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A identidade gay
Além do Carnaval
James N. Green
Tradução: Cristina Fino e
Cássio Arantes Leite
Editora Unesp (Tel. 0/xx/11/232-7171
541 págs., R$ 40,00
EDWARD MACRAE
Nesta obra, o historiador americano James Green faz um levantamento do comportamento homossexual masculino no
Rio de Janeiro e em São Paulo entre o final do século 19 e o início dos recentes
anos 80. Durante esse período, mudou-se
a maneira como as relações homoeróticas eram percebidas pelos seus sujeitos e
pela sociedade em geral. O livro faz um
acompanhamento dessas mudanças, realizando um constante movimento entre
os níveis micro e macro, na sua preocupação de contextualizar fatos e opiniões
em relação aos acontecimentos sociais,
urbanísticos, políticos, econômicos e culturais.
Essa qualidade do estudo permite que
Green, apesar de muitas vezes trabalhar
com material de natureza extremamente
individual e íntima, evite cair no tom da
fofoca banal, armadilha que já colheu outras empreitadas usando as mesmas fontes. É impressionante o levantamento de
dados de origens as mais diversas, de teses médicas a publicações humorísticas e
pornográficas, não deixando de fora letras de músicas de Carnaval ou palavras
de ordem de manifestações de rua. Dada
a relativa escassez desse material, várias
fontes já haviam recebido tratamento em
outras obras, mas raramente haviam sido
trabalhadas de maneira tão integrada e
devidamente contextualizada.
Assim, podemos ver como mesmo no
início desse período, em que predominava forte repressão à sexualidade e às
transgressões dos papéis de gênero, homens que sentiam atração sexual por outros homens já tinham visibilidade pública. Trabalhos sobre épocas anteriores,
como os realizados por Luís Mott, já haviam chamado atenção para a existência
de sociabilidades e até identidades sociais
que, hoje, aproximaríamos das desenvolvidas pela população gay. Agora, com a
maior abundância de fontes de informação para o século 20, temos um retrato
mais detalhado e completo dessas subculturas.
Polêmicas eruditas
Após realizar uma espécie de "arqueologia" das atitudes correntes sobre a
questão até a segunda metade do século
20, Green passa a discutir a formação da
moderna identidade homossexual. Embora seu livro, na busca de um público inteligente, mas amplo, evite o uso do jargão acadêmico atual, ele não deixa de
abordar os pontos que compõem as polêmicas mais eruditas sobre o tema.
Especialmente iluminador é o resgate
que faz da diversidade das práticas homossexuais e das identidades sociais
construídas em seu entorno desde a belle
époque. Chama atenção o fato de que,
apesar da importância cultural atribuída
à dicotomia ativo/passivo e da reprodução dos papéis de gênero entre os homossexuais, esta nunca deu conta plenamente do vasto leque de práticas eróticas entre homens. Dessa forma, o atual fenômeno de travestis constantemente instados a desempenharem o papel de "ativos" por clientes de apresentação e identidade "viril" não seria a manifestação de
um polimorfismo sexual recentemente
desenvolvido, mas sim o prolongamento
de um jogo de práticas e identidades sexuais cuja complexidade já se prenunciava no início do século.
O livro tem como um de seus eixos o relato de como diferentes espaços carnavalescos foram sendo invadidos e, às vezes,
apropriados pelos homossexuais. Assim,
a partir da antiquíssima prática de homens em determinadas ocasiões se vestirem de mulheres (mesmo na ausência de
qualquer interesse erótico por outros do
seu próprio sexo), homossexuais se aproveitavam da ambiguidade proporcionada pelos bailes de máscaras para exercer
o travestismo com relativa liberdade. Nos
anos 40 a presença homossexual torna-se
claramente evidente nos bailes de Carnaval realizados em teatros próximos à Praça Tiradentes no Rio, quando começaram a ser realizados concursos de fantasia para homens vestidos de mulher, que
rapidamente se tornaram parte institucionalizada daquelas festas. Dessa maneira, o que havia começado como uma invasão homossexual de espaços decididamente heterossexuais se tornava então
um aspecto emblemático daquelas festividades.
Violência e medicina
Mesmo dedicando boa parte de sua
atenção para os aspectos mais positivos e
alegres da vida dos homossexuais cariocas e paulistas, Green não se deixa levar
por uma visão simplista e puramente celebratória. São comoventes os relatos das
violências sofridas por esses indivíduos,
pela brutalidade da polícia e de outros
elementos repressores das camadas populares.
Mais chocantes ainda são as posturas
dos médicos que, se considerando compassivos, advogavam um tratamento asilar para o homossexualismo, visto por
eles como causado por disfunções endócrinas. Em sua perplexidade perante a renitência dessa condição às técnicas de
que dispunham seus arsenais terapêuticos, não recuavam perante medidas drásticas como a insulinoterapia e o eletrochoque, chegando mesmo a sugerir o implante de testículos de outros animais em
seus pacientes. A divulgação de tais
idéias, mesclando cientificismo primário
ao moralismo de origem religiosa, veio a
influenciar as atitudes populares de preconceito vigentes até hoje.
Durante o Estado Novo, por ocasião da
reformulação do Código Penal, não faltaram aqueles que citavam com admiração
o exemplo da repressão violenta da Alemanha nazista ou aqueles que desejavam
dar aos juízes o poder discricionário de
propor a prisão ou hospitalização dos
praticantes do homossexualismo. Finalmente o novo Código Penal foi aprovado,
por decreto, em 1940, mantendo a tradição inaugurada pelo Código Imperial de
1830 de não penalizar especificamente as
práticas homossexuais.
Aparentemente, os redatores da versão
final consideravam que a existência de
uma rede de restrições sobre a homossexualidade, de ordem legal, social, moral e
médica, já era adequada para lidar com a
questão. Apesar de outros dispositivos legais e das sanções médicas que poderiam
e que foram utilizadas contra homossexuais, a sua não criminalização explícita
viria a colocar, neste aspecto, o Brasil
adiante de nações geralmente consideradas mais democráticas e liberais, como os
Estados Unidos e o Reino Unido.
Em seu relato sobre a formação das várias identidades sociais que se construíram em torno das práticas homossexuais, Green dá bastante atenção para a
questão da linguagem e das terminologias empregadas em diferentes momentos e contextos sociais para descrever as
relações eróticas masculinas. Termos como "sodomita", "fresco", "puto", "fanchono", "viado", "boneca", "bicha", "travesti" e "bofe" são todos abordados, discutindo-se sua possível origem e as diversas modificações denotativas e conotativas que sofreram. Em alguns casos, a natureza conjetural dos argumentos é bastante evidente. Entretanto, Green não se
coloca como dono de verdades absolutas,
e imprecisões ou controvérsias sobre esse
tema em nada enfraquecem seu argumento.
O livro nos deixa no ano de 1980, depois
de abordar o surgimento do jornal "Lampião", os primórdios do movimento homossexual brasileiro e suas primeiras
fragmentações. Tendo sido um ativo participante dos eventos relatados, Green foge das posturas ressentidas e dá uma versão bastante equânime desse momento,
tratando de maneira elegante e respeitosa
mesmo aqueles com quem mais se desentendeu na época.
Ao final ficamos à espera de um estudo
complementar, que traga a história para
nossos dias, já que muita coisa mudou
desde o início da década de 80 até hoje.
Basta lembrar que, na década de 50, em
festas de homossexuais e nos seus concursos de miss, a discrição exigia que, em
vez de palmas, só se estalassem os dedos.
É também uma pena que o corte temporal tenha impedido Green de examinar,
de maneira detalhada, o impacto da Aids
junto à população homossexual e as diversas maneiras como esses indivíduos
responderam à epidemia, destacando a
importância do papel desempenhado
por antigos militantes do movimento homossexual na elaboração de políticas de
prevenção à Aids que evitassem uma conotação anti-homossexual.
Além disso, sentimos falta de uma discussão maior das variações regionais na
maneira como a homossexualidade tem
sido vivida e representada, algo que o
próprio título do livro, ao se referir à "homossexualidade masculina no Brasil",
nos leva a esperar da obra. A edição brasileira ganha um prefácio de Peter Fry, referência essencial para qualquer estudo
da homossexualidade no Brasil.
Além de fazer uma simpática apresentação do autor e de sua obra, Fry generosamente reconhece os avanços que esse
livro representa sobre suas próprias "primeiras intuições sobre a estruturação da
homossexualidade no Brasil" e termina
por enfatizar a importância desses estudos não só para homens que gostam de
outros homens, mas também para todos
que se interessam pela recente história
social do Brasil. A tradução demonstra
grande cuidado e o livro é bonito -as
ilustrações ganharam melhor qualidade
técnica na edição brasileira.
Edward MacRae é professor de antropologia na
Universidade Federal da Bahia.
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