São Paulo, sábado, 11 de agosto de 2001

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Décio Pignatari escreve resenha-depoimento sobre o artista plástico Luiz Sacilotto

DÉCIO PIGNATARI

O livro de Enock Sacramento é uma biodescrição e uma bio-homenagem a Luiz Sacilotto, um dos mais significativos representantes daquela legião estrangeira estranhíssima que inaugurou a arte concreta no Brasil, nos anos 50. Sendo descritivo e apologético, é compreensível que, praticamente, renuncie ao viés crítico, evite polêmicas maiores e retire, por vezes, o seu homenageado, do cone cegante do holofote das contradições.
Vale dizer: passa-o a ferro na prancha plana da exaltação à brasileira, acadêmica e niveladora. Sim, porque extrai de Sacilotto o fervor de suas idéias e crenças e a singularidade de sua postura criativa, mergulhando-o no costumeiro caldo das apreciações críticas dos mais variados tempos e das mais díspares qualificações. Ressalve-se que foi modesto e até provinciano, corretamente provinciano, irmamente provinciano, tal como, de resto, sob certos aspectos, a personagem-objeto de seu livro-evocação, de seu livro-exaltação. Mas Enock Sacramento é o primeiro a fazê-lo, assim como a cidade de Santo André, que o exaltou, com suas esculturas públicas monumentais, tal como ele sonhou e merece.
De outra parte -e de minha parte-, não sei se incorrerei em falhas, não digo semelhantes, mas correspondentes, em minha pretensão de falar mais de Sacilotto do que do livro, já que o destino histórico nos uniu e juntou em muitos lances e peripécias de um longo percurso, tão instigante quanto perturbado.

Pinta de operário
Dizia o poeta Ronaldo Azeredo que nunca tinha visto um artista com tanta pinta de operário, tal como aparece na iconografia portinaresca ou do realismo socialista. De fato, mesmo sem ser parecido, sempre me lembrava Miguel Hernandez, o "cara de patata", o poeta comunista espanhol morto na guerra civil. Tinha e tem a aparência rude, era parco no falar (hoje, mais ainda, quando a idade e uma paralisia parcial obrigam-no a pagar um duro pedágio ao "way of all flesh"), embora não lhe faltasse empolgação; mas tinha, além da obra, dois traços de surpreendente requinte: um bom gosto nipo-mondriânico em relação aos objetos (tinha o espírito de "designer") e, o que é muito raro entre os artistas plásticos, cultivava com amor a música dodecafônica e pós-dodecafônica de Schoenberg, Alban Berg e Webern, sem falar no cinema expressionista alemão (deleitava-se com as críticas de Rubem Biáfora, em "O Estado de S. Paulo").
Diga-se, de passagem, que, sob essa rubrica, os escritores brasileiros fazem bem triste figura, pois só admiram artes e artistas já legitimados; excetuem-se, no mundo antigo, Manuel Bandeira; no pós-antigo, João Cabral (Miró, arquitetura) e Murilo Mendes; no atual, Augusto de Campos, apaixonado conhecedor e divulgador da música experimental do século 20.
Antes de mais nada, porém, Luiz Sacilotto foi um artista ideológico, fiel seguidor de Waldemar Cordeiro, até o extremo fim. Busque-se entre os nossos ideólogos marxistas dos mais variados carizes e matizes, até o golpe de 1964, alguma referência mais fundamentada a Antonio Gramsci, e pouco se encontrará. Mário Pedrosa talvez seja a exceção; dos comunistas, nem falar. Waldemar Cordeiro foi o primeiro artista-líder ideológico brasileiro. Sob o guarda-sol humanístico de Gramsci, uniu Fiedler a Marx e baniu da arte a idéia tacanha de que o posicionamento político-ideológico implica a idéia de um tema ou assunto.
A pura visualidade de Fiedler implicava processos, não temas; a idéia visível (o ícone, em termos semióticos) e a racionalidade sensível seriam mais profundamente vinculados a uma cultura popular da era industrial, no sentido de conscientização para a arte, do que a da representação de operários erguendo uma barragem. Em seu aplicado rudimentarismo minimalista, Sacilotto foi o único que se imbuiu da sistemática frugalidade de meios, materiais e processos: a dobradura e o corte de uma chapa metálica para um tótem concreto, beleza da lógica visual ao nível da evidência, como se fora uma gravata ou um padrão de tecido, dialogava com a lógica das operações destinadas à produção de bens de consumo ou de máquinas destinadas a produzir máquinas. Donde a idéia de fabricar peças matriciais, inspiracionais de outras, utilitárias. Enfim, para nós, poetas, o que interessava (segundo essa lição) era fazer poesia, e não poemas. Seja breve, ou seja: nuclear.
Em meados da década de 60, desfez-se de vez o grupo, com Cordeiro tentando uma carreira solo, com a arte pop e o computador dessignificando os antigos conflitos (figurativismo versus abstracionismo, arte concreta versus arte abstrata). Sacilotto entrou em crise artístico-existencial por uma década, a ditadura militar ajudando. Pescando e biritando com amigos às margens dos rios e guarapirangas da vida. Quando re-emergiu, ficou perplexo com o que viu, leu e assistiu: o ódio à arte concreta tinha crescido a ponto de a denominação ter sido banida e substituída por um oportunístico "projeto construtivo brasileiro", onde cabiam marioandradinos, comunistas, salazaristas, psicanalistas, neotendencistas, neoconcretistas, tropicalistas. Tardia, mas boa, a hora em que se resgata a obra dos artistas concretos e ex-concretos -Waldemar Cordeiro, Luiz Sacilotto, Hermelindo Fiaminghi, Maurício Nogueira Lima, Geraldo de Barros-, todos em companhia de Alfredo Volpi, sempre descoberto e redescoberto como o grande artista brasileiro do século 20.

Teatro amador
Ocorrem-me as lembranças de dois momentos da vida do grupo, envolvendo Sacilotto, o primeiro imerso na clareza e no fervor dos inícios; o segundo, na celeuma do fim. Era 1953, eu ainda vivia em Osasco, então subúrbio e bairro de São Paulo, enturmado com uma rapaziada de farras e futebol. Um tanto subitamente, decidiu-se fazer teatro amador: como começar? Por alguma razão, Cordeiro sugeriu um encontro com o cônsul da Polônia, de nome Grodzinski, creio eu (posteriormente, integrou a comissão internacional que promoveu o acordo de paz entre as duas Coréias). Estranho, fervilhante e atilado sujeito. De Jânio Quadros, dizia que era homem perigoso e que não devia ficar só: os políticos, especialmente os de esquerda, deviam "grudar" nele; do Brasil, dizia que era país de fácil acesso, como a mão na água, mas bastava retirar a mão e nem sinal ficava. Por isso mesmo, era terra dos contatos constantes. Belo jantar regado a vinho, para Cordeiro, Sacilotto, Nilo Odália e eu (mas a memória falha para nomes e gentes).
Como fazer teatro? Fazendo. Chegamos a construir o próprio palco, num salão de baile. Sacilotto resolveu com simplicidade e eficiência o difícil problema da verga de sustentação do pano de boca e ainda projetou, fez a maquete e orientou os trabalhos cenográficos para a peça antimilitarista "A Culpa de Ser Homem" ("Der arme Mensch", em alemão, de um obscuro Wolfgang Altendorf), que traduzi de uma versão italiana.
Memorável evento provinciano do nosso Teatro de Cartilha, que, no programa, anunciava a sua próxima montagem: "O Rei da Vela"...
Lá pelo fim da década, o grupo de artistas, ao qual me agregara como colega-aprendiz, resolveu tentar a experiência de ateliê coletivo. Foi breve essa história, com pouca pintura e muita desordem, estudos e materiais pisoteados pelo chão, contas a pagar e "Il Gran Capo" utilizando o local para encontros amorosos, levado por uma oswaldiana voragem senti-mental. Afastei-me, ligado apenas a Fiaminghi, nem sequer fui buscar minha pasta de estudos, voltando-me para publicidade, semiótica, design, ensino, poesia. Quase todos nos encontramos no velório e enterro de Cordeiro (inclusive Volpi), que culminou numa cantina, em clássica comemoração hogarthiana e joyciana: comes, bebes, risos, lágrimas, cansaço de fim de época. Nauseado com artes e artistas, como que a imitar Sacilotto, afastei-me por muitos anos de ateliês e mostras.
Quando voltei a tomar gosto pela arte, Fiaminghi me presenteou com uma pasta contendo o que conseguira recolher dos meus estudos em guache. E quando revia Sacilotto, ficava intrigadamente comovido: ele era o mesmo. O grupo continuava existindo e se chamava Luiz Sacilotto.

O grande surto
Contudo fique claro que, mesmo uma resenha-depoimento quase necessária, como esta, com certo viés crítico, não poderia ser elaborada sem o trabalho de base de Enock Sacramento e o singular apoio múltiplo que conseguiu obter. Apreciações críticas mais aprofundadas hão de surgir ao longo das décadas, sempre que se lançar uma visada histórica a esse notável século 20 artístico brasileiro, especialmente nos 15 anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Impressiona ver o quão pouco se fizera até Anita Malfatti e a Semana de Arte Moderna e o quanto se fez nas oito décadas seguintes!
O ouro e um certo sonho de liberdade criaram as condições para a aparição de Aleijadinho e de outras preciosidades do barroco brasileiro; a liberdade laico-republicana e a produção agro-industrial propiciaram o grande surto das artes moderna e pós-moderna, com uma surpreendente participação feminina, única na América Latina e mesmo rara em relação à Europa.
Esta fotoverbopictórica biografia de Enock Sacramento traz-me à mente, outra vez, a reflexão sobre o ângulo diferencial entre a visão dos que vivenciaram uma experiência e a dos que fizeram e fazem a apreciação externa. Para os primeiros, houve uma verdade; para os segundos, apenas fanatismo, sectarismo, radicalismo ou a mera espera, alimpada de esperança, da sedimentação de uma idéia (a tal "obra legitimada"). Várias vezes me referi a esse tema, incluindo um conto, sob a rubrica "Depois da Verdade". Toda pessoa, grupo ou nação mergulhou um dia nas águas vivificantes de uma verdade. Depois da verdade não sobrevém outra nem morre de todo a primeira, que vira fantasma "encostado".
Depois da verdade, o que mais, Sacilotto? A glória, ora!


Décio Pignatari é poeta e autor, entre outros livros, de "Errâncias" (Senac).

Sacilotto
Enock Sacramento
Sacramento Editor (Tel. 0/xx/11/3672-6807)
120 págs., R$ 70,00



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