São Paulo, Sábado, 11 de Setembro de 1999 |
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A energia do espírito
IRENE CARDOSO
Um projeto cultural para uma Alemanha moderna, nos anos 20, a partir da posição "otimista" de Flitner de que "uma nova forma de vida parecia nascer e atuar na sociedade industrial igualitária", a partir de uma "visão pluralista e liberal entre diferentes posições religiosas, nacionais e éticas", que viabilizaria um "consenso em profundidade". Um projeto de esclarecimento, sem dúvida, mas cuja luz deveria provir da "energia soberana do espírito", cuja expressão seria a da "fé cristã". Nesse projeto, a pedagogia como "ciência do espírito", a partir da influência de Dilthey, por intermédio de Nohl, deveria buscar, para Flitner, a fundamentação teórico-filosófica da "realidade educacional, como parte de uma realidade mais abrangente, qual seja, a histórico-social, objeto das ciências do espírito que só se permite apreender na complexidade (...), no exercício pendular inerente à própria lógica da vida humana histórica (...), lógica comprometida na origem com a energia do espírito, que é (...) expressão evidente da fé cristã". Um projeto cultural que fazia do Movimento da Escola Superior Popular a expressão da "vontade sequiosa do povo por desenvolvimento espiritual", ao mesmo tempo em que atribuía "responsabilidade" aos "homens cultos em relação a essa necessidade do povo de cultivar o espírito". Projeto cultural "humanista" que encontrou os seus limites, quando interrompido em 1933, momento de desativação dos círculos de discussão e da Reforma Pedagógica, mas também de recolhimento de Flitner, em Hamburgo, quando se dedica a seu trabalho sobre Goethe e a seus estudos sobre a história das formas de vida européia. Momento em que se eclipsa a possibilidade do seu "consenso em profundidade", diante do consenso totalitário do Terceiro Reich alemão. Torna-se bastante instigante acompanhar a trajetória desse educador e pensador da cultura, os desdobramentos da sua "reflexion engagée", quando se refere "aos pressupostos teológicos e filosóficos sempre atrelados aos contornos histórico-sociais e políticos em que se verifica uma concepção ou teoria pedagógica". Especialmente se se puder pensar também, se não os limites, pelo menos o confronto, do seu conceito de "educabilidade", condicionada pela exigência do despertar educacional dos sujeitos para a atividade do amor e da fé, pela "força incondicional da tradição cristã", com as "descobertas" contemporâneas de um outro pensador da cultura, Freud, a respeito da "ineducabilidade do inconsciente", da associação entre amor e ódio, que o levou a dizer que "o progresso fez um pacto com a barbárie", que a "desumanidade" do gênero humano estava inscrita no projeto da sua "humanidade" e que a religião cristã, a "religião do amor", havia produzido a intolerância. Irene Cardoso é professora do departamento de sociologia da USP. Texto Anterior: Isabel Lustosa: Órfão de pátria Próximo Texto: Luiz Paulo Rouanet: O teste da tolerância Índice |
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