São Paulo, Sábado, 11 de Setembro de 1999
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Entre agulhas e preconceitos


Estudo analisa o tema da mulher na obra romanesca de Lima Barreto


ANTONIO ARNONI PRADO

Os estudos sobre o tema da mulher -na obra de Lima Barreto ou no contexto cultural do período literário que a baliza- têm ampliado os níveis de compreensão do lugar ocupado por ela no âmbito das relações sociais vigentes na Primeira República. Assinale-se a propósito que, graças a investigações como essas, tornou-se possível reavivar os movimentos que a elas correspondem no campo das transformações da sociedade brasileira na transição para o novo século.
O que é preciso, no entanto, é não perder de vista que a ênfase na incursão temática pelos textos literários, por mais tentadoras que se mostrem as perspectivas da colheita será sempre, em relação à obra estudada, uma etapa parcial de indução provisória que só ganha sentido quando integrada como função específica ao conjunto do projeto estético e intelectual do autor. Caso contrário, ficará -nos termos de Pietro Citati- como um ato isolado de reflexão pré-crítica ou um gesto de interpretação voluntária com efeitos hermenêuticos para fora do universo da obra.

O escritor e o jornalista
Essa a primeira impressão que nos ocorre diante deste ensaio voltado para o tema da mulher na obra de Lima Barreto. Em primeiro lugar, porque ele parte de uma estratégia de leitura que opõe um pressuposto estético equivocado a uma certeza ideológica irredutível, que se constrói fora do texto e dele não depende enquanto procedimento de interpretação e análise. O equívoco vem de que a autora confunde perspectiva narrativa com estrutura literária, misturando num primeiro momento gêneros e instâncias que o método de Lima Barreto a rigor não autoriza, e separando-os, depois, para salvaguardar as inevitáveis diferenças entre o projeto do escritor e o estilo do jornalista.
Declarar que Lima Barreto desestrutura a narrativa sem dizer como nem onde não desobriga a autora de se deter nas diferenças que ela mesma reconhece persistirem na fisionomia dos gêneros de ficção do escritor. E isso pela simples razão de que tais diferenças é que tornam possível compreender a função de uma personagem, de uma cena, de um comentário ou de um diálogo em relação ao princípio ou à ordem lógica de sua construção simbólica na estrutura do texto.
Mas a intenção aqui é de outra ordem e vem claramente imposta pelo segundo movimento da leitura, este interessado em sobrepor ao texto um argumento irredutível que o precede: o de converter a ficção de Lima Barreto numa amostragem linear e comentada do problema feminino na transição do século 19 para o 20. Mendonça Teles, que assina a orelha do livro, não poderia ter sido mais claro ao nos dizer que "vendo a personagem como uma simbolização da mulher na sociedade da época e estabelecendo um contraponto entre a ficção e os dados sociológicos recolhidos sobre a mulher, a estudiosa discorre claramente sobre as condições de vida da mulher casada e da solteira; sobre a virgindade, o adultério e a prostituição; sobre o lar, a educação e o trabalho fora do lar; chegando a reafirmar, com Lima Barreto, que as feministas, embora caolhas, possuíam o seu lugar".
No entanto, o modo como esses temas se sobrepõem ao texto não apenas descontextualizam a voz autoral como por vezes a submetem a uma intenção que ela originalmente não tem nem poderia ter. Aqui a incursão da autora vai a ponto de corrigir a própria fabulação do "Policarpo Quaresma" ao propor, por exemplo, que Ismênia fosse mais instruída e interiormente mais forte para que a sua tragédia (Cavalcanti a abandonara) não se prolongasse e ela não se tornasse uma pobre coitada incapaz de recuperar-se do golpe sofrido e de livrar-se da idéia do casamento.

Libelo aberto
Para a autora, que não teve o cuidado de ver no "Diário Íntimo" o esboço literário da composição da cena do enterro de Ismênia, de nada aproveitam a fragmentação e o corte que instauram, no plano estético, a incomunicabilidade da elocução seja na instância narrativa, seja no desenho das personagens e de sua evolução no espaço fechado que sustenta o romance. Nas suas mãos, a notação da ambiguidade converte-se numa espécie de libelo aberto em que "o narrador (simplesmente) acusa a sociedade e seus preconceitos pelo que ocorreu a Ismênia".
Por outro lado, como não entender como interferência do argumento na composição da obra algumas observações como a da pág. 217, segundo a qual, lamentando a falta de incentivo para que as mulheres e as personagens femininas aumentassem "sua capacidade intelectiva", a autora desdobra a notação social e a transfere para o universo imaginário do escritor, ressentindo-se do fato de que nele, ao contrário do que ocorre com as personagens femininas, o que predomina é o excesso de oportunidades e de opções de trabalho à disposição das personagens masculinas.

A OBRA
Entre a Agulha e a Caneta: A Mulher na Obra de Lima Barreto
Eliane Vasconcellos
Lacerda Editora (Tel. 0/xx/21/537-8275)
369 págs., R$ 28,00



Mais grave do que isso, no entanto, são as conjecturas daqui decorrentes e que chegam ao extremo, como no caso do nível de instrução da personagem Olga à pág. 215, de dizer pelo autor o que ele não disse, mas se sugere que deveria ter dito diante dos dados extraídos da realidade exterior ao texto. "Não há no texto de "Triste Fim" -nos diz com efeito a autora- referência alguma à escolaridade de Olga, mas por sua posição social e por seu hábito de leitura, deduzimos que, assim como as outras duas (Efigênia e Edgarda, citadas no mesmo parágrafo), andou pelo colégio das religiosas e certamente também aprendeu francês e lia seus romances no original...", com o que se permite distinguir onde o narrador não distinguiu.
A ênfase do argumento vem talvez como um complemento ao inconformismo da autora ante o fato, por ela deplorado, de Lima Barreto ter sempre se manifestado contra o ensino religioso das irmãs de caridade, não lhe bastasse saber ter sido ele a certa altura da vida um empenhado simpatizante do anarquismo. Isso, porém, não justifica, por exemplo, a restrição que, apoiada em Jacobina Lacombe, ela dirige na pág. 210 ao autor do "Policarpo Quaresma", um escritor que, segundo ambos, não foi capaz de se dar conta do papel positivo da educação proporcionada pelas irmãs de caridade, responsável, segundo pretendem, por "uma mudança significativa no comportamento da mulher brasileira e consequentemente da própria vida familiar", nos termos de Riolando Azzi, recolhidos pela autora na mesma página. Lima Barreto, segundo Eliane, "só viu o aspecto negativo, ou seja, a alienação das nossas moças da realidade social e a influência que a Igreja exercia nas decisões governamentais por meio de suas ex-educandas".
Por esse caminho o argumento vai se enredando em suas próprias contradições. Afinal, como conciliar os ataques discricionários de Lima Barreto a suas personagens femininas oriundas dos colégios de freiras com a terna e afetiva convivência entre o major Quaresma e sua afilhada Olga, a mesma Olga que segundo Eliane -o narrador não relata, mas ela, como vimos, se encarrega de o fazer por ele- teria passado pelas irmãs de caridade, onde aprendera francês e lia romances no original? E todos sabemos que Olga, das personagens do "Triste Fim", é talvez a única a ter compreendido o significado alegórico do fracasso do desgovernado major ante a quimera ideológica da pátria impossível com que sonhara.
A autora, no entanto, mesmo reconhecendo a importância de Olga, considera o romancista muito aquém de sua personagem, ao nos dizer -como se esse fosse um problema do romance- que "se a sociedade do século 19 tivesse dado às mulheres maiores oportunidades, Olga ter-se-ia destacado entre elas". Lima Barreto fica assim com a culpa de não se ter antecipado ao seu tempo, deixando de valorizar a mulher como devia.

Motivo livre
O pior é que, em nome da identidade da personagem feminina, contradições como essa se vão repetindo ao longo do ensaio, como ocorre nas págs. 132-33, onde se confunde o uso do aposto do nome na ficção como um sinal de submissão da personagem, quando sabemos que muitas vezes se trata de um motivo livre indispensável para a compreensão, na trama, da própria natureza da ação das personagens. Isso é visível por exemplo no paralelismo simbólico do poder irresponsável dos governantes, que Lima Barreto desdobra, na fábula dos "Bruzundangas", em dois signos aberrantes -o presidente Mandachuva e a Mme. Mandachuva.
Para a ensaísta, no entanto, pouco importa o alcance crítico da convenção simbólica da sátira, interessada em projetar como sinônimos ficcionais dois deploráveis usurpadores do poder. A seu ver, o respeito à senhora do Presidente impunha que em qualquer caso Mme. Mandachuva fosse obrigatoriamente chamada pelo seu próprio nome, como seria desejável na vida real, pois só assim ela teria recuperada a sua verdadeira identidade.
O raciocínio, é claro, vem mais uma vez de um argumento, exterior ao texto, que pouco tem a ver com o processo de construção ficcional do romance. "Pobre daquela que não fosse definida em função (sic) de um homem! A mulher era tida como menor e o próprio Código Civil perpetuava-lhe esta situação, colocando-a ao lado dos relativamente incapazes". É indiscutível a procedência da constatação no plano institucional, mas seria o caso de perguntar: o que tem isso a ver com a fisionomia literária dos "Bruzundangas"? Lê-lo por esse viés não seria antes uma forma de desfigurá-lo? Até onde, na verdade, é possível sustentar metodologicamente a redução em abismo em que vão caindo as categorias literárias do texto ante o argumento, sob muitos aspectos irrefutável, de que foram produzidas num contexto claramente desfavorável à mulher?
Está claro que, assim reduzidas, muitas das observações positivas reveladas pelo ensaio perdem seu foco de origem no conjunto da elucidação hermenêutica. E o que fica para o leitor são recortes fragmentados e por vezes repetidos de uma extensa paráfrase que a rigor não precisava do texto para nos mostrar a dura realidade de seu objeto. Bastavam-lhe o aparato erudito e a documentação de época que alimentam a leitura e se sobrepõem com profusão de detalhes à dilacerada "inventio" do projeto literário do escritor.


Antonio Arnoni Prado é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas.



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