São Paulo, sábado, 11 de novembro de 2000

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De gênio para gênio


Páginas arrebatadas de Victor Hugo


William Shakespeare
Victor Hugo
Tradução: Renata Cordeiro
e Paulo Schmidt
Ed. Campanário
(Tel. 0/xx/43/328-1840)
330 págs., R$ 28,00

VICTOR KNOLL


Com a ascensão ao poder de Napoleão 3º, Victor Hugo procura exílio na Inglaterra junto com seu filho, François-Victor, onde permanecerá por cerca de 20 anos. Certamente essa circunstância o levou a se converter em um leitor assíduo de Shakespeare. Entretanto, um outro fator contribuiu para o seu interesse pelo bardo elizabetano: seu filho, durante o exílio, se propôs e realizou a tradução da obra completa de Shakespeare.
As páginas de Victor Hugo são arrebatadas. A postura romântica encontra aqui um momento exacerbado. De fato, o gênio e seu poder é o grande tema do livro. Shakespeare é tratado como pano de fundo que em momentos alternados assume a cena. Em continuidade, trata-se de uma ocasião para refletir sobre a arte como momento supremo do espírito humano. Aliás, em ambos os casos, menos reflexão, mais apologia. Quando publicado, em 1864, esse grande painel montado por Victor Hugo sobre a arte e a atividade criadora chegou a ser visto como uma espécie de "manifesto do século 19".
A qualificação do gênio e da atividade criadora da imaginação é abundante. Não folheamos sequer duas ou três páginas sem que nos deparemos com uma referência, definição ou observação sobre o infinito poder de criação de Homero, Ésquilo, Dante, Cervantes e, é claro, desse "homem-oceano" chamado Shakespeare. Adiante, além de "oceano", é "terra, é globo". O empolgamento de Victor Hugo é tal que a figura do gênio ganha o desenho de um quase-deus. Há um capítulo reservado aos gênios. A lista é longa. Entre eles, Jó, Isaías, Lucrécio, Juvenal, Beethoven. Dentro deste cenáculo, dois nomes são postos em estreita relação; um, o antigo e outro, o moderno. "Dois homens nesse grupo, Ésquilo e Shakespeare, representam especialmente o drama". Esta relação perpassa todos os capítulos como um "Leitmotiv" que traz à tona a grandiosidade dos conflitos e das personagens dos dois poetas. "Shakespeare é Ésquilo 2º".
Aliás, Victor Hugo, fiel ao poder do sujeito, está sempre mais interessado nas personagens do que nos enredos. Mais importa Prometeu do que a oferta do fogo aos homens, mais importa Romeu e Julieta -o amor absoluto- do que o conflito que emoldura esse amor. Mas "Hamlet" é a tragédia preferida. "Prometeu e Hamlet são dois fidalgos desnudos; de um escorre o sangue, de outro a dúvida." "Lembrai-vos do conselho que, em Ésquilo, o Oceano dá a Prometeu: "parecer louco é o segredo do sábio'". É este conselho que Hamlet assume e que lhe permite lidar com a dúvida. E temos também, no "Rei Lear", a loucura fingida de Edgar. Para Victor Hugo, "aos olhos da filosofia da arte, a loucura fingida de Edgar esclarece a (...) de Hamlet". E a palavra final sobre a personagem: "A dúvida aconselhada por um fantasma, eis Hamlet".

Painel grandiloquente
A postura do romântico francês -aqui ultra-romântico- ao escrever sobre Shakespeare e passear livremente por entre uma plêiade de poetas e artistas é a de um gênio que se ocupa com gênios. Conta-nos o autor que a decisão de se entregar à redação deste livro se prendeu ao sentimento de que dissera muito pouco sobre Shakespeare quando escreveu o prefácio para a tradução de seu filho; sentiu a necessidade de escrever mais, mais e mais. E ainda, tomando Shakespeare como referência, se empenhou em vasculhar o reino dos gênios e a imensa terra da arte. Dessa maneira, temos um painel grandiloquente sobre a força criadora da qual alguns homens, em cada geração, época ou cultura, estão possuídos e que lhes permite o infinito exercício da imaginação. No texto de Victor Hugo, tudo é hiperbólico.
O artista, em particular o poeta, é posto em um altar profano, mas tocado de alguma divindade. É objeto de louvação, elogio, louvor, apologia, celebração, enaltecimento, exaltação -todas estas palavras reunidas e ditas ao mesmo tempo e ainda mais outras do gênero. "Shakespeare é a fertilidade, a força, a exuberância, a mama cheia, a taça espumante, a cuba transbordando, a seiva em excesso, a lava em torrente, a vasta chuva da vida", e assim vai. Mais uma pérola: "Shakespeare é o semeador de deslumbramentos".
No esboço biográfico que abre o livro, conta-nos Hugo que Shakespeare, ao chegar em Londres, pelo que consta fugido por praticar caça clandestina, "para ganhar a vida, pôs-se a guardar cavalos na porta dos teatros". Após longa enumeração cronológica de suas obras, emoldurada por grandes eventos ou outras grandes obras que lhes eram contemporâneas, temos esta delícia: "De guardador de cavalos se tornou pastor de homens".
Shakespeare permaneceu eclipsado durante dois séculos. Um esquecimento derivado da falta de percepção do valor de sua obra. Os culpados: os séculos 17 e 18. Neles, basta citar dois nomes: Voltaire e Shaftesbury. "Já há dois tomos impressos desse shakespear, que tomar-se-iam por peças de feira, feitas há duzentos anos", tal é o comentário de Voltaire. ""Esse Shakespeare é um espírito grosseiro e bárbaro", diz Lorde Shaftesbury". Deve-se ao século 19 a reabilitação da obra shakesperiana -tal é a sugestão de Victor Hugo. É preciso reconhecer o gênio para reconhecer a obra.
"Hamlet" merece um tratamento especial. Tanto a obra quanto a personagem. "A caveira passa das mãos de Dante às mãos de Shakespeare; Ugolino a rói, Hamlet a questiona". Mas "Macbeth", "Otelo" e "Rei Lear" também estão sob a mira do olhar romântico. São as quatro figuras que "dominam o alto edifício de Shakespeare". Quem é Macbeth?: "Macbeth enfrentou tudo, transpôs tudo, violou tudo, quebrou tudo, e esse excesso acaba por alcançar a própria natureza; a natureza perde a paciência, a natureza entra em ação contra Macbeth; a natureza se torna alma contra o homem que se tornou força".
Otelo "querendo matar, o que usa para matar? O veneno? O machado? A faca? Não, o travesseiro. Matar é adormecer. O próprio Shakespeare provavelmente não se deu conta disso. O criador, às vezes quase a contragosto, obedece a seu tipo, na medida em que esse tipo é um poder. E é assim que Desdêmona, esposa do homem-noite, morre sufocada pelo travesseiro, que teve o primeiro beijo e que tem o último sopro".
A grande personagem de "Rei Lear" é Cordélia. "O pai é o pretexto da filha. Essa admirável criação humana, Lear, serve de suporte para essa inefável criação divina, Cordélia. Todo esse caos de crimes, de vícios, de demências e de misérias, tem por razão de ser o surgimento esplêndido da virtude".
Victor Hugo termina o prefácio que escreveu à tradução de Shakespeare -que qualifica como "um retrato da Inglaterra enviado à França"- com estas palavras: "Há algo de piedoso e de tocante nesse dom que um francês oferece à pátria, de onde estamos ausentes, ele e eu, por nossa vontade e com dor".
"William Shakespeare", o livro, interessa em virtude da exuberância, diria desmedida, do gênio de seu autor. As palavras aqui registradas são um pálido reflexo da inflamada retórica do poeta francês, por vezes verborrágica, mas de leitura empolgante. Logo nas primeiras páginas o leitor é seduzido e, quando lê as últimas, é tomado do sentimento de que não perpetramos apenas o legado de nossa miséria.

Victor Knoll é professor de estética do departamento de filosofia da USP.


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