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O laboratório de Gramsci
A atualidade do pensador italiano
RUBEM BARBOZA FILHO
A publicação em português dos
"Cadernos do Cárcere" recoloca a
indagação acerca da atualidade de
Gramsci. Teria este sardo, aprisionado pelo fascismo, algo a dizer a
um mundo profundamente distinto daquele em que viveu e refletiu? Especialmente o Gramsci
destes dois volumes, guardaria ele
ainda reservas teóricas para ajudar a decifrar um novo estágio do
capitalismo, caracterizado por
fundas alterações produtivas, pelo crescente papel do avanço tecnológico, pela relativização do
mundo do trabalho, pela morte
aparente dos grandes sujeitos sociais, pela redefinição das funções
dos Estados nacionais, por uma
ordem internacional submetida a
um sistema financeiro resistente a
qualquer forma de controle e por
um permanente estado de déficit
utópico, descarnadas as utopias
que cinzelaram o mundo moderno?
Fantasiado de labirinto, o laboratório conceitual de Gramsci
exerceu um tremendo impacto libertador e renovador na tradição
do marxismo ocidental durante o
pós-guerra e a conjuntura da
Guerra Fria, estendendo sua influência para o território próprio
da tradição liberal-democrática,
como no exemplo de Norberto
Bobbio. Gramsci fez de sua desgraça pessoal a ocasião para um
acerto de contas com o horizonte
predominante da esquerda e do
marxismo, tentando entender as
mutações em curso no mundo e
os processos estruturais que sustentavam o fascismo na Europa e
a progressiva hegemonia norte-americana na economia do Ocidente.
O que eliminou qualquer interesse em reconstituir uma ortodoxia marxista, autorizando a
forma labiríntica de seu pensamento e a relação agônica com
seus conceitos, martelados por
sucessivas indagações, ampliações e correções. Gramsci redimensionou e atualizou a imaginação política das forças de esquerda no Ocidente desenvolvido, livrando-as do tributo à velha idéia
jacobina da revolução como assalto ao poder, substituindo-a pelo exigente programa de uma
transformação de longo curso.
Essa redescoberta da política,
mediante uma rede de categorias
inovadoras e originais, adequadas
para o entendimento da complexa trama das relações entre estrutura e superestrutura no Ocidente, fez de Gramsci uma figura referencial na Europa e nos EUA. Mas
a sua fortuna não permaneceu
circunscrita ao mundo desenvolvido. Também aqui, nesta nossa
sempre inquieta e confusa América Latina, o pensamento gramsciano se deixou apreender como
obra aberta, dotada de enorme
capacidade para orientar os atores, de esquerda ou não, empenhados em superar a proliferação
de regimes autoritários e modernizantes como saídas para os nossos dilemas.
Ocidental e retardatário
Embora progressivamente dedicado ao estudo de mudanças
mundiais no capitalismo, Gramsci nunca deixou de se preocupar
com a Itália, um país ocidental e
retardatário. Razão pela qual o
seu pensamento revelava uma
surpreendente "tradutibilidade"
para as circunstâncias latino-americanas, enriquecendo nossa
perspectiva com temas e conceitos como hegemonia, guerra de
posição, revolução passiva, função dos intelectuais, sociedade civil, americanismo e fordismo, vários deles presentes nestes volumes. Esse instigante acervo teórico permitiu à esquerda uma compreensão mais precisa dos processos em curso e a construção de
poderosas alianças destinadas a
desalojar os regimes autoritários
do continente. Um olhar retrospectivo sobre os movimentos de
democratização dos anos 80 não
pode ignorar esse legado de
Gramsci em nossa América.
Mas, se Gramsci foi um intérprete autêntico e criativo de seu
tempo, teria ele atualidade num
mundo que cansou de ser moderno e quer ser pós-moderno, sociedade complexa ou coisa semelhante?
Ainda que soe um pouco acaciano, o principal desafio da filosofia e da ciência política contemporâneas é pensar instituições e
mecanismos que façam dos sistemas econômico e burocrático elementos subordinados a processos
de crescimento da igualdade, da
justiça e da liberdade, sem desconhecer as profundas novidades
que explodiram nas últimas três
décadas. Em que pese a complexidade e a relevância de reflexões
universalistas e normativas como
as de John Rawls, Richard Rorty,
Jürgen Habermas, para citar alguns, ou do pensamento comunitarista, todas parecem envolvidas
num problema derivado de suas
pretensões de universalidade: a
dificuldade em determinar ou
convocar atores capazes de oferecer tradutibilidade às suas formulações, devolvendo-lhes, por outro lado, a riqueza da vida e do
real. Sem atores, a imaginação
utópica se perde ou serve apenas
como critério geral para a reparação de danos, sem a ambição de
subordinar o mundo das coisas
ao mundo dos homens.
É nesse ponto que as categorias
gramscianas, com as torções e
atualizações necessárias, recuperam o antigo frescor e vitalidade.
Elas continuam categorias modelares para a compreensão deste
mundo novo, incorporando com
facilidade as contribuições das
tentativas mencionadas. Elas não
exigem, por exemplo, a oposição
entre Gramsci e Habermas, convidando antes à fecundação mútua, ao estilo do próprio Gramsci.
Mas, além de heuristicamente poderosa, a rede gramsciana de categorias continua a exibir uma qualidade especial, própria de sua origem: ela permanece contaminada
pela febre de ação, apresentando-se como consciência que deseja
abrir possibilidades sempre novas
para a intervenção dos homens
no mundo das coisas e dos fatos.
O laboratório gramsciano, invadido e utilizado por europeus,
norte-americanos e latino-americanos, continua fiel à intenção
com que foi erguido: a de renovar
as possibilidades de atuação para
formas novas e emergentes de
subjetividade humana. Agora que
os fatos e acasos parecem nos governar, nada mais atual do que essa inspiração embutida no pensamento de Gramsci, ou seja, essa
busca de atores para a reinvenção
da política como dimensão capaz
de construir um mundo humanamente objetivo, ou objetivamente
humano.
Rubem Barboza Filho é professor de
ciências sociais na Universidade Federal
de Juiz de Fora e autor de "Tradição e Artifício - Iberismo e Barroco na Formação
Americana" (UFMG).
Cadernos do Cárcere
Antonio Gramsci
Tradução: Carlos Nelson Coutinho,
Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira
Civilização Brasileira (Tel. 0/xx./21/
2585-2000)
Vol. 3 - Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política
428 págs., R$ 42,00
Vol. 4 - Temas de Cultura. Ação Católica. Americanismo e Fordismo
394 págs., R$ 42,00
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