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São Paulo, sábado, 11 de outubro de 2003

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Escrita anônima

Um romance especular de Chico Buarque

WANDER MELO MIRANDA

Cada novo livro de Chico Buarque é um acontecimento literário e editorial. O horizonte de expectativas da crítica e o do leitor comum são realimentados por meio da divulgação maciça nos principais veículos de comunicação do país, com direito inclusive a merchandising na novela das oito. Apesar dessa visibilidade exacerbada pelo mercado, o dublê de escritor e compositor -um dos mais importantes artistas da música popular brasileira- tem conseguido manter separadas, com firmeza e discrição, ambas as esferas em que atua. A qualidade de seus textos anteriores de ficção e teatro, junto ao mais recente romance, já permite considerar sua obra literária e dramatúrgica com certo distanciamento em relação à industria cultural a que inevitavelmente está atrelada.
Se "Estorvo" (1991) é a síntese por excelência das realizações anteriores do escritor -tema social submetido à cerrada elaboração da linguagem-, Budapeste acrescenta uma via pouco explorada pelo romancista: o ato de escrever como forma de desconstrução da propriedade literária e de descanonização oblíqua de textos e autores. Chico Buarque insere-se assim numa extensa galeria literária contemporânea, mas à primeira vista a afinidade maior do novo livro parece ser com "Se um Viajante Numa Noite de Inverno" (1979), de Italo Calvino, no sentido de tornar toda escrita um universo de possibilidades em aberto e nunca realizadas de todo; cada escritor, um pastichador e plagiário do que escreve.
Em "Budapeste", o narrador José Costa (ou Zsoze Kósta) é um "ghost-writer" encarregado, como tal, de redigir discursos, artigos, romances e poemas para personalidades políticas e culturais. Sua perícia excepcional no exercício da profissão subalterna ("nègre", em francês) faz com que seu sócio na "fábrica de textos" Cunha & Costa Agência Cultural contrate uma equipe para imitar seu estilo: "Ver minhas obras assinadas por estranhos me dava um prazer nervoso, um tipo de ciúme ao contrário". A familiaridade inquietante diante do texto próprio e do texto alheio -se é que a distinção aqui entre as duas categorias ainda significa alguma coisa- será decisiva para o andamento temático do livro.
Na volta de um congresso de autores anônimos, Costa é obrigado a fazer uma escala imprevista na cidade título do romance, o que desencadeia uma série de peripécias que irão constituir a matéria narrativa: casado com Vanda, telejornalista que mora no Brasil, Costa conhece Kriska na Hungria, com ela aprende húngaro -"a única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita". Nas idas e vindas entre Budapeste e o Rio de Janeiro, o narrador mergulha num mundo de réplicas, em que tudo parece duplicar-se e inverter-se ao infinito, num jogo de espelhos que a concepção gráfica da capa do livro sintetiza e ilustra.
A natureza especular de "Budapeste" desdobra o trânsito entre linguagens em transe identitário. É como se Costa/ Kósta, Vanda/Kriska, Brasil/Hungria fossem o palco de projeção de um constante vir-a-ser outro ou mesmo, que repete a seu modo a situação do "escritor" que simula um papel narrativo como um ator que dramatiza um saber globalizado. A impessoalidade desse saber é compensada pela corporalidade da escrita: o corpo branco de Kriska confunde-se com a página em branco a ser preenchida e reflete, na sua brancura, outros inúmeros corpos/ páginas aos quais Costa se dedicou.
A escrita literalmente sobre o corpo feminino, ou sobre o feminino, é um trabalho incansável de Penélope: "Foi quando apareceu aquela que se deitou em minha cama e me ensinou a escrever de trás para adiante. Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-se no espelho, e de noite apagava o que de dia fora escrito para que eu jamais cessasse de escrever meu livro nela. E engravidou de mim, e na sua barriga o livro foi ganhando novas formas".
A cena meio fabulosa no seu encadeamento é emblemática do texto maior, por ser a micronarrativa que contém o livro ou os livros encaixados que dela resultam: "O Ginógrafo", escrito por Costa e assinado pelo alemão Kaspar Krabbe, na verdade "Budapeste", assinado por Costa como texto autobiográfico escrito por outro "autor" e assinado por Chico Buarque como texto de ficção.
No embaralhamento entre vida e obra, emerge uma fissura narrativa que parece assinalar uma preocupação semelhante àquela do narrador do texto citado de Calvino, que diz que "o estilo, o gosto, a filosofia pessoal, a subjetividade, a formação cultural, a experiência vivida, a psicologia, o talento, os truques da profissão: todos os elementos que fazem com que o que eu escrevo seja reconhecido como meu, me parecem uma gaiola que limita minhas possibilidades". Da perspectiva do narrador calviniano, deve-se evitar toda personificação e qualquer identidade estilística, como meio de reforço da especificidade intransferível da escrita-leitura, usando paradoxalmente o modo impessoal de produção dos objetos feitos em série. Para o narrador de "Budapeste", o descentramento da autoria assinala novas formas de fazer da fala do outro sua fala própria, ou o contrário, como percebe Costa ao ler "seu" livro: "Era como ler uma vida paralela à minha, e ao falar na primeira pessoa, por um personagem paralelo a mim, eu gaguejava. Mas depois que aprendi a tomar distância do eu do livro, minha leitura fluiu".
Este o ponto: entre a leitura que flui e a descontinuidade que interrompe a coordenação da história narrada situa-se o leitor -qualquer leitor do livro, um outro tipo de desdobramento de Costa-, então deslocado da cômoda posição de mero consumidor de imagens ou histórias pré-fabricadas para a de agente na construção imprevista de sentidos. Dialética que constitui a literatura como discurso diferenciado? Ou abertura da linguagem para que outro possa falar, sem síntese possível? "Budapeste" parece responder à questão pelo caminho da experiência da alteridade como condição necessária para que o romance atinja, com êxito, sua função de fazer coincidir, sob a forma de meia-verdade que é a ficção, a realidade e o nosso desejo- "agora eu lia o livro ao mesmo tempo que o livro acontecia".


Wander Melo Miranda é professor de teoria da literatura e literatura comparada na UFMG e co-organizador de "Arquivos Literários" (Ateliê), entre outros.

Budapeste
Chico Buarque
Companhia das Letras (Tel. 0/xx/11/3707-3500)
176 págs., R$ 29,50


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