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Cunhambebe e o frade
Brasil - Mito Fundador e
Sociedade Autoritária
Marilena Chaui
Fundação Perseu Abramo
(Tel. 0/xx/ 11/5571-4299)
104 págs., R$ 13,00
Meu Querido Canibal
Antônio Torres
Record (Tel. 0/xx/21/585-2000)
190 págs., R$ 20,00
MILTON MEIRA
Em meio a tantas publicações
sobre o "Descobrimento" ou o
"achamento" deste "paraíso" tropical que é o Brasil, convém destacar duas modestas contribuições
que me parecem as mais marcantes porque atingem em cheio o alvo a que se propõem: desmistificar o que se costumou chamar, na
história oficial, de "maravilha do
Descobrimento", o momento idílico de fundação desse "gigante
pela própria natureza".
São modestas porque não se
propõem como trabalhos exaustivos, mas apenas como indicações
para reavivar nossa memória a
respeito de uma outra história
que quase não nos é contada nos
livros de formação básica de nossas escolas. No entanto, esses dois
textos apresentam muito mais do
que uma simples tentativa de "repensar" nossa história.
Marilena Chaui parte do pressuposto de que todo o imaginário
que se criou sobre o Brasil se deve
ao fato de que tanto a América como o Brasil "são invenções históricas e construções culturais. Sem
dúvida, uma terra ainda não vista
nem visitada estava aqui. Mas
"Brasil" (como também "América') é uma criação dos conquistadores europeus. O "Brasil" foi instituído como colônia de Portugal
e inventado como "terra abençoada por Deus", à qual, se dermos
crédito a Pero Vaz de Caminha,
"Nosso Senhor não nos trouxe
sem causa", palavras que ecoarão
nas de Afonso Celso, quando escrever, quatro séculos depois: "Se
Deus aquinhoou o Brasil de modo
especialmente magnânimo, é
porque lhe reserva alentados destinos". É essa construção que estamos designando de mito fundador".
O ponto alto do texto é o desenvolvimento dos três componentes
que estruturam o mito fundador
do Brasil: a obra de Deus -a natureza-, sua palavra -a história- e sua vontade -o Estado.
Aqui seria o oriente-paraíso, a terra "cortada por rios cujos leitos
são de ouro e prata, safiras e rubis,
por onde correm leite e mel", tal
como havia profetizado Isaías. "O
cristianismo medieval criou uma
vasta literatura cujo tema era a localização e descrição do Paraíso
Terrestre, que será retomada com
vigor durante a Renascença, sob o
impacto de fortes correntes milenaristas e proféticas. Numa palavra, portanto, "Oriente" significa o
reencontro com a origem perdida
e o retorno a ela".
Como nossa história já estava
traçada, de acordo com a concepção teológica e providencialista,
os sujeitos de uma história já existente -os indígenas- praticamente não aparecem, porque não
são sujeitos de direito nem da história. Razão pela qual serão considerados naturalmente inferiores e
naturalmente escravos de seus
conquistadores, naturalmente superiores. Eles não se encontram
nem mesmo em estado de natureza porque, neste caso, poderiam
se constituir numa comunidade
política, por um contrato fundador que elevaria todos à condição
de membros de uma associação
política.
O texto de Marilena, aos poucos, vai eletrizando o leitor, pela
ênfase com que demonstra cada
passo da sua reflexão centrada
sempre numa idéia: "O Brasil,
achamento português, entra na
história pela porta providencial,
que tenderá a ser a versão da classe dominante, segundo a qual
nossa história já está escrita, faltando apenas o agente que deverá
concretizá-la ou completá-la no
tempo. É essa visão que se encontra na abertura do hino nacional,
quando um sujeito oculto -"ouviram'- é colocado como testemunha de um brado retumbante,
proferido por um "povo heróico",
grito que, "no mesmo instante",
faz brilhar a liberdade no "céu da
pátria". Num só instante surge um
povo heróico, significativamente
figurado pelo herdeiro da coroa
portuguesa, que, por um ato soberano da vontade, cinde o tempo, funda a pátria e completa a
história".
Carnificina abominável
Ora, o que o livro de Antonio
Torres nos apresenta é sim a imagem de um outro povo heróico
exterminado inapelavelmente
"numa carnificina abominável",
que nossa história não conta. Esse
povo situava-se no tempo da pedra polida, numa "região paradisíaca que os brancos batizaram de
Rio de Janeiro, ignorando os seus
antigos nomes: rio de Arrefens,
rio de Oriferis, rio de Rama, rio de
Iaceo. Cunhambebe foi o senhor
destas águas de sonho e fúria".
Era o povo tupinambá, dono do
Novo Mundo dos brancos, que
habitava o litoral brasileiro desde
a embocadura do Amazonas até o
rio da Prata e que havia se estabelecido no Rio de Janeiro, Bahia e
Maranhão. Seu chefe era Cunhambebe, que quer dizer "língua
que fala rasteira" ou "homem de
fala mansa". "Vivia em guerra
permanente contra os seus vizinhos, como os tupiniquins, em
violentas batalhas pela defesa do
seu espaço ou de vingança familiar. Não levava desaforo para casa nem engolia uma desfeita. Crime algum contra os seus ficava
impune. Justiçava os inimigos
com impressionante crueldade. E
os devorava. Aí chegaram os portugueses, vomitando fogo, com o
firme propósito de tomar a terra
na marra e escravizar os seus donos. Cunhambebe enfureceu-se.
E fez a terra tremer."
Eis aí nosso herói da resistência,
que a história retrata como amigo
dos portugueses, mas que, na verdade, foi amigo dos primeiros
franceses que aqui chegaram.
Com frequência, visitava o forte
de Villegagnon e, antes de morrer
numa das tantas pestes que dizimaram aldeias inteiras, liderou a
Confederação dos Tamoios. Seu
retrato mais impressionante nos
foi traçado pelo frade André Thevet em "As Singularidades da
França Antártica". No meu tempo de primário, o índio "herói"
era Araribóia, um traidor, porque
combateu contra os seus ao lado
dos portugueses. Sobre Cunhambebe, moita.
O fascinante da narrativa de
Torres é que somos levados, na
busca vã de algum vestígio do
grande chefe guerreiro e de sua
gente, a percorrer a trilha do nosso herói, incluindo uma volta de
táxi pela orla marítima do Rio e
uma viagem de ônibus para Angra dos Reis (de onde o autor desta resenha é natural...), até o local
da aldeia de Cunhambebe, hoje
vila do Frade, no sopé do ponto
mais alto da região, exatamente o
pico do Frade. Conforme a lenda,
um frade foi morto e comido pelos indígenas e virou montanha.
Ainda hoje, quem olhar da Ilha
Grande para o continente verá,
nas franjas da cordilheira, um
monge deitado, com capuz e tudo, mas não se sabe se capuchinho, franciscano ou carmelita. Essa é nossa história. Cunhambebe
virou pó, mas o frade virou montanha.
Milton Meira do Nascimento é professor de ética e filosofia política na USP e
autor de "Opinião Pública e Revolução"
(Edusp/Nova Stela).
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