São Paulo, sábado, 11 de novembro de 2000

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Tempestade musical


O pianista Charles Rosen analisa a música romântica entre 1830 e 1850


A Geração Romântica
Charles Rosen
Tradução: Eduardo Seincmann
Edusp (Tel. 0/xx/11/3818-4146)
946 págs., R$ 89,00


MARCOS B. LACERDA

Charles Rosen provém das fileiras dos célebres virtuoses do piano para o meio dos maiores comentadores da história musical da atualidade. Já o conhecíamos por alguns de seus livros, particularmente "The Classical Style" e "Sonata Forms", que, lamentavelmente, não ganharam ainda uma tradução para o português. As duas publicações são relacionadas. Na primeira, a sonata clássica, não importa sob que manto formal, é apresentada como o grande veículo da dramaticidade da música compreendida entre a morte de Bach (1750) e a de Beethoven (1827). O segundo livro examina de maneira mais concentrada e sistemática esse elemento básico da composição européia, sujeito à reinterpretação de compositores eruditos até os dias atuais.
"A Geração Romântica" nos surpreende logo por sua dimensão, rara em produções congêneres. Surpreende ainda mais se considerarmos que o período abordado não ultrapassa praticamente duas décadas de música: de 1830 a 1850 aproximadamente, isto é, um período de grande fertilidade dos compositores nascidos em torno de 1810, alguns prematuramente desaparecidos com mais ou menos 40 anos de idade: Schumann, Chopin, Mendelsohn e Bellini. Portanto nenhuma luz especial é lançada sobre a produção de Beethoven.
Obras suas como a "6ª Sinfonia" são laconicamente interpretadas como extensão das idéias do Haydn tardio das "Estações" (1801), assim como o grupo final de suas obras extremamente complexas é visto como uma retomada dos elementos fixados em sua primeira fase... Certamente um luxo a que tem direito o autor das obras que precederam este livro, que sustentam o valor até das omissões. Ainda assim, Rosen é extremamente hábil e persuasivo em justificar a razão da ausência de Beethoven nos diversos contextos de discussão.

Canções de Schubert

O mesmo não ocorre com o caso de Franz Schubert. É certo que, tendo nascido pouco mais de uma década antes dos principais atores do livro, Schubert manifesta naturalmente tendências classicistas mais acentuadas. No entanto, o próprio Rosen - em "Sonata Forms", por exemplo- ocupara-se em dar-lhe um perfil francamente oposto ao de Beethoven e ao dos clássicos, com base em suas obras instrumentais. Schubert ganha um olhar especial apenas quando se discute a importância do ciclo de canções para o pensamento romântico: é tratada sua "Bela Moleira" e descartada sumariamente a via de introdução desse tema nos retrospectos da música romântica, normalmente representada por suas canções esparsas sobre textos de Goethe, o "Erlkönig" ou "Gretchen à Roda de Fiar".
Rosen não menciona também o advento dos poemas populares de "Trompa Mágica do Menino", sobejamente musicados de Schubert a Mahler e que, paralelamente ao lume das idéias fundadoras de Schiller e Schlegel, encontram lugar na apreciação de Nietzsche sobre os precedentes dionisíacos à faustosa obra wagneriana.
As digressões pendem entre dois pólos quase antagônicos: o pedagógico e o crítico-ensaístico. Em razão do peso maior ou menor destinado a uma dessas visões, o leitor será incitado a reações de perplexidade. Percebe-se constantemente a presença de um interlocutor oculto, desprezado pelas "obviedades" ou "impropriedades" proferidas. Mas quase nunca se experimenta um diálogo construtivo com uma tradição que tornou possível uma delimitação tão restrita e plausível do campo de observações sobre a obra dos primeiros românticos.
Um pequeno exemplo: Joseph Kerman, agraciado com uma honrosa menção no prefácio, publicou há anos um valioso estudo sobre a instabilidade tonal nas canções de Schubert, um efeito harmônico desestabilizador da discursividade clássica, largamente empregado no século 19. Agora, com base na obra de Chopin, vemos os mesmos fatos desfilarem pelas páginas do livro sem nenhuma preocupação em fixar sua compreensão de forma extensiva.
É fértil, sem dúvida, o distanciamento calculado da reflexão sobre música veiculada indistintamente por manuais de harmonia ou por uma musicologia sisuda que mais suprime do que revela a impressionante inspiração dos românticos. No entanto, não apenas nisso consiste a crítica musical: Barthes, por exemplo, já atentara para a identidade do fragmento literário e as curtas composições de Schumann e foi brilhantemente completado pelas detalhadas análises de Pousseur.

O estilo de Rosen

Mas a dimensão do calhamaço dá tempo suficiente de nos acostumarmos ao estilo de Rosen. Superadas as reações de perplexidade, nos rendemos com frequência a uma sensação de deslumbramento. O trabalho se estrutura a partir de conferências dadas ao longo de sua carreira, organizadas em duas abrangentes seções. Os quatro capítulos iniciais tratam de questões que podem ser estendidas à música de todos os românticos iniciais. Os oito capítulos da segunda parte levantam questões sobre o estilo de compositores específicos.
Em "Música e Som", são abordadas algumas questões ligadas à relação do compositor romântico com a percepção de estruturas virtualmente presentes na partitura. O compositor clássico acrescentava elementos de timbre à sua música apenas para acentuar procedimentos formais estabelecidos; na obra dos românticos, ao contrário, esse parâmetro adquire uma função sobreposta aos demais: uma obra de Schumann, articulada em quatro seções regulares, passa a ser ternária a partir de suas características acústicas; uma relação polirrítmica em um trecho de Chopin só se torna perceptível com o emprego controlado do pedal; e efeitos de ressonância são capazes de provocar a memória e suscitar a incidência de estruturas imaginárias sobre a realidade sonora.
Quem já pôde assistir a alguma das conferências de Rosen se lembrará das empolgantes demonstrações de suas idéias ao piano. É impossível deixar de mencionar sua relação com esse instrumento e a facilidade que possui de transitar por seu repertório. Assim é que todas as questões são ilustradas com exemplos da literatura musical, escolhidos com a mais fina sensibilidade e distantes das obviedades a que se propusera evitar.
Uma única escolha poderia demonstrar uma série de conceitos. No entanto, a cada novo tópico proliferam os exemplos: "Eusebius", de Schumann, contém uma série dos recursos inovadores discutidos no trabalho, mas é tomado, quase provocativamente, para ilustrar apenas o emprego de um único recurso, o da reminiscência.
Os dois capítulos seguintes buscam recriar um contexto parcial em que imergia dialeticamente a composição musical. O que em outros "tratados" é apenas referido, ou tão exaustivamente exposto, que se acaba omitindo o próprio fato musical -isto é, conceitos como "Sturm und Drang", sentimentalismo, imitação da natureza etc.- adquire aí uma dimensão viva. Sobrepõem-se citações diversas, segundo o "gosto", mas também a argúcia interpretativa de Rosen. A narrativa deriva dos autores alemães (Schlegel, Schiller, Goethe, Hamann, Müller, Novalis etc.) para alguns "estrangeiros", cuja relação com a música é incerta (Wordsworth, Bertòla e Ramond de Carbonnières). A publicação preserva os originais; o texto sobre música torna-se uma peça literária; particularmente bem-sucedida é a tradução à pág. 225 de Ramond. É soberana aí a presença de Schumann, citado em vários contextos. No entanto, Rosen não se omite em relação ao viés historicista e traça o perfil evolutivo do ciclo de canções desde "À Amada Distante" (Beethoven) aos "Amores do Poeta" (Schumann), passando pela "Bela Moleira" (Schubert) e apresentando análises parciais de obras diversas, como a monumental "Fantasia op. 17", de Schumann.

Harmonia e forma musical

O quarto capítulo aborda questões de harmonia e forma musical. O método é o mesmo do primeiro: certos procedimentos composicionais, que já encontraram emprego no século 18, são agora revistos nas composições românticas. Particularmente feliz me parece a demonstração da forma de construção de melodias por ciclos de quatro compassos. Os desvios românticos a esse modelo são nitidamente oriundos da atitude deliberada dos compositores. Em todos os exemplos percebe-se a presença de um modelo estável, subjacente à construção irregular de melodias.
Na segunda parte do livro, Rosen procede com o que chamaríamos de senso "reparador". Aquela atenção exagerada à música de Beethoven, própria de outras obras sobre a música no século 19, é substituída por uma exaustiva apreciação da obra de Chopin -certamente um dos momentos que trarão vida longa à publicação. Ele tem razão quando insinua a parcialidade de historiadores e analistas na crítica a Chopin, da mesma forma que se atrita -construtivamente- com desvios de execução, devido à popularidade das obras desse compositor entre os intérpretes pianísticos de todo o mundo (o fenômeno da pianolatria não se restringe a essas plagas...).
Fica perfeitamente demonstrado, por exemplo, com a visão das "baladas", o equívoco de que Chopin não saberia lidar com formas de grandes dimensões ou de que aspectos frívolos de sua obra constituem apenas um fenômeno aparente. No caso de Liszt -"vulgar e grandioso"-, assim como no de Berlioz, são tenazmente combatidos os preconceitos históricos criados antes a partir de suas imagens públicas do que do conteúdo e poder de inovação de sua obra.
A publicação vem acompanhada de um CD em que o próprio Charles Rosen executa obras das quais não se têm muitas gravações, como "Réminiscences de Don Juan", de Liszt, e a "Kreisleriana", de Schumann.

Marcos Branda Lacerda é professor de música na Escola de Comunicações e Artes da USP.


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