São Paulo, sábado, 11 de novembro de 2000

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Cunhambebe e o frade

Brasil - Mito Fundador e Sociedade Autoritária
Marilena Chaui
Fundação Perseu Abramo
(Tel. 0/xx/ 11/5571-4299)
104 págs., R$ 13,00

Meu Querido Canibal Antônio Torres
Record (Tel. 0/xx/21/585-2000)
190 págs., R$ 20,00



MILTON MEIRA


Em meio a tantas publicações sobre o "Descobrimento" ou o "achamento" deste "paraíso" tropical que é o Brasil, convém destacar duas modestas contribuições que me parecem as mais marcantes porque atingem em cheio o alvo a que se propõem: desmistificar o que se costumou chamar, na história oficial, de "maravilha do Descobrimento", o momento idílico de fundação desse "gigante pela própria natureza".
São modestas porque não se propõem como trabalhos exaustivos, mas apenas como indicações para reavivar nossa memória a respeito de uma outra história que quase não nos é contada nos livros de formação básica de nossas escolas. No entanto, esses dois textos apresentam muito mais do que uma simples tentativa de "repensar" nossa história.
Marilena Chaui parte do pressuposto de que todo o imaginário que se criou sobre o Brasil se deve ao fato de que tanto a América como o Brasil "são invenções históricas e construções culturais. Sem dúvida, uma terra ainda não vista nem visitada estava aqui. Mas "Brasil" (como também "América') é uma criação dos conquistadores europeus. O "Brasil" foi instituído como colônia de Portugal e inventado como "terra abençoada por Deus", à qual, se dermos crédito a Pero Vaz de Caminha, "Nosso Senhor não nos trouxe sem causa", palavras que ecoarão nas de Afonso Celso, quando escrever, quatro séculos depois: "Se Deus aquinhoou o Brasil de modo especialmente magnânimo, é porque lhe reserva alentados destinos". É essa construção que estamos designando de mito fundador".
O ponto alto do texto é o desenvolvimento dos três componentes que estruturam o mito fundador do Brasil: a obra de Deus -a natureza-, sua palavra -a história- e sua vontade -o Estado. Aqui seria o oriente-paraíso, a terra "cortada por rios cujos leitos são de ouro e prata, safiras e rubis, por onde correm leite e mel", tal como havia profetizado Isaías. "O cristianismo medieval criou uma vasta literatura cujo tema era a localização e descrição do Paraíso Terrestre, que será retomada com vigor durante a Renascença, sob o impacto de fortes correntes milenaristas e proféticas. Numa palavra, portanto, "Oriente" significa o reencontro com a origem perdida e o retorno a ela".
Como nossa história já estava traçada, de acordo com a concepção teológica e providencialista, os sujeitos de uma história já existente -os indígenas- praticamente não aparecem, porque não são sujeitos de direito nem da história. Razão pela qual serão considerados naturalmente inferiores e naturalmente escravos de seus conquistadores, naturalmente superiores. Eles não se encontram nem mesmo em estado de natureza porque, neste caso, poderiam se constituir numa comunidade política, por um contrato fundador que elevaria todos à condição de membros de uma associação política.
O texto de Marilena, aos poucos, vai eletrizando o leitor, pela ênfase com que demonstra cada passo da sua reflexão centrada sempre numa idéia: "O Brasil, achamento português, entra na história pela porta providencial, que tenderá a ser a versão da classe dominante, segundo a qual nossa história já está escrita, faltando apenas o agente que deverá concretizá-la ou completá-la no tempo. É essa visão que se encontra na abertura do hino nacional, quando um sujeito oculto -"ouviram'- é colocado como testemunha de um brado retumbante, proferido por um "povo heróico", grito que, "no mesmo instante", faz brilhar a liberdade no "céu da pátria". Num só instante surge um povo heróico, significativamente figurado pelo herdeiro da coroa portuguesa, que, por um ato soberano da vontade, cinde o tempo, funda a pátria e completa a história".

Carnificina abominável

Ora, o que o livro de Antonio Torres nos apresenta é sim a imagem de um outro povo heróico exterminado inapelavelmente "numa carnificina abominável", que nossa história não conta. Esse povo situava-se no tempo da pedra polida, numa "região paradisíaca que os brancos batizaram de Rio de Janeiro, ignorando os seus antigos nomes: rio de Arrefens, rio de Oriferis, rio de Rama, rio de Iaceo. Cunhambebe foi o senhor destas águas de sonho e fúria".
Era o povo tupinambá, dono do Novo Mundo dos brancos, que habitava o litoral brasileiro desde a embocadura do Amazonas até o rio da Prata e que havia se estabelecido no Rio de Janeiro, Bahia e Maranhão. Seu chefe era Cunhambebe, que quer dizer "língua que fala rasteira" ou "homem de fala mansa". "Vivia em guerra permanente contra os seus vizinhos, como os tupiniquins, em violentas batalhas pela defesa do seu espaço ou de vingança familiar. Não levava desaforo para casa nem engolia uma desfeita. Crime algum contra os seus ficava impune. Justiçava os inimigos com impressionante crueldade. E os devorava. Aí chegaram os portugueses, vomitando fogo, com o firme propósito de tomar a terra na marra e escravizar os seus donos. Cunhambebe enfureceu-se. E fez a terra tremer."
Eis aí nosso herói da resistência, que a história retrata como amigo dos portugueses, mas que, na verdade, foi amigo dos primeiros franceses que aqui chegaram. Com frequência, visitava o forte de Villegagnon e, antes de morrer numa das tantas pestes que dizimaram aldeias inteiras, liderou a Confederação dos Tamoios. Seu retrato mais impressionante nos foi traçado pelo frade André Thevet em "As Singularidades da França Antártica". No meu tempo de primário, o índio "herói" era Araribóia, um traidor, porque combateu contra os seus ao lado dos portugueses. Sobre Cunhambebe, moita.
O fascinante da narrativa de Torres é que somos levados, na busca vã de algum vestígio do grande chefe guerreiro e de sua gente, a percorrer a trilha do nosso herói, incluindo uma volta de táxi pela orla marítima do Rio e uma viagem de ônibus para Angra dos Reis (de onde o autor desta resenha é natural...), até o local da aldeia de Cunhambebe, hoje vila do Frade, no sopé do ponto mais alto da região, exatamente o pico do Frade. Conforme a lenda, um frade foi morto e comido pelos indígenas e virou montanha. Ainda hoje, quem olhar da Ilha Grande para o continente verá, nas franjas da cordilheira, um monge deitado, com capuz e tudo, mas não se sabe se capuchinho, franciscano ou carmelita. Essa é nossa história. Cunhambebe virou pó, mas o frade virou montanha.


Milton Meira do Nascimento é professor de ética e filosofia política na USP e autor de "Opinião Pública e Revolução" (Edusp/Nova Stela).


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