São Paulo, sábado, 11 de novembro de 2000

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Instintos sociais

As Origens da Virtude: Um Estudo
Biológico da Solidariedade

Matt Ridley
Tradução: Berilo Vargas
Record (Tel. 0/xx/21/585-2000)
322 págs., R$ 35,00

RENATO DA SILVA QUEIROZ

A retomada da abordagem evolucionária no estudo das sociedades humanas provoca apreensão entre os antropólogos. Afinal, numerosos crimes contra a humanidade -genocídio, apartheid, "limpeza étnica", práticas brutais de eugenia etc.- são cometidos em nome de crenças espúrias, mas ainda correntes, como o princípio da sobrevivência dos mais fortes -prato de resistência do darwinismo social- e o postulado das assimetrias raciais. Nestes tempos de neoliberalismo, convém manter os olhos bem abertos.
Entretanto é inegável que a perspectiva evolucionária enriquece os estudos sobre os fundamentos da vida social humana. Animais sociais cujo comportamento se pauta, em larga medida, pelo contexto cultural, os humanos não podem prescindir, todavia, de um vasto repertório de atributos biológicos, selecionados ao longo do processo de hominização, para levar a cabo os seus complexos processos interativos. Vale lembrar que Darwin ocupou-se da expressão não-verbal das emoções, muitas delas inatas, ressaltando a sua enorme importância na regulação do convívio humano. Padrões comportamentais, e não apenas traços fisiológicos e anatômicos, constituem matéria-prima da seleção natural.
Investigações pertinentes às bases instintivas do comportamento humano podem elucidar determinados aspectos das formas de vida sociocultural. Estudos nesse sentido têm sido realizados principalmente por etólogos de orientação darwiniana, a despeito das críticas ferozes que lhes são dirigidas pelos que consideram os humanos criaturas imunes aos mecanismos evolutivos. Contudo caminha-se aqui em campo minado, expondo-se o pesquisador aos riscos dos determinismos e reducionismos, das vulgarizações e armadilhas ideológicas.
Matt Ridley transita nesse instigante e ardiloso terreno, mesclando saberes emprestados às ciências humanas e naturais, para mostrar que temos instintos sociais. Se o comportamento egoísta resulta de tendências biológicas, dá-se o mesmo com o altruísmo, que prevalece em determinadas espécies animais, sobretudo entre os humanos. Cooperação, ajuda mútua e reciprocidade constituiriam manifestações instintivas do Homo sapiens. As teses do autor enraízam-se numa concepção de instinto apropriada à nossa espécie, a de primatas dotados de um elenco inato de "predisposições para aprender", em meio a um universo de seres mais submissos à rigidez de "programas genéticos imutáveis". Tal condição resultaria da estreita correspondência entre o tamanho do cérebro e a complexidade do grupo social, já que a sociedade e a mente evoluíram juntas, uma realimentando tendências da outra. O cérebro humano teria sido evolutivamente dotado de aptidões que o habilitam a lidar com a reciprocidade, intercambiar favores e colher benefícios do convívio social. Predispostos assim às interações solidárias, ao estabelecimento de vínculos duradouros, condenamos as condutas egoístas e prezamos as altruístas: "Definimos a virtude quase exclusivamente como um comportamento pró-social e o vício como anti-social".
Ridley recorre à biologia evolutiva, à teoria dos jogos e à ecologia para demonstrar que, apesar do egoísmo inscrito em nossos genes, os fundamentos da vida social se originam da seleção de instintos virtuosos. Amplia esse horizonte biológico revisitando a produção filosófica de Hobbes, Rousseau, Maquiavel e Locke, temperando-as com reflexões dos economistas clássicos. Incursiona pela antropologia, evocando a reciprocidade entre os povos indígenas e suas típicas modalidades de troca e partilha de alimentos, para reforçar a tese da preeminência do comportamento altruísta. Mas todo esse erudito esforço, acrescido de considerações pormenorizadas relativas à conduta animal no interior de bandos de chimpanzés e golfinhos, presta-se, na derradeira parte da obra em apreço, a discutíveis ilações sobre uma "natureza humana universal". Ora, a natureza humana é a que se manifesta nos quadros de configurações culturais específicas, respeitadas as inclinações inatas de que fomos dotados no decorrer da trajetória evolutiva.
Na instância dos fenômenos socioculturais, os impulsos biológicos não se traduzem automaticamente em regras de conduta. A evitação de relações incestuosas, por exemplo, que já se inscreve na pauta dos comportamentos instintivos de primatas não-humanos, aparece aí apenas como prenúncio do tabu do incesto, culturalmente regulamentado no nível humano de organização da vida. Ademais essa nossa condição de espécie dependente de instruções extra-corpóreas para dar vida às configurações sociais foi moldada por forças evolucionárias, responsáveis também pela seleção de aptidões para o comportamento culturalmente orientado; a nossa existência torna-se inviável, portanto, fora desse domínio. Em síntese, como traçar o perfil de uma natureza humana genérica, apartada da pluralidade dos contextos histórico-culturais?
Ridley não se contém. Apostando na plena eficácia dos nossos instintos sociais, sai em defesa do minimalismo estatal, endereçando críticas contundentes ao Estado do bem-estar social que, no Reino Unido, teria levado ao colapso "milhares de eficientes instituições comunitárias -associações de socorro mútuo, fundações hospitalares e outras, todas baseadas na reciprocidade e em círculos virtuosos de confiança gradualmente alimentados". E vai além, fazendo suas as seguintes palavras de Margareth Thatcher: "Não existe sociedade. O que existe são homens e mulheres, individualmente, e famílias".
No discurso da "dama de ferro" cai por terra a tese de que a vida social, baseada em instintos virtuosos, cooperativos, deita raízes na biologia, argumento primeiro de Ridley. Ademais, o autor parece desconsiderar os variados ritmos históricos e os processos globais geradores das diversidades e desigualdades que compõem o cenário das formações sociais no presente. Algumas destas, aliás, parecem fadadas ao esfacelamento justamente porque renegam o Estado de bem-estar social.
Por mais vigorosos que sejam os nossos instintos altruístas, o modelo das sociedades arcaicas, indiferenciadas, estruturadas segundo o princípio da reciprocidade, como bem observou Marcel Mauss, não se reproduz nas formações desiguais e hierarquizadas. Aqui, território de caça do Homo economicus, carecemos de muitas outras virtudes.


Renato da Silva Queiroz é professor no departamento de antropologia da USP.


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