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Escrita anônima
Um romance especular de Chico Buarque
WANDER MELO MIRANDA
Cada novo livro de Chico Buarque é um acontecimento literário e editorial. O horizonte de expectativas da crítica e o do leitor comum são realimentados por meio da divulgação maciça nos principais veículos de comunicação do país, com direito
inclusive a merchandising na novela das oito. Apesar dessa visibilidade exacerbada pelo mercado, o
dublê de escritor e compositor -um dos mais importantes artistas da música popular brasileira-
tem conseguido manter separadas, com firmeza e
discrição, ambas as esferas em que atua. A qualidade de seus textos anteriores de ficção e teatro, junto
ao mais recente romance, já permite considerar
sua obra literária e dramatúrgica com certo distanciamento em relação à industria cultural a que inevitavelmente está atrelada.
Se "Estorvo" (1991) é a síntese por excelência das
realizações anteriores do escritor -tema social
submetido à cerrada elaboração da linguagem-,
Budapeste acrescenta uma via pouco explorada
pelo romancista: o ato de escrever como forma de
desconstrução da propriedade literária e de descanonização oblíqua de textos e autores. Chico Buarque insere-se assim numa extensa galeria literária
contemporânea, mas à primeira vista a afinidade
maior do novo livro parece ser com "Se um Viajante Numa Noite de Inverno" (1979), de Italo Calvino, no sentido de tornar toda escrita um universo de possibilidades em aberto e nunca realizadas
de todo; cada escritor, um pastichador e plagiário
do que escreve.
Em "Budapeste", o narrador José Costa (ou Zsoze Kósta) é um "ghost-writer" encarregado, como
tal, de redigir discursos, artigos, romances e poemas para personalidades políticas e culturais. Sua
perícia excepcional no exercício da profissão subalterna ("nègre", em francês) faz com que seu sócio na "fábrica de textos" Cunha & Costa Agência
Cultural contrate uma equipe para imitar seu estilo: "Ver minhas obras assinadas por estranhos me
dava um prazer nervoso, um tipo de ciúme ao contrário". A familiaridade inquietante diante do texto próprio e do texto alheio -se é que a distinção
aqui entre as duas categorias ainda significa alguma coisa- será decisiva para o andamento temático do livro.
Na volta de um congresso de autores anônimos,
Costa é obrigado a fazer uma escala imprevista na
cidade título do romance, o que desencadeia uma
série de peripécias que irão constituir a matéria
narrativa: casado com Vanda, telejornalista que
mora no Brasil, Costa conhece Kriska na Hungria,
com ela aprende húngaro -"a única língua do
mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita". Nas idas e vindas entre Budapeste e o Rio de
Janeiro, o narrador mergulha num mundo de réplicas, em que tudo parece duplicar-se e inverter-se ao infinito, num jogo de espelhos que a concepção gráfica da capa do livro sintetiza e ilustra.
A natureza especular de "Budapeste" desdobra o
trânsito entre linguagens em transe identitário. É
como se Costa/ Kósta, Vanda/Kriska, Brasil/Hungria fossem o palco de projeção de um constante
vir-a-ser outro ou mesmo, que repete a seu modo a
situação do "escritor" que simula um papel narrativo como um ator que dramatiza um saber globalizado. A impessoalidade desse saber é compensada pela corporalidade da escrita: o corpo branco de
Kriska confunde-se com a página em branco a ser
preenchida e reflete, na sua brancura, outros inúmeros corpos/ páginas aos quais Costa se dedicou.
A escrita literalmente sobre o corpo feminino, ou
sobre o feminino, é um trabalho incansável de Penélope: "Foi quando apareceu aquela que se deitou
em minha cama e me ensinou a escrever de trás para adiante. Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia
ler, mirando-se no espelho, e de noite apagava o
que de dia fora escrito para que eu jamais cessasse
de escrever meu livro nela. E engravidou de mim, e
na sua barriga o livro foi ganhando novas formas".
A cena meio fabulosa no seu encadeamento é
emblemática do texto maior, por ser a micronarrativa que contém o livro ou os livros encaixados que
dela resultam: "O Ginógrafo", escrito por Costa e
assinado pelo alemão Kaspar Krabbe, na verdade
"Budapeste", assinado por Costa como texto autobiográfico escrito por outro "autor" e assinado por
Chico Buarque como texto de ficção.
No embaralhamento entre vida e obra, emerge
uma fissura narrativa que parece assinalar uma
preocupação semelhante àquela do narrador do
texto citado de Calvino, que diz que "o estilo, o gosto, a filosofia pessoal, a subjetividade, a formação
cultural, a experiência vivida, a psicologia, o talento, os truques da profissão: todos os elementos que
fazem com que o que eu escrevo seja reconhecido
como meu, me parecem uma gaiola que limita minhas possibilidades". Da perspectiva do narrador
calviniano, deve-se evitar toda personificação e
qualquer identidade estilística, como meio de reforço da especificidade intransferível da escrita-leitura, usando paradoxalmente o modo impessoal
de produção dos objetos feitos em série. Para o
narrador de "Budapeste", o descentramento da
autoria assinala novas formas de fazer da fala do
outro sua fala própria, ou o contrário, como percebe Costa ao ler "seu" livro: "Era como ler uma vida
paralela à minha, e ao falar na primeira pessoa, por
um personagem paralelo a mim, eu gaguejava.
Mas depois que aprendi a tomar distância do eu do
livro, minha leitura fluiu".
Este o ponto: entre a leitura que flui e a descontinuidade que interrompe a coordenação da história
narrada situa-se o leitor -qualquer leitor do livro,
um outro tipo de desdobramento de Costa-, então deslocado da cômoda posição de mero consumidor de imagens ou histórias pré-fabricadas para
a de agente na construção imprevista de sentidos.
Dialética que constitui a literatura como discurso
diferenciado? Ou abertura da linguagem para que
outro possa falar, sem síntese possível? "Budapeste" parece responder à questão pelo caminho da
experiência da alteridade como condição necessária para que o romance atinja, com êxito, sua função de fazer coincidir, sob a forma de meia-verdade que é a ficção, a realidade e o nosso desejo-
"agora eu lia o livro ao mesmo tempo que o livro
acontecia".
Wander Melo Miranda é professor de teoria da literatura e literatura comparada na UFMG e co-organizador de "Arquivos Literários" (Ateliê), entre outros.
Budapeste
Chico Buarque
Companhia das Letras (Tel. 0/xx/11/3707-3500)
176 págs., R$ 29,50
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