São Paulo, Sábado, 11 de Setembro de 1999
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O teste da tolerância


Michael Walzer examina várias modalidades de coexistência pacífica em sociedade


LUIZ PAULO ROUANET

Deve-se saudar a publicação desta obra de Michael Walzer, que vem enriquecer o debate contemporâneo sobre o liberalismo ou comunitarismo, originado, em grande parte, pelo lançamento (1971) de "Uma Teoria da Justiça", de John Rawls. As propostas vão do Estado mínimo, de Robert Nozick, passando pelo Estado liberal com uma perspectiva social, de John Rawls, até o comunitarismo, ao qual Walzer é normalmente associado, e que consiste em privilegiar a ação de grupos ou comunidades na busca de uma solução para o problema da organização social. Walzer situa-se numa posição intermediária nesse debate.
O que Walzer se propõe, mais do que prescrever normas de comportamento, seja por parte do Estado, seja por parte dos povos, é descrever diversas modalidades de tolerância, com um método que parece ser sua marca registrada desde os seus primeiros livros ("Das Obrigações Políticas", "Guerras Justas e Injustas" e "Esferas da Justiça").

Utopistas e realistas
O método consiste em oferecer o maior número possível de exemplos para ilustrar um determinado tema. Assim, Michael Walzer não está tentando persuadir o seu leitor: limita-se a apresentar o maior número de casos para que o leitor possa se convencer a si mesmo. Não se trata de um discurso "objetivista", com proposições do tipo: "A tolerância é...", ou "o comportamento tolerante consiste em...". Em vez disso, o autor procura levantar um certo número de hipóteses e explorá-las mediante o uso de exemplos.
O pensamento de Michael Walzer postula que vivemos numa sociedade pluralista, na qual dificilmente as pessoas chegarão a um consenso sobre qual a melhor alternativa para uma sociedade justa. Há prós e contras em relação a todas as teorias e consistiria em "utopismo ruim" considerar que poderia haver uma alternativa que não tivesse efeitos colaterais. Michael Walzer não se alinha simplesmente do lado dos utopistas -já que não consegue conceber um único modelo social que resolva de uma vez por todas os problemas da desigualdade, da violência, da injustiça etc-, também não pode ser situado do lado dos "realistas", que vêem as relações entre as pessoas e entre os povos, ou Estados, exclusivamente em termos de relações de poder, sem margem para qualquer idealismo. O que Walzer preconiza são modelos formados à base de tentativa e erro, apoiados na história, e submetidos ao escrutínio e aprovação dos povos envolvidos.
Walzer não está preocupado em estudar a intolerância em relação a excentricidades individuais, que não constituem, a seu ver, um risco maior, nem a intolerância propriamente política, pois, a seu ver, "a tolerância da diferença (...) é intrínseca à política democrática". Preocupa-se com a diferença enquanto se manifesta no dia-a-dia das comunidades, ou povos, no embate cotidiano dos grupos culturais, étnicos, religiosos etc. Esse parece ser o verdadeiro teste da tolerância, pelo qual seriam reprovados, atualmente, países como a ex-Iugoslávia, a Indonésia, a Índia e outros. Em todo caso, não é casual a escolha pelo autor de esferas não diretamente políticas. Trata-se sem dúvida de uma visão de mundo que procura, baseada (entre outras disciplinas) na antropologia, estudar os casos concretos tal como se manifestam no cotidiano, levando em conta as crenças, costumes locais, história dos povos a fim de entender suas especificidades, suas diferenças. Isso não significa simplesmente aceitá-las; trata-se de compreendê-las a fim de enriquecer o debate.

Regimes de tolerância
Para entender as complexidades envolvidas nesse processo, Walzer descreve cinco regimes de tolerância: os impérios multinacionais, a sociedade internacional, as "consociações" (federações), os Estados-Nações e as sociedades imigrantes. Cada um desses "tipos" representa um modelo diferente de tolerância. No primeiro, o império multinacional, a "tolerância" é praticada por potências conquistadoras, como foram os impérios romanos e persa, por exemplo.
No caso do Império Romano, é conhecido seu sistema de não interferir mais do que o necessário nos costumes locais, apenas assegurando a obediência de suas principais lideranças (ou exterminando-as quando não obtivesse êxito). Trata-se de uma "guetização", um reconhecimento e respeito às diferenças, dentro de certos limites. Não se trata, com certeza, de um modo "liberal ou democrático", essa autocracia "pode ser brutalmente repressiva sob o pretexto de preservar conquistas".

A OBRA
Da Tolerância
Michael Walzer
Tradução: Almiro Pisetta
Martins Fontes (Tel.0/xx/11/237-3277)
154 págs., R$22,50



O segundo tipo de regime de tolerância é a sociedade internacional, que Walzer considera como algo bastante abstrato, já que dificilmente se trata de um regime ou, se o for, é extremamente fraco. Segundo o autor, a sociedade internacional é "tolerante por uma questão de princípios e ainda mais tolerante, ultrapassando seus próprios princípios, por causa da fraqueza de seu regime". Em outros termos, a sociedade internacional é tolerante porque não pode ser de outra forma, devido à própria debilidade de sua estrutura, que dificilmente tem poder coativo sobre as diversas nações que a compõem.
Quanto ao terceiro tipo, Walzer tem em mente Estados bi ou trinacionais, como a Suíça, a Bélgica, o Líbano ou mesmo a Bósnia. O autor não quer excluir esse modelo, mas a tolerância parece se equilibrar aí sobre uma base frágil. Os exemplos escolhidos demonstram a que ponto é frágil ou mesmo ausente a tolerância em regimes confederativos como os citados. Mesmo na modelar Suíça, não há como negar um tratamento diferenciado para os cantões italiano e romanche, em relação aos dominantes franceses e alemães, sendo os habitantes daqueles objetos de discriminação por parte dos habitantes destes.
O Estado-Nação, de modo paradoxal, justamente por ser um regime mais forte, é mais favorável à tolerância do que os tipos anteriormente citados. O Estado não admite concorrência e, por esse motivo, não tolera grupos intolerantes com outros grupos e que desejem subtrair os seus membros à esfera de influência do Estado. Os Estados-Nações privilegiam a tolerância em relação aos indivíduos, mais do que em relação aos grupos.
Finalmente, o quinto regime de tolerância descrito seriam sociedades formadas por ondas de imigrantes, as quais têm de conviver, quer queiram quer não, não podendo formar um Estado-Nação novo exclusivamente com sua própria etnia, ou formação religiosa ou cultural. Exemplos típicos são os EUA e o Canadá, com exceção do Quebec, que se formou como uma colônia. A questão da tolerância surge em meio à própria intolerância: cada grupo se pretende mais nativo do que o outro, mas em última instância são forçados a aceitar a presença dos demais.

Tolerância pós-moderna
Nos capítulos seguintes, Walzer expõe casos complexos, nos quais nenhum desses tipos aparece de forma pura, como a França, exemplo clássico de Estado-Nação e ao mesmo tempo sociedade imigrante (e, hoje, ainda fazendo parte da Comunidade Européia). A própria Comunidade Européia aparece para Walzer como experimento relativamente novo e por isso difícil de ser avaliado, mas em princípio propício ao exercício da tolerância (o que não impede, ou mesmo provoca, atritos com grupos minoritários nacionais intolerantes, dentro e fora da França). Walzer examina ainda o que chama de "tolerância moderna e pós-moderna", e termina refletindo sobre o multiculturalismo nos EUA.
Ressentimo-nos, às vezes, de uma posição mais taxativa de Walzer, que ultrapasse a descrição, mas se trata, como vimos, de uma opção metodológica. Assim mesmo, ele não deixa de se posicionar em relação às questões de classe, de gênero, às práticas indefensáveis como a mutilação feminina praticada em algumas regiões do globo etc. O livro é utilíssimo para se pensar a questão da tolerância, essencial num país multicultural como o Brasil e que, pela classificação do autor, seria um Estado-Nação com uma sociedade imigrante, onde o respeito à diferença muitas vezes mascara uma relação de tutela e dominação, sob a aparência da "cordialidade".


Luiz Paulo Rouanet é professor da Pontifícia Universidade Católica (SP) e da Universidade São Marcos.


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