São Paulo, Sábado, 11 de Setembro de 1999
Texto Anterior | Índice

O prisma russo


Primeiro volume do estudo de Joseph Frank sobre vida e obra de Dostoiévski reconstrói ambiente sociocultural russo do século 19


SALETE DE ALMEIDA CARA

Em 1976, quando Joseph Frank publicou o primeiro volume de sua obra sobre Dostoiévski, agora traduzido no Brasil, tendo elaborado uma versão do plano geral dos outros volumes que ainda viriam, referiu-se modestamente ao resultado de 20 anos de pesquisa como uma "coleção dedicada à vida e à obra de Dostoiévski", sem deixar de anotar que, ali, a biografia tinha um interesse "estritamente circunscrito".
De fato, a origem da empreitada impusera rumos bem mais vastos ao trabalho desse professor de literatura comparada que, no pós-guerra, interessado pela literatura existencialista francesa -assunto de suas palestras na Princeton University (EUA) em meados dos anos 50-, foi capaz de perceber a insuficiência de uma análise de "Memórias do Subterrâneo" (1864) como obra precursora dos "temas existencialistas na literatura moderna".
Insatisfeito com sua interpretação atrelada ao caráter especulativo das filosofias da existência e armado de extensa bibliografia de autores soviéticos e eslavistas ocidentais, dá uma guinada radical na pesquisa, implicando compromisso com um modo de narrar do qual este volume, que abrange os anos de 1821 a 1849, é o primeiro capítulo. Assim, mergulha de tal modo na reconstrução da vida sociocultural russa do século 19, que a aprendizagem do idioma passou a ser mais uma exigência.

O desafio Dostoiévski
Uma das chaves de Frank para enfrentar o desafio Dostoiévski está em considerar que apenas pela literatura é possível conhecer o papel dramático das idéias em trânsito na sociedade russa do tempo, pois é a literatura que expõe, vigorosamente, o conflituoso debate político-ideológico que os ensaístas dos periódicos independentes tentavam levar adiante, proibido pela imprensa czarista e impossível para a filosofia profissional, de extração alemã, ou para a teologia ortodoxa. Compreendendo portanto a densidade ideológica "da melhor literatura russa" e a tarefa pública do escritor, faz sentido, para Frank, falar do modo como brotaram os germes de um espírito de revolta político-social entre os homens cultos, mobilizados em torno da questão da servidão e dos direitos civis, exatamente para falar da prosa publicada entre 1846 e 1848, objeto central de seu interesse.
Como se escrevesse um romance de formação, Joseph Frank mostra a experiência extrema de uma consciência paradoxal, desentranhada dos bastidores de uma sociedade atrasada, caótica, instável e infestada por doutrinas alemãs e francesas, apanhando, por aí, a formação do romance em Dostoiévski como resultado da participação do escritor numa cultura de oposição e do exílio, por quatro anos, na Sibéria.
Para Frank, a temática socio-ideológica dos primeiros tempos (ligada aos preceitos sociais da Escola Natural e com forte influência de Gógol) será trânsito para a dramatização de um universo moral-psicológico, base da dimensão trágica da obra posterior do escritor -que vai observar sobretudo no conto inacabado "Netotchka Nezvânova". Os movimentos de transformação na produção desses dois anos iniciais responderiam, de modo particular, às tensões a que foi exposta toda a geração dos que "chegaram à maturidade em meados dos anos 30".
Frank divide sua narrativa em quatro partes. "Moscou" trata da família e da formação religiosa-cultural até os 16 anos; "São Petersburgo", dos anos na Academia de Engenharia Militar, da cultura russa nos anos 30 e princípios de 40, e do primeiro conto de Dostoiévski, "Pobre Gente"; "Em Evidência" trata das relações do escritor com as principais figuras do mundo culto da época e com os círculos clandestinos, além de sua produção jornalística; "Em Busca da Identidade" analisa os trabalhos escritos nesses anos. Um vasto material narrado em três frentes superpostas, que armam o olhar crítico: a do historiador-cronista, a do crítico das idéias, a do crítico literário.

Frustração e impotência
Dando conta da "disparatada mistura de tendências culturais que prevaleceu durante esses anos", o crítico mostra a mescla, no mundo dos homens cultos, de socialismo utópico francês com valores morais e religiosos (já na origem) e com idéias dos neo-hegelianos alemães, criando a atmosfera intelectual que envolve as literaturas alemã e francesa.
Os quatro folhetins da "Gazeta de São Petersburgo" são importantes nesta formação literária, quando então o escritor se dizia cronista da "falta de unidade moral" da vida russa (como culpa da imitação "ridícula, automática e degradante da civilização européia"), aparecendo na "persona" de um "conversador, aparentemente bonachão e sincero" (a citação é de Bielínski), para registrar posições, idéias e figuras do tempo (a tensão entre eslavófilos e ocidentalizantes ele tentará resolver, depois do exílio, aderindo ao "movimento do solo natal") e resumir o sentimento de frustração e impotência de toda uma intelectualidade progressista, já rascunhando um estilo informal e delineando personagens e técnicas de exposição.
A produção inicial conta pelo menos com uma "pequena obra-prima" ("Pobre Gente", com destaque para "O Duplo" e "Noites Brancas", nessa ordem), enfrentando algumas vezes a tesoura da censura, e é abordada no âmbito do complexo processo que forja um dos mais importantes escritores dos séculos 19 e 20, passando pelos "contos grotescos de São Petersburgo", que incluem "O Senhor Prokhártchin", "Um Coração Frágil" e outras narrativas menores, até "A Dona da Casa", e "Netotchka Nezvânova", sem deixar de lado a leitura que deles fizeram os críticos seus contemporâneos.
Como ensaio da dicção futura, a análise de "Pobre Gente" mostra que o enredo, impulsionado pela intermediação de Púchkin à descoberta de Gógol pelo escritor, resultou numa leitura do realismo tragicômico de Gógol como síntese e superação do romantismo inicial (Dostoiévski tinha começado sua carreira literária com duas tragédias românticas) na direção da narrativa social proposta pela Escola Natural de Bielínski, mas já com um olhar até então desconhecido para o cotidiano mais humilde ("o mundo visto de baixo, não de cima, constitui a mais importante inovação de Dostoiévski em comparação com Gógol, cuja simpatia por seus humildes protagonistas nunca chega a ser suficientemente forte para superar o olhar de condescendente superioridade do seu estilo narrativo").
Por esse viés, Frank afirma que, ao buscar a forma do romance epistolar sentimental na tradição do século 18 para tratar de uma matéria socialmente rebaixada, Dostoiévski inverte o sentido que a forma tinha em "O Capote", de Gógol (sem que se possa falar em paródia, já que a temática gogoliana sai fortalecida).

A OBRA
Dostoiévski - As Sementes da Revolta (1821 a 1849) Joseph Frank Tradução: Vera Pereira Edusp (Tel. 0/xx/11/818-4149) 500 págs., R$ 37,00



Outro bom exemplo é sua análise de "O Duplo", conto que Dostoiévski julgava sua "contribuição mais séria para a literatura", embora problemática, e que chegou à forma hoje conhecida apenas em 1866. O crítico esmiuça suas referências literárias para apontar as particularidades desta história de uma "capitulação", escrita em tom de ironia e compaixão e tratando do deslocamento, na ordem social russa, do tema da ambição pessoal, onde a figura romântica do duplo volta na pele de antagonista e concorrente.

A forma russa
Mais uma vez, Frank recorre a um folhetim para discutir como, para o escritor, são desprezíveis a sociedade e a personagem massacrada (esta, de um ponto de vista moral), colhendo elementos de interpretação na mescla de gêneros e na técnica narrativa e observando, com cuidado, as alterações introduzidas na última versão (o tema napoleônico da ambição era corrente na literatura francesa da época). Entre as narrativas menores, as pequenas farsas remetem à moda dos "ensaios fisiológicos" (as cenas da vida parisiense), e vale anotar a presença da tradição folclórica e da narrativa oral de primeira pessoa, de veio popular.
Ainda que citado uma única vez por Frank neste volume, pontualmente a propósito do caráter antiabsolutista de uma peça de Schiller, o nome de Erich Auerbach virá mais de uma vez à cabeça daquele leitor que, porventura, conheça o seu "Mimesis" (Ed. Perspectiva, 1976), no qual discute como o modo de exposição de conflitos no realismo russo viria da mistura de realismo cristão e tragédia (em função da intensidade e imediaticidade das vivências e da sequência concentrada dos atos), provocada pelo choque de idéias européias numa sociedade patriarcal bastante corrompida, além de "independente e voluntariosa".
Nesses momentos, o leitor percebe, mais claramente, que o trabalho de Frank -hoje professor da Stanford University-, centrando-se em Dostoiévski, mas ampliando os domínios cujos impasses e conflitos sua construção literária irá disciplinar, foi também capaz de sugerir como, da experiência à obra literária, forjou-se uma forma (um prisma russo) que, por sua vez, será incorporada pela Europa ocidental, depois de conhecidas as primeiras traduções de Dostoiévski, em 1870.
Na verdade, uma concepção de literatura ajusta o olhar de Joseph Frank nessa leitura sistemática, que enlaça as formas de vida local (que, nos meios cultos, não prescinde das idéias modernas estrangeiras) às formas literárias, como vimos. O leitor interessado nessas questões tem ainda à sua disposição um outro volume, lançado em 1992 pela mesma Edusp -"Pelo Prisma Russo"-, reunindo ensaios escritos pelo crítico em função desta pesquisa, em que também poderá observar até que ponto essa sistematização (e seus pressupostos) foi capaz de filtrar qualquer sedução de anacronismo que possa aparecer nos ensaios, como quando relaciona a permanência de Dostoiévski à "da justificativa moral da violência e do terror" do marxismo-leninismo, que reataria com os radicais do século passado (Frank escreve entusiasmado pelo governo Gorbachev).
No livro de ensaios, o leitor encontrará debates críticos, comentários de obras posteriores a 1849 e resenhas, além do texto publicado, em 1975, no "Times Literary Supplement" e reproduzido no primeiro volume de Dostoiévski, em que Frank discute a interpretação freudiana do romancista. Mas encontrará, sobretudo, a armação daqueles pressupostos literários que, a título de bom exemplo, retiro do mesmo ensaio citado acima (no qual avalia, pelo viés da generalidade sem mediação, o interesse atual de Dostoiévski), em comentário da crítica formalista ("De Gógol ao Gulag"): "Seria de lamentar se as limitações de sua posição, ela mesma produto da "vida" de sua cultura, fossem simplesmente tomadas como dogma por seus admiradores ou seguidores em países mais liberais do Ocidente. Não há necessidade real de sacrificar seja a relação da arte com a "vida" da sociedade, seja o direito do domínio estético de usufruir sua relativa autonomia".
A seguir nessa trilha, a própria integração dos procedimentos narrativos de Dostoiévski por certo viés do romance europeu (apontado nos ensaios), se bem especificada, abre uma questão crítica das mais instigantes, acrescentando ao processo de formação do romance moderno algumas ironias históricas, por meio das quais será possível perceber melhor as transformações da forma e da sociedade que a fez nascer.


Salete de Almeida Cara é professora de literatura comparada em língua portuguesa na USP.


Texto Anterior: Luiz Paulo Rouanet: O teste da tolerância
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.