São Paulo, Sábado, 11 de Setembro de 1999
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A energia do espírito

IRENE CARDOSO

Esse estudo de análise rigorosa da "ciência pedagógica" de Wilhelm Flitner preenche uma lacuna do conhecimento especializado na área da filosofia e da história da educação no Brasil. Possibilita, a partir da reconstrução do "contexto histórico-científico em que se desenvolveu a pedagogia como ciência do espírito no início do século 20", uma avaliação do chamado Movimento Renovador Educacional no Continente Europeu e sua influência no Movimento da Escola Nova no Brasil. Pode atingir, ainda, um círculo de interesse mais amplo, na medida em que a reconstrução da obra e vida desse pensador permite um acesso à dramática história da cultura e da política alemãs deste século, embora essa possibilidade de leitura não se constitua em objetivo explícito do trabalho.
Retraçar a trajetória de Flitner permitiu iluminar o processo que se desenvolveu desde o começo do século, tomou forma mais ativa nos anos da República de Weimar e foi interrompido em 1933, com o dominação nacional-socialista, para ser retomado após a guerra, quando o seu trabalho pôde não apenas ter maior publicidade, como mesmo influência na pedagogia alemã.
Discípulo de Herman Nohl, assistente de Dilthey, cuja concepção pedagógica teve influência no Movimento da Escola Nova no Brasil, Flitner dirigiu a revista "A Educação" desde 1925, quando surgiu, até 1937, momento em que foi desativada em virtude do fim da liberdade científica na Alemanha. Essa revista congregava colaboradores em torno da questão da pedagogia como disciplina universitária, que embora não configurassem propriamente uma unidade de "escola", expressavam um movimento contrário à pedagogia tradicional de Herbart.

Um projeto cultural
Antes disso, Flitner, como diretor da Escola Superior Popular de Iena, trabalha na organização da universidade popular, depois da Primeira Guerra Mundial, tendo sido também um dos teóricos e iniciadores da Liga de Hohenrodter, fundada em torno da mesma questão, em 1923. Iniciativas e realizações que se constituíram em expressão do Movimento da Escola Superior Popular na Alemanha, que se estabelece em 1919, no significativo momento político, indicado pela autora, mas não propriamente explorado: "Depois da revolução que marcou a derrota da esquerda radical", marcado pela consolidação do Partido Social Democrático Alemão no poder, até a ascensão de Hitler.

A OBRA
Flitner - Fundamentação Filosófica da Pedagogia Sistemática ou Geral Maria Nazaré de C.P. Amaral Edusp/Fapesp (Tel. 0/xx/11/818-4151) 142 págs., R$ 14,00



Um projeto cultural para uma Alemanha moderna, nos anos 20, a partir da posição "otimista" de Flitner de que "uma nova forma de vida parecia nascer e atuar na sociedade industrial igualitária", a partir de uma "visão pluralista e liberal entre diferentes posições religiosas, nacionais e éticas", que viabilizaria um "consenso em profundidade". Um projeto de esclarecimento, sem dúvida, mas cuja luz deveria provir da "energia soberana do espírito", cuja expressão seria a da "fé cristã".
Nesse projeto, a pedagogia como "ciência do espírito", a partir da influência de Dilthey, por intermédio de Nohl, deveria buscar, para Flitner, a fundamentação teórico-filosófica da "realidade educacional, como parte de uma realidade mais abrangente, qual seja, a histórico-social, objeto das ciências do espírito que só se permite apreender na complexidade (...), no exercício pendular inerente à própria lógica da vida humana histórica (...), lógica comprometida na origem com a energia do espírito, que é (...) expressão evidente da fé cristã". Um projeto cultural que fazia do Movimento da Escola Superior Popular a expressão da "vontade sequiosa do povo por desenvolvimento espiritual", ao mesmo tempo em que atribuía "responsabilidade" aos "homens cultos em relação a essa necessidade do povo de cultivar o espírito".
Projeto cultural "humanista" que encontrou os seus limites, quando interrompido em 1933, momento de desativação dos círculos de discussão e da Reforma Pedagógica, mas também de recolhimento de Flitner, em Hamburgo, quando se dedica a seu trabalho sobre Goethe e a seus estudos sobre a história das formas de vida européia. Momento em que se eclipsa a possibilidade do seu "consenso em profundidade", diante do consenso totalitário do Terceiro Reich alemão.
Torna-se bastante instigante acompanhar a trajetória desse educador e pensador da cultura, os desdobramentos da sua "reflexion engagée", quando se refere "aos pressupostos teológicos e filosóficos sempre atrelados aos contornos histórico-sociais e políticos em que se verifica uma concepção ou teoria pedagógica". Especialmente se se puder pensar também, se não os limites, pelo menos o confronto, do seu conceito de "educabilidade", condicionada pela exigência do despertar educacional dos sujeitos para a atividade do amor e da fé, pela "força incondicional da tradição cristã", com as "descobertas" contemporâneas de um outro pensador da cultura, Freud, a respeito da "ineducabilidade do inconsciente", da associação entre amor e ódio, que o levou a dizer que "o progresso fez um pacto com a barbárie", que a "desumanidade" do gênero humano estava inscrita no projeto da sua "humanidade" e que a religião cristã, a "religião do amor", havia produzido a intolerância.


Irene Cardoso é professora do departamento de sociologia da USP.


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