São Paulo, Sábado, 11 de Setembro de 1999
Próximo Texto | Índice

Contra o retrocesso


O novo livro de ensaios de Roberto Schwarz é discutido por Sergio Miceli


SERGIO MICELI

Em 1968, fiz o seminário "O Jovem Marx", lecionado pelo Ruy Fausto mocinho. A aula transcorria num diapasão de sufoco: o aluno expunha o texto, sentado na cadeira do professor, sobre o estrado, diante da turma, a que se seguiam os comentários dos colegas, a apreciação implacável do mestre e, ufa, o alívio da vítima. Eu vinha da sociologia e mal conseguia disfarçar o quanto me sentia meio bicão naquele torneio filosófico de rigor conceitual. Frequentei depois um curso de Antonio Candido, cujos tópicos semestrais eram as estéticas contemporâneas e as tragédias históricas de Shakespeare. As aulas do Ruy serviram para me familiarizar com as exigências da explicação de texto, conforme o figurino francês; os ensinamentos de Candido ajudaram a definir objetos de análise.
O livro de Roberto Schwarz remexe a fundo com os alicerces dessa tradição intelectual que se constituíra na Universidade de São Paulo, em letras, filosofia e ciências sociais. Os ensaios de homenagem a Candido nos conduzem ao âmago das preocupações do autor e aos registros pelos quais se movimenta a análise das formas literárias, numa prosa craneada e revigorante. O vulto do mestre vai se compondo numa aproximação em focos cruzados, ora desvelando os achados críticos, ora explorando os modos de recuperar as contribuições luminosas dos predecessores, ora enfim pontuando notações prosaicas nas quais palpitam o gosto pela literatura, o interesse pelo país, a compaixão pelos humildes e oprimidos e o entusiasmo investido no trabalho intelectual de ponta.
A idéia de formação, no sentido de reaver energias e significações do passado num domínio particular de atividade, nos faz mergulhar nos parâmetros do método. Ela consiste num interesse pela inteligibilidade da atividade cultural local, em sintonia com as transformações dos padrões internacionalizados de fatura. E busca apreender os resultados dessa atividade como soluções originais e, a seu modo, reveladoras de forças produtivas impostas de fora para dentro, num vaivém de escoras, pontos de vista, engenhos técnicos, materiais reciclados, misto de invenção e ventriloquia.
Ao ressaltar o reaproveitamento das observações de José Veríssimo sobre o arcadismo, convertidas por Candido em força produtiva a serviço de sua reflexão, Roberto adverte quanto às dificuldades de se adotar sem mais modelos internacionais de explicação, sem se atentar para os travos suscitados pelas experiências locais nos processos de modelagem dos focos adequados de compreensão e análise de textos literários.
Nesse passo, invoca o clima intelectual vigente nos anos 40 e 50, em especial na Faculdade de Filosofia, o qual se traduziu numa postura acadêmica nutrida pela pesquisa de fontes primárias, pelo confronto de esquemas de explicação, pelos incentivos aos riscos da imaginação, em meio à emulação de uns pelos outros. Lembrando pela irradiação de seu impacto o Verdi do Risorgimento italiano, Candido se tornou o paradigma de excelência intelectual das gerações subsequentes, o espelho em que tanto Roberto como todos nós nos miramos.

A OBRA
Sequências Brasileiras Roberto Schwarz Companhia das Letras (Tel. 0/xx/ 11/866-0801) 250 págs., R$ 24,00



Como bem o demonstram as desnorteantes mudanças de registro, transitando das constrições históricas para as peculiaridades das escolas filosóficas ou, então, averiguando o descompasso entre as tendências catastróficas da economia e o contrapeso integrador exercido pela cultura, Roberto Schwarz é um dos mais apetrechados críticos da cultura nestas paragens. Alentados pelo marxismo centro-europeu e alemão -Lukács, Marcuse, Adorno, Benjamin, expoentes da escola de Frankfurt-, os escritos de Roberto guardam as forças e os impasses dessa tradição sedimentada de pessimismo, rebatidos pela imersão na tradição brasileira e temperados pelas vivências de sua geração em meio à enrascada de alternativas de engajamento intelectual e político nesses últimos 40 anos.
0

Sequência dialética
O texto "Altos e Baixos da Atualidade de Brecht" revela o requintado rendimento analítico a que pode chegar o método empregado, ao correlacionar a fortuna crítica de um autor no centro e na periferia, ou melhor, as formas sutis de impacto exercidas pelo teatro épico de vanguarda em configurações assumidas num contexto desenvolvimentista, sem abrir mão da voz pessoal em pentimento.
Até onde reconheço o apuro de confecção, esse texto talvez represente o exemplo acabado de "sequência brasileira", entendida em termos de confronto de determinações, pulsantes de energia própria na metrópole e aqui, que se fecundam umas às outras apesar de não parecerem possuir flancos promissores de engate. O autor se vale de Brecht para uma esplêndida digressão sobre os rumos da cultura brasileira, dando continuidade à linha de reflexões contidas no famoso artigo "Cultura e Política, 1964-1969", no qual investigava as condições da hegemonia cultural exercida pela esquerda em pleno regime militar.
O ensaio começa por examinar o impacto da proposta brechtiana no teatro profissional brasileiro dos anos 50 e 60, num retrospecto das soluções dadas pelos encenadores à idéia de distanciamento e dos ajustes adotados pelos dramaturgos de esquerda perante os objetivos doutrinários e os recursos de carpintaria do teatro político.
No rescaldo desses nexos, evidenciam-se os ligamentos entre procedimentos antiilusionistas do teatro épico e projetos revolucionários de transformação social. Após sintetizar a incompletude desses experimentos tanto nas artes cênicas como na esfera da militância política, Roberto desenha um panorama soberbo das mudanças desencadeadas pelo golpe de 64 na cena cultural do país, instilando nessa mexida uma dose ardida de pessimismo e desesperança.
Mas o melhor ainda está por vir. As 15 páginas finais desmontam alguns procedimentos acionados por Brecht em seu processo de criação artística: junções surpreendentes de embocaduras e acentos; a liga entre temas políticos candentes e formas expressivas canônicas; o enxerto nas falas dos personagens de retalhos de textos clássicos. O esmiuçamento desse ardil satirizante se faz na cola do texto dramático, contrastando, por exemplo, o repertório de tópicos elevados da lírica alemã -a aspiração ascensional dos humanos, a tragédia das quedas, a idolatria dos píncaros e desfiladeiros etc.- aos golpes baixos e brutais da exploração capitalista do trabalho.
Outros ensaios curtos -as resenhas das ficções de Paulo Lins, Chico Buarque e Jean-Claude Bernardet, essa última com filtro mais sensível- confirmam o fôlego do desígnio crítico, capaz de identificar a matéria social que impregna a forma literária para poder, com a lucidez embebida dessa paisagem contraditória, desentranhar as astúcias de fabricação mobilizadas. Ao empenho em tirar luz do subentendido contextual para medir a voltagem do ficcional corresponde capricho idêntico em cumprir o trajeto reverso, sem descurar dos ingredientes comezinhos do ofício crítico: os embustes do narrador, os acentos da prosa, as nascentes das vozes, as faíscas de invenção, os acordes de estilo, os fios de verdade.

Sequência autobiográfica
Além das dicas cifradas -alusões aos anos vividos na França, créditos às lições de Anatol Rosenfeld e sobretudo o manancial de recursos proporcionado pela familiaridade com a língua e literatura alemãs-, o depoimento "Um Seminário de Marx" diz muito sobre a experiência de vida e trabalho daquela geração de intelectuais enraizados na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo. Roberto focaliza a sociabilidade de um círculo restrito de amigos, jovens assistentes em início de carreira, no intuito de recuperar as marcas do marxismo, apreendido e readaptado à luz das questões da realidade brasileira, no trabalho de integrantes do grupo.
O quadro de aspectos desse convívio informal inclui desde comilanças que se seguiam às discussões de texto, as coordenadas da conjuntura política internacional (críticas ao stalinismo, Revolução Cubana etc.), a distância em relação ao oficialismo político e ao mundo empresarial, até os sentimentos de isolamento quase autárquico no interior da faculdade. Ao cabo das reminiscências, a prova de vigor intelectual passa por uma análise dos trabalhos de Fernando Henrique Cardoso, Fernando Novais e Maria Sylvia de Carvalho Franco.
Não tenho reparos à substância dos argumentos; as razões de sua força analítica e explicativa são aquelas recuperadas no ensaio. Todavia, algumas observações me chamaram a atenção para outras dimensões daquela experiência de formação intelectual sobre as quais Roberto silencia. Logo depois de admitir o quanto a faculdade exercera influência decisiva sobre o marxismo dos jovens docentes, Roberto recua adiante ao afirmar "que a institucionalização da inteligência tem por sua vez um preço alto em alienação e embotamento". A despeito do que se queira pensar a respeito do papel cumprido pelas instituições, o cerne da questão consistiria em averiguar o componente classista da nova clientela recrutada pela Faculdade de Filosofia, bem como as condições daí advindas para construção do lugar social adequado à feitura desse projeto intelectual.
O contingente de diplomados na Faculdade de Filosofia em São Paulo, entre 1936 e 1955, comportava uma proporção elevada de mulheres, de moças e rapazes procedentes de famílias imigrantes, sobretudo italianas, e ainda uma parcela expressiva de estudantes judeus. José Arthur Giannotti e Octavio Ianni, descendentes de italianos, Paul Singer, Michael Löwy, Ruy Fausto, Gabriel Bolaffi e Roberto, oriundos de famílias judias, alguns deles da primeira geração familiar a frequentarem uma escola superior, haviam escolhido a formação que lhes parecia condizente com pretensões medianas de projeção quando confrontadas aos privilégios inerentes aos títulos nas carreiras liberais das elites tradicionais. Por sua vez, os "brasileiros" do grupo, entre os quais se incluíam Candido, Fernando Henrique, Ruth Cardoso, Bento Prado Jr., provinham de elites empobrecidas, de famílias ligadas à burocracia estatal (civil e militar), ao magistério secundário e ao desempenho de encargos intelectuais e culturais.
Os horizontes intelectuais e políticos dessa geração de acadêmicos em tempo integral, praticantes de um marxismo universitário, foram se definindo nesse caldo de cultura, bem distinto da proximidade da inteligência carioca em relação às instâncias governamentais e partidárias na capital federal. As consequências dessa inserção social se fizeram sentir sobre suas disposições extremadamente receptivas à carreira e ao trabalho acadêmicos, bem como sobre o elenco de temas e objetos de investigação com os quais "democratizaram", no dizer de Candido, os retratos do país. O "seminário de Marx" era bastante representativo da variedade étnica do corpo docente e um tanto reticente em suas relações com as "iguais" mulheres.

O colega presidente
Um segundo ponto da argumentação de Roberto, relativo aos efeitos políticos desencadeados pelos acertos de Fernando Henrique em seus diagnósticos sobre o país, merece adendos. Embora o depoimento não tenha a pretensão de esclarecer o "caminho que levou da Faculdade de Filosofia da rua Maria Antônia e daquele grupo de estudos à projeção nacional e ao governo do país", à frente reitera-se o vínculo entre a justeza das interpretações de Fernando e a sua indiscutível ascendência intelectual e política no interior da esquerda. Ainda que se reconheçam a inteligência, a acuidade e o brilhantismo do então jovem sociólogo, as raízes de sua autoridade devem ser buscadas numa trama de condicionantes em que se mesclam filiações disciplinares, redefinições de alvos de interesse, escolhas de parcerias e alianças institucionais, emergindo da gradativa reviravolta provocada por tais práticas, como um fiador de peso da crescente influência intelectual norte-americana nas ciências sociais no Estado, até então moldadas pelos ditames dos professores europeus aqui atuantes.
Apenas para refrescar a memória, de volta do Chile em 1968, Fernando Henrique conquistou a cátedra de ciência política por conta de seus méritos, é óbvio, sem deixar, entretanto, de manifestar sua recente iniciação na cozinha da ciência política norte-americana, como que abjurando em surdina a linha de história política predominante na área. Inúmeros trabalhos dessa época sinalizam seu reposicionamento perante uma ciência política institucionalista, se bem que continuasse, em textos e intervenções orais, buscando reacomodar tais idéias em análises penetrantes das relações entre grupos estratégicos da sociedade brasileira. A platéia de estudantes e pesquisadores costumava aguardar com excitação o momento de sua fala, faça-se justiça, enxuta e eletrizante.
Também a fundação do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) se inscreve nesse movimento de habilitação ao futuro de "condottiere" do que viria a ser uma nova coalizão de centro-direita, na medida em que os dirigentes dessa entidade (e dos demais centros privados abertos em seguida) não puderam deixar de adotar certos tópicos da agenda de trabalho definida pelas fundações estrangeiras, responsáveis pela viabilização financeira de iniciativas externas à jurisdição universitária. Tais considerações me parecem indispensáveis no sentido de esbater uma concepção algo idealista que pode se desprender do ensaio de Roberto, como se os integrantes do "seminário de Marx" fossem artífices do destino, deixando na sombra do subentendido mediações cruciais de suas práticas. A exemplo de tantos outros mitos de origem, o marxismo uspiano levanta uma das pontas do véu dessa acidentada narrativa, que está longe de ser uma saga heurística.

(Des) afinidades eletivas
Não quero fechar a resenha sem explicitar uma divergência. Outro dia um jornalista me perguntou quais as razões do impacto diminuto das idéias de Robert Kurz sobre os cientistas sociais. Respondi que essa reação se devia à generalidade das teses sobre o estágio atual e as perspectivas de mudança da ordem capitalista em âmbito mundial. Relendo os comentários do nosso Roberto a respeito do xará, fui me convencendo do acerto da maioria das caracterizações e questionamentos, bem como da ambição e envergadura de seu diagnóstico, mas continuei resistindo diante dessa explicação "ex-machina" por meio do fetichismo da mercadoria.
Para os interessados em acertos e erros dos prognósticos de Marx ou, então, para aqueles aficionados de vôos interpretativos em escala planetária, talvez fosse mais profícuo encarar as contribuições dos grandes comparatistas da sociologia histórica contemporânea -Barrington Moore Jr., Perry Anderson, Thompson, Tilly ou Wallerstein-, em vez de sorver inspiração em autores prejudicados pelo descompasso entre um lastro precário de evidências e a crônica olímpica de um desenlace vaticinado. Na verdade, o entusiasmo de Roberto em relação a Kurz torna mais transparente certa toada normativa, algo peremptória, a qual, para usar um verbo do tempo do onça, empana por vezes o lustre da argumentação e trinca a fluência persuasiva.
Malgrado a barbárie neoliberal hoje imperante no arraial da cultura, o livro de Roberto é prova contundente de preservação de uma vida intelectual inventiva e original no país. Escrevendo com ânimo contrário ao retrocesso, sem dar pelota às divisões disciplinares e nichos acadêmicos, Roberto diz o que pensa, nomeia de frente os interlocutores, peita discordâncias, defende com arrojo e desassombro suas tomadas de posição, na prática de uma crítica da cultura em cuja matéria se consubstanciam os registros altos e baixos da aventura civilizatória abaixo do Equador.


Sergio Miceli é professor titular de sociologia na USP e autor, entre outros, de "Imagens Negociadas - Retratos da Elite Brasileira - 1920-1940" (Companhia das Letras).


Próximo Texto: Celso Frederico: Globalização e atraso
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.