São Paulo, sábado, 11 de novembro de 2000

Texto Anterior | Índice

Uma alegoria previsível


O escritor alemão Günter Grass dedica uma pequena história a cada ano do nosso século


Meu Século
Günter Grass
Tradução: Irene Aron
Record
(Tel.0/xx/21/585-2002)
332 págs., R$ 38,00


HANS ULRICH GUMBRECHT

O sentimento nacional leva todos os que pertencem a uma nação a se preocuparem com seu eu coletivo; tende também a convencê-los de que seu próprio eu coletivo é, no mínimo, particularmente interessante. Isso parece se aplicar a qualquer nação e pode ser realmente inevitável enquanto o mundo continuar a ser assombrado pelo conceito de nação.
Entretanto a afirmação de que nenhuma outra história nacional no século 20 tem um potencial narrativo que se iguale ao da história alemã nessa época (seguida de perto por Japão e Rússia) deveria ser aceita como uma declaração que foge a tal lógica nacionalista. Se lembrarmos que, durante as dez últimas décadas, os altos e baixos da vida coletiva foram especialmente notáveis, dramáticos e mutáveis na Alemanha, isso não implica nenhuma pretensão a algo absolutamente positivo (nem a algo absolutamente negativo) inerente a esse país. Nenhuma outra nação, por exemplo, alcançou tanto poder durante o século 20 quanto os EUA; nenhuma perdeu mais influência, durante o mesmo período de tempo, do que a Grã-Bretanha e a França -mas, em comparação com a Alemanha (e também com o Japão e a Rússia), o desenvolvimento destas se caracterizou por uma tranquilidade quase teleológica.
Isso não ocorreu com a Alemanha: esta, por volta de 1900, de modo excessivamente ambicioso, estava buscando "um lugar ao sol" (como costumava dizer seu Imperador), que a tornasse líder mundial, mas acabou humilhada apenas 18 anos depois, ao final da Primeira Guerra Mundial e das negociações de paz que se seguiram. O país passou pela inflação mais devastadora que o mundo moderno já viu, para voltar à glória cultural e a um vigor econômico relativo em meados da década de 20. Em 1933, os alemães escolheram, em uma eleição livre e democrática, ser governados pelo regime nazista, cuja agressividade militar e cujo ideal de exterminação racial transformaram essa nação em um pesadelo para a humanidade, levando-a a uma segunda derrota militar ainda mais devastadora num intervalo de menos de 30 anos.

Sentimento de frustração
Se o país havia sido punido com condições econômicas quase insuportáveis depois da Primeira Guerra Mundial, o início da situação de Guerra Fria no final da década de 40 dividiu a nação alemã em dois Estados politicamente independentes e opostos ideologicamente. Entretanto, ao contrário do que se esperava, os dois Estados foram muito bem-sucedidos dentro de seus respectivos campos da política mundial até que, de modo bastante inesperado, o colapso do comunismo ao final da década de 80 reunisse novamente as duas partes da nação alemã, ambas despreparadas para isso. Porém, nos dois lados da divisão anterior, essa reunificação tem sido sentida como uma situação de crise contínua nos últimos dez anos -e é portanto com um certo sentimento de frustração com relação a sua nacionalidade que a maioria dos alemães parece haver terminado o século 20.
Günter Grass, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1999, é certamente o mais alemão entre todos os autores vivos, pois nenhum outro usou, explorou e desenvolveu esse potencial narrativo oferecido pela história alemã do século 20 com tanto êxito quanto ele. Parte da realização de Günter Grass deve-se ao puro poder de sua linguagem, isto é, aos sabores múltiplos e sensuais de sua linguagem. Embora sua sintaxe possa às vezes parecer rudimentar e (talvez intencionalmente) descuidada, nenhum outro escritor alemão de sua geração usou de maneira tão impressionante as variedades históricas e regionais particularmente ricas oferecidas pelo léxico alemão.
Porém uma tensão biográfica básica acabou se tornando algo ainda mais importante para Grass: na época de seu nascimento em 1927, sua cidade natal, Gdánsk, era uma unidade política independente no Mar Báltico, sob o protetorado da Liga das Nações, habitada por uma maioria alemã e protestante e por uma minoria crescente polonesa e católica. A maior parte daqueles de origem alemã, como Grass e sua família, que tiveram de abandonar os territórios do Leste europeu após a Segunda Guerra Mundial, voltou-se para os partidos de uma nova direita política -frequentemente bastante radical.
Günter Grass, ao contrário, tem sido sempre um defensor comovedoramente fervoroso do Partido Social-Democrático Alemão, um defensor que também talvez nunca tenha abandonado completamente os sonhos de um socialismo nunca atenuado (Grass foi grande amigo de Willy Brandt, sem dúvida o mais carismático e bem-sucedido político alemão da esquerda política tradicional no século 20). De qualquer modo, o trabalho de Grass consegue unir as memórias e imagens da metade mais "conservadora" da nação alemã com a visão futura da metade mais "progressista".

O século de Grass
Como deixa claro o título do mais recente livro de Grass -"Meu Século"-, o século 20 é realmente seu século, a partir de pelo menos duas perspectivas. Num sentido bastante banal, o século 20 é, certamente, o século de uma pessoa que, como Grass, passou 75 anos de sua vida dentro desse quadro cronológico. Mas é também o próprio século de Grass porque, como já procuramos explicar, ele há muito se tornou conhecido como o grande autor de ficção histórica no que se refere ao século 20 alemão.
Infelizmente, nenhuma outra obra de Grass aproximou-se da estranheza inquietante com que "O Tambor" ("Die Blechtrommel"), seu fabuloso primeiro romance, publicado em 1959, evocava a época nazista a partir da perspectiva de uma criança anã que, de algum modo, em protesto contra a história alemã, havia decidido não crescer. Embora "Um Campo Vasto", seu mais recente romance longo, tenha sido em geral considerado uma tentativa frustrada de escrever o romance histórico da reunificação alemã, Günter Grass, tanto em suas maiores realizações quanto em seus maiores fracassos, vem desempenhando um papel cada vez mais complexo que, por meio de uma citação de Balzac, poderíamos caracterizar como o de "ministro da história da nação alemã".
Portanto não nos surpreende que, em 1999, Grass tenha surgido com seu livro sobre seu século alemão, um livro que foi particularmente bem recebido pelos leitores alemães e que agora é apresentado em uma cuidada tradução para o português. A fórmula que Grass usa nessa obra é agradavelmente elementar -mas também, do ponto de vista da escrita literária, estranhamente não-comprometedora. Ele dedica uma pequena história, um quadro mental, um documento criado ficcionalmente, a cada ano deste século que termina. Como as identidades dos narradores implícitos mudam constantemente -do ponto de vista sociológico, geográfico e, inevitavelmente, cronológico-, "Meu Século" vem se somar ao caleidoscópio extremamente complexo e comovedoramente múltiplo da história recente da Alemanha.
No entanto, escolher tal "cronografia ficcional" como um substituto das formas mais clássicas do romance histórico acarreta alguns problemas. Em primeiro lugar (e Grass deve ter tido consciência disso), o autor abandonou as reviravoltas dramáticas, até mesmo apocalípticas, que a história alemã nos oferece ao quebrar seu potencial narrativo no século 20, dividindo-a em cem perspectivas não-coerentes.
Em segundo lugar (e ainda mais importante), a história aparentemente fragmentada da Alemanha recupera coerência e, com isso, infelizmente recupera também um alto grau de previsibilidade, devido à escolha particular dos cem narradores e suas perspectivas. O primeiro verbete (1900) é a história de um jovem soldado bávaro que está sendo recrutado para as forças coloniais alemãs na China; o último (1999) é o relato de uma mulher proletária que, graças ao apoio financeiro de seu filho "nouveau riche", sobreviveu ao século em uma casa de repouso confortável, mas monótona; 1933, ano em que Hitler sobe ao poder, é visto da perspectiva de um comerciante de arte judeu; 1939 é narrado pela voz de um soldado que participa da invasão nazista da Polônia; vários dos anos que precedem ou se seguem à reunificação alemã são contados pelo próprio Günter Grass (ligeiramente ficcionalizado).
Assim, a concretude e a fragmentação dos cem capítulos que compõem "Meu Século" acabam se tornando uma concepção social-democrática da história moderna alemã, talvez demasiadamente previsível. Esta é uma concepção de história que procura realizar a proposta de Walter Benjamin de privilegiar a "visão dos derrotados" -sem perder o interesse analítico na "perspectiva dos vencedores" (é sintomático e significativo que 1936, ano da Olimpíada nazista, seja evocado por intermédio dos olhos dos espectadores no estádio e por intermédio dos ouvidos de um prisioneiro de um campo de concentração nas imediações do estádio, que, secretamente, segue a transmissão dos acontecimentos pelo rádio).

Coerência hegeliana
Mas, acima de tudo -e de certa forma contra o efeito fragmentador de seus cem verbetes-, o século de Günter Grass acaba apresentando uma coerência narrativa de dimensões hegelianas. Isso porque é difícil, se não impossível, deixar de perceber a moralidade clara e, no final das contas, coerente que está por baixo dessa história fragmentada: punida pelas duas Guerras Mundiais, a Alemanha teve que abandonar seus sonhos nacionalistas para se tornar a nova nação européia, "normal" e (mais ou menos) pacífica, em vias de oferecer benefícios sociais e justiça para uma classe média crescente e cada vez mais niveladora.
"Meu Século" é sem dúvida um livro fabuloso e extraordinariamente envolvente para um leitor que quer apenas se familiarizar com a história alemã do século 20. Entretanto acho que leitores que não sejam alemães ou germanistas vão precisar ter à mão um livro sobre a história da Alemanha ou uma enciclopédia, pois há uma multiplicidade de referências específicas que são importantes para as pequenas narrativas de Grass, porém de difícil compreensão para não-especialistas.
Agora que o tom desta resenha acabou se tornando pouco entusiasmado, será que existem pontos negativos em uma história da Alemanha no século 20 que seja potencialmente tão útil e tão positiva e previsivelmente social-democrática no sentido abrangente que ela sugere? A primeira resposta a essa pergunta precisa ser negativa: não apenas nada há de errado com tal história como não há, na verdade, nenhuma outra nação no mundo que tenha uma necessidade mais evidente de expressar seu passado de modo moralmente responsável do que a Alemanha.
Se surge algum desapontamento quanto ao livro de Grass, isso pode ser proveniente das memórias vívidas que alguns de seus leitores guardam com carinho de seus livros bem anteriores, em que Grass parecia ser o mestre de concretizações narrativas altamente imprevisíveis, estranhas, mas reveladoras. Oskar Matzerath, o narrador ficcional de "O Tambor", que resiste à história da Alemanha ao decidir interromper seu crescimento físico (e, de certa forma, psicológico), foi uma invenção tão genial que seria injusto usar seu protagonista contra os livros posteriores de seu inventor. Mesmo em "Meu Século", alguns dos verbetes mostram lampejos do brilhantismo anterior de Grass toda vez que permitem que a estranha concretude dos fatos funcionem contra -e, na verdade, talvez a favor de- um sentido histórico mais complexo, mais "profundo".
Meus dois anos favoritos neste livro são 1926 e 1985. O primeiro é escrito da perspectiva de um servidor (ficcional) incondicionalmente fiel de Guilherme 2º, ex-imperador da Alemanha, que, em seu exílio na Holanda -e este é um fato biográfico sem importância histórica-, desenvolveu uma obsessão doentia por cortar árvores. O verbete sobre 1985 apresenta, novamente sob a perspectiva de uma casa de repouso para idosos, a resposta epistolar de uma avó à pergunta da neta sobre como ela havia passado os últimos dez anos. A avó admite que "em parte perdeu e em parte aproveitou" esses anos, assistindo na televisão a "sitcoms" e seriados sobre a família, e apresenta um panorama cuidadoso, quase completo, agradavelmente banal, das imagens e dos rostos que, através da televisão, têm dominado a mente coletiva alemã desde o final da década de 50.
Na verdade, o que poderia ser mais aquietador na história alemã do que finais múltiplos não-dramáticos em uma casa de repouso?

Hans Ulrich Gumbrecht é professor na Universidade de Stanford (EUA).
Tradução de Eliana Lourenço Reis


Texto Anterior: Milton Meira: Cunhambebe e o frade
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.