinárias grandezas históricas. Produzida fora do mundo acadêmico, por um autor ainda jovem
(37 anos), com ambições literárias (novelista e dramaturgo), ex-jogador e jornalista de críquete, ativista negro e militante
trotskista, nascido e criado em Trinidad
(mas vivendo na Inglaterra desde o início
dos anos 30), "Os Jacobinos Negros" não
parecia uma obra destinada a ser um
clássico.
Mas escrito com paixão e arte (a descrição é eletrizante e a narrativa vertiginosa); com inspiração na teoria marxista
(utilizada de maneira aberta e criativa) e
na própria prática de vida do autor ("A
questão racial, em política, é subsidiária à
questão das classes, e pensar no imperialismo em termos de raças é algo desastroso. Mas negligenciar o fator racial como
meramente incidental é um erro, menos
grave apenas do que o tornar fundamental"); com imaginação histórica aguçada
e fértil; e com método científico (rigorosa
pesquisa em fontes primárias e secundárias sobre São Domingos e sobre a Revolução Francesa, com destaque para historiadores como Michelet, Jaurès, Mathiez
e Lefebvre), o livro de James tornou-se
obra de referência obrigatória.
Como prova, vejamos a opinião de dois
consagrados historiadores da escravidão,
muito conhecidos entre nós, os norte-americanos E. Genovese e H. Klein. O
primeiro, um marxista, escreve em 1983:
"Qualquer consideração sobre as revoltas
deve começar pelo grande trabalho histórico de James". O segundo, um liberal,
em 1987: "Sobre a rebelião haitiana James
mantém-se a fonte clássica". Explica-se
assim por que, quase meio século depois,
no preâmbulo à 3ª edição, de 1980 (a 2ª,
de 1963, foi corrigida e acrescida de um
apêndice intitulado "De Toussaint L'Ouverture a Fidel Castro"), o autor pôde se
dar ao luxo de escrever: "O ano de 1938 já
passou há muito tempo, e esperei muitos
mais até que outras pessoas "entrassem
em campo" e fossem além de onde eu estava capacitado a ir. Mas nunca fiquei
preocupado com o que iriam encontrar,
pois estava convencido de que os alicerces das minhas idéias permaneceriam
imperecíveis".
História complexa
Em "Os Jacobinos Negros" temos uma
história complexa e densa, com um sujeito e objeto duplo: um herói coletivo (as
massas de trabalhadores escravos) e individual (Toussaint L'Ouverture), estrutural (a sociedade escravista e colonial) e
conjuntural (a Revolução Francesa), interno (classes e raças engolfadas "num
conflito em que os partidos se confundiam com as classes e as classes com as
cores") e externo (guerra contra forças de
ocupação francesas, inglesas e espanholas).
Na abordagem de James, o herói coletivo, os escravos negros, "trabalhando e vivendo juntos em grupos de centenas nos
enormes engenhos de açúcar", estava
"mais próximo de um proletariado moderno do que qualquer outro grupo de
trabalhadores daquela época, e o levante
foi, por esta razão, um movimento de
massas inteiramente preparado e organizado". E que se tornou irresistível graças
a um indivíduo, um herói excepcional,
Toussaint L'Ouverture: "O autor acredita, e está convicto", afirma no prefácio à
1ª edição, "que, entre 1789 e 1815, com a
única exceção do próprio Bonaparte, nenhuma outra figura isoladamente foi, no
cenário da história, tão bem-dotada
quanto esse negro, que havia sido escravo
até os 45 anos de idade. Contudo, não foi
Toussaint que fez a revolução, foi a revolução que fez Toussaint, e mesmo isso
não é toda a verdade".
Pois "seria um erro grosseiro acreditar
que tudo isso (a criação de um exército
disciplinado de ex-escravos vitorioso sobre poderosas forças militares francesas,
inglesas e espanholas, e o estabelecimento de um governo forte por toda a ilha)
fosse inevitável. Em um determinado estágio, no meio do ano de 1794, as potencialidades que se agitavam no caos começaram a ser moldadas e soldadas por essa
personalidade poderosa, e daí por diante
é impossível dizer onde as forças sociais
terminam e a marca da personalidade começa. Basta dizer que, se não fosse por
ele, a história seria completamente diferente".
A idéia de James de rotular Toussaint e
seus principais lugar-tenentes de jacobinos negros não poderia ter sido mais
acertada. Os jacobinos negros, como os
brancos, estavam possuídos daquilo que
até mesmo os contemporâneos que mais
os odiavam não puderam deixar de reconhecer: muita vontade e energia, convicção e pragmatismo, determinação e coragem, audácia e capacidade de liderança
("Nada poderia resistir à bravura dos
"sans-culottes'", dizia Toussaint). Daí por
que jacobinos, brancos e negros, e "sans-culottes", brancos e negros, conseguiram
o que parecia impossível: liquidar os inimigos internos (a contra-revolução) e expulsar os externos (ocupação militar estrangeira).
Mas, tal como na França, uma vez alcançada a vitória, a ditadura e o terror
não mais funcionaram a fim de impedir
que os brancos continuassem a tirar proveito econômico e a lutar pela volta da escravidão e a fim de obrigar os negros,
agora livres, a trabalhar, em caráter forçado, para os antigos proprietários. Os 500
mil negros "desejavam o extermínio de
seus opressores", pois "todos os brancos
nas colônias eram iguais, aves de rapina
que se alimentavam da ignorância e da
falta de experiência das grandes massas
de trabalhadores negros" e estes, "assim,
como os cavalos, os cachorros, os gatos e
alguns animais selvagens, julgavam um
homem não pela cor da sua pele, mas pela forma como ele se comportava". Por
sua vez, os 30 mil brancos "derrubariam
seu próprio mundo por inteiro" para defender a "diferenciação entre um homem
branco e um homem de cor".
Toussaint e Robespierre
Toussaint, como Robespierre, "destruiu sua própria ala esquerda e com isso
selou sua sorte. A tragédia é que não era
necessária. Robespierre atacou as massas
porque era burguês, e elas, comunistas...
Mas entre Toussaint e seu povo não havia
diferenças fundamentais de pontos de
vista e intenções. Sabendo que o problema racial era político e social, tentou tratá-lo de uma forma puramente política e
social. Foi um erro grave".
Depois da leitura de "Os Jacobinos Negros" somos levados a afirmar que a Revolução em São Domingos constitui, juntamente com a independência dos EUA,
o acontecimento histórico mais importante ocorrido em toda a América, do século 16 ao fim do 19, isto é, do início ao
fim da escravidão negra no Novo Mundo.
Por ter sido vitoriosa (a primeira e única
revolta de escravos a conquistar em definitivo o poder), foi um divisor de águas
na história da escravidão negra na América.
Desmentindo os que sustentam que
não se aprende nada com a história, a
criação do Haiti em 1804 (primeiro Estado independente da América Latina e
primeira república negra em termos
mundiais) repercutiu intensamente por
toda a América escravista e serviu de lição: nunca mais as classes dominantes no
Novo Mundo iriam permitir que uma
nova revolta de escravos pudesse tomar o
poder e, enquanto a instituição sobreviveu, os escravos iriam passar, simultânea
e contraditoriamente, por uma vigilância
e repressão mais intensas e uma melhora
nas suas condições de vida.
Assim sendo, seria preciso perguntar
ao historiador Michel Vovelle por que,
em seu recém-traduzido "Jacobinos e Jacobinismo" (Edusc), que pretende tratar
do fenômeno em todas as suas dimensões e lugares (inclusive com uma vaga
menção a "grupos isolados encontrados
em Salvador na revolta dos "Sapateiros'"),
ele jamais se refere aos jacobinos negros e
ao livro de James!
Mas muito mais grave é o que aconteceu com a tradução, que acaba de sair, do
volume 3 da "História da América Latina" (Edusp/ Imprensa Oficial), obra coletiva da Cambridge University, organizada por Leslie Bethell, que simplesmente
suprimiu (com a anuência do editor inglês) toda a parte 2, "The Caribbean", da
versão original que contém dois capítulos: "Haiti and Santo Domingo: 1790-c.1870" e "Cuba from the Middle of the
Eighteenth Century to c.1870"!
Modesto Florenzano é professor de história na
USP.
Os Jacobinos Negros - Toussaint L'Ouverture e a Revolução de São Domingos
C.L.R. James
Tradução: Afonso Teixeira
Boitempo (Tel. 0/xx/11/3865-6947)
380 págs., R$ 37,00
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