São Paulo, Sábado, 11 de Dezembro de 1999


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Hegel em Paris



Leia o prefácio de Bento Prado Jr. a um estudo clássico de Jean Hyppolite sobre Hegel
BENTO PRADO JR.

Num relatório sobre "o estado dos estudos hegelianos na França", escrito em 1930, o filósofo russo, radicado em Paris, Alexandre Koyré começava por sublinhar a pobreza dos trabalhos consagrados ao filósofo em seu país de adoção. E explicava: "É que, ao contrário do que ocorreu na Alemanha, na Inglaterra e na Itália, jamais pôde formar-se uma escola hegeliana na França, Hegel jamais teve lá um discípulo como teve Schelling na pessoa de Ravaisson; e o próprio neo-hegelianismo, que desempenhou, como se sabe, um papel de primordial importância na evolução do pensamento filosófico da Itália e nos países anglo-saxões, só teve na França um único representante -de grande envergadura, é verdade-, Octave Hamelin" (1).
Reeditando seu relatório 30 anos depois, o mesmo Koyré acrescentava-lhe uma nota, descrevendo a dramática alteração do cenário intelectual francês e a proliferação de novas traduções e de interpretações da filosofia de Hegel: nada menos do que 14 traduções, que englobam o principal da obra, e mais de 20 livros de interpretação e análise, dentre os quais os trabalhos de Jean Hyppolite.
Mas, voltando a 1930, ao termo de seu relatório, destaca em especial o "belo livro" de Jean Wahl, sobre o "Malheur de la Conscience dans la Philosophie de Hegel", que parece acolher a tradição da dialética na França de maneira nova (embora na pista da redescoberta, por Dilthey, dos escritos de juventude). O mesmo Jean Wahl que já abrira espaço para o pluralismo inglês e norte-americano e, logo a seguir, daria acolhida ao existencialismo de Kierkegaard. É uma leitura "existencial" de Hegel que privilegia a "infelicidade da consciência" no veio, digamos, "antropoteológico" da dialética, e que conheceria, nos subsequentes 30 anos, uma rica posteridade no pensamento francês.
Renovação a que não está alheio o próprio A. Koyré, que se empenhava, em 1931, em "La Terminologie Hegelienne", em sublinhar como as dificuldades da leitura (e da tradução, do acolhimento em outra tradição filosófica) de Hegel derivam antes da riqueza e da concretude de seu tema do que da abstração ou da vacuidade de sua linguagem. Como se empenhava, em seus seminários na Escola Prática de Altos Estudos em Paris, em deslindar o universo da filosofia hegeliana da religião.

Senhor e Escravo
Quis o acaso que, por essa ocasião, Alexandre Koyré viesse a conhecer outro Alexandre (Kojève), russo e filósofo como ele, então preocupado com filosofia da física, a quem convidou para substituí-lo na direção dos seus seminários hegelianos: convite que assim acabou por dar, à obra de Kojève, uma direção completamente nova, numa ilustração eloquente do quanto a razão filosófica deve às suas circunstâncias "externas". De 1933 a 1939, Kojève consagrou seus seminários ao comentário da "Fenomenologia do Espírito", tendo como auditores, entre outros, R. Queneau, G. Bataille, J. Lacan, Merleau-Ponty e Jean Hyppolite.
Um comentário que, centrado na dialética do Senhor e do Escravo, reconhecia no texto de Hegel a prefiguração da dialética marxista, sem prejuízo de lá reconhecer também a analítica heideggeriana do "Dasein". Kojève dava assim nova atualidade à filosofia hegeliana, centrando-a mais na "Fenomenologia" do que na "Lógica", impregnando-a com o espírito do existencialismo e do marxismo. E, com isso, dava também um sistema de referência para boa parte da filosofia francesa que viria a exprimir-se durante e após a Segunda Guerra Mundial.
É sobre esse pano de fundo que se destaca a obra notável de Jean Hyppolite, como historiador e como filósofo. A começar pela tradução da "Fenomenologia" (tomo 1, 1939, tomo 2, 1941), sobre a qual precipitaram-se, diz a tradição, mesmo leitores alemães, na esperança de melhor compreender esse texto difícil ("será que em francês...?"). Mas, sobretudo, como comentador em "Gênese e Estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel", de 1946, a que o leitor brasileiro tem agora acesso graças à fina tradução de Sílvio Rosa Filho.
Pelo simples fato de sublinhar a importância da "Fenomenologia", o trabalho de Hyppolite situa-se na imediata continuidade dos seminários de Kojève. Mas seu trabalho situa-se, também, numa perspectiva nova e, digamos, mais complexa: nele, a atenção pela atualidade dos temas hegelianos (a retomada, por um Kojève que vivera a revolução bolchevique, da dialética da "Aufklärung" e seu desfecho no terror da Revolução Francesa) (2) não impede uma abordagem interna da obra de Hegel: não se trata de reencontrar na obra de Hegel figuras que obsedam o pensamento contemporâneo, mas de explicar sua gênese e sua estrutura.
Por que gênese e estrutura? O conectivo presente no título da tese de Hyppolite já indica o problema central que ela quer deslindar. Problema particularmente complicado, que tange à situação da "Fenomenologia" no contexto da obra, tanto do ponto de vista da sincronia como no da diacronia. O lugar, digamos, e o próprio conteúdo, da descrição da "experiência da consciência" ou das figuras do Espírito, variam ao longo da obra, antes como depois do texto escrito entre 1805 e1807, em ritmo alucinante.

Gênese e Estrutura da "Fenomenologia do Espírito" de Hegel
Jean Hyppolite Tradução: Silvio Rosa Filho Discurso Editorial (Tel. 0/xx/11/814-5383) 636 págs., R$ 38,00



É dessa tensão entre a gênese (até mesmo as circunstâncias externas da produção da "Fenomenologia") da obra e seu lugar "lógico", num itinerário que vai da adesão à filosofia do Absoluto de Schelling (contra o "subjetivismo" de Kant e de Fichte) a uma nova figura do próprio Absoluto (agora como "Sujeito"), que parte o livro de Hyppolite: da idéia da Fenomenologia como exploração da esfera do sujeito "natural" ou "comum", como condição indispensável à constituição da ciência da lógica, que dissolve finalmente as antinomias do entendimento ou da metafísica.
Tensão que se exprime na diferença de tom entre a "Introdução" e o "Prefácio" da "Fenomenologia" ou que exprime o problema da "introdução ao Saber": essa nova versão da aporia de Menão que havia sido formulada por Fichte de forma lapidar: "Toda compreensão pressupõe encontro, todo encontro pressupõe compreensão".
A "Fenomenologia" é, portanto, um retorno à perspectiva "epistemológica" (isto é, "fenomenológica", na linguagem de Hegel, que assim define a atitude crítica de Kant, a perspectiva do sujeito finito), mas que visa, no final das contas, a dar fim à finitude e acesso ao Saber Absoluto (3). Tudo se passa como se a "gênese" do pensamento hegeliano (seu itinerário intelectual, empírica e biograficamente compreendido), o vaivém entre Schelling e Kant/Fichte, se exprimisse na destinação da consciência humana ao Absoluto, isto é, na maneira pela qual a Substância ou o Ser chega a coincidir consigo mesmo por meio da reconciliação do sujeito humano finito com sua história.

O finito e o infinito
Entre o primeiro e o último capítulos do livro de Hyppolite, ou entre a "Introdução" e o "Prefácio" da "Fenomenologia", desenha-se a estrutura desse livro extraordinário (nas palavras de Habermas, o grande acontecimento da filosofia alemã). Nem será estranho que o deslinde da apresentação fenomenológica da dialética seja ele próprio dialético, que o contingente se mescle ao necessário, pois talvez essa passagem constante entre dimensões tão opostas -a "astúcia" da Razão- seja a essência da própria dialética. De maneira que o comentário de Hyppolite à "Fenomenologia" assume, ele próprio, um movimento muito semelhante àquele que anima seu objeto, tornando-o analiticamente, mas também mimeticamente, mais compreensível.
Mas essa obra de filologia ou de excelente história da filosofia não deixa de ser ela própria filosoficamente motivada. É claro que, na escolha do objeto de sua tese, Jean Hyppolite também toma sua posição propriamente filosófica, de algum modo herética na tradição francesa: de Descartes a Bergson, diz ele em outro lugar, a idéia de liberdade emerge apenas da reflexão do sujeito solitário; e propõe, assim, implicitamente, a tarefa de recolocar o mesmo problema, contra essa tradição, na forma da possível reconciliação do sujeito com sua história.
À filosofia contemporânea, definida pelas linhas divergentes da fenomenologia, do marxismo e do existencialismo, caberia retornar à inspiração hegeliana, que poderia fazê-las convergir na compreensão do século atual. A oscilação entre o finito e o infinito, entre a fenomenologia e a lógica, não aparece apenas, para Hyppolite, como um problema da leitura de Hegel. Nos escritos que consagra, posteriormente, ao marxismo, à psicanálise e à filosofia da existência, Jean Hyppolite prolonga, por iniciativa própria, a exploração da temática da distância que separa a lógica da existência, o ontológico do ôntico.
Numa palavra, com sua retomada da temática da dialética, Jean Hyppolite apontava para os dois pólos entre os quais oscilou boa parte da filosofia européia no rico período do imediato pós-guerra: o pólo ontoteológico e o pólo antropológico ou humanista. Textos desiguais como a despretensiosa conferência de Sartre sobre o existencialismo como humanismo (1946) e a solene "Carta Sobre o Humanismo" (também de 1946), que Heidegger endereçou a Jean Beaufret, que tenta desarmar essa oposição, fazendo do humanismo um novo avatar da ontoteologia, inscrevem-se dentro do quadro esboçado na tese de Jean Hyppolite, publicada no mesmo ano.
Enfim, dos anos 30 aos 60, tudo mudou na filosofia francesa, em boa parte graças ao acesso à "Fenomenologia do Espírito" e seu comentário por Hyppolite, numa virada, explicada por Koyré, na nota acrescentada 30 anos depois a seu "Relatório", pelo movimento pendular ou espiralado da história da filosofia e seus intermitentes "retornos a...".
O fato é que, em meados dos anos 60, essa atmosfera começou a dissipar-se: um jornalista italiano descrevia a vida intelectual parisiense em 1965 sob o seguinte título: "Una volta tutto era dialettica, ormai tutto è struttura". "Exit" dialética, existência, "être-pour-soi", temporalidade, finitude. Hegel deixava de ser um farol do pensamento francês, agora preocupado em denunciar a teleologia da Razão ou a certeza e verdade da consciência como as grandes ilusões a serem dissipadas pela crítica.
Digamos que a filosofia de Jean Hyppolite "saiu da moda". Acrescentemos que, de lá para cá, novas traduções foram feitas dos textos fundamentais de Hegel e modificadas algumas lições do autor que nos interessam (por exemplo, a escolha de traduzir "Knecht" por "escravo"), e outros comentários da "Fenomenologia" foram feitos de uma perspectiva um pouco diferente.
Sempre restará que a obra de Jean Hyppolite permanece como uma balisa que não podemos perder de vista no presente, para guiar-nos não apenas no oceano dos textos hegelianos, mas também na reflexão sobre nossa experiência contemporânea do mundo. Digamos que devemos lembrar essa obra, se quisermos reiterar, no presente, aquilo de que ela foi capaz no passado: unir, de um só golpe, filosofia, história da filosofia e crítica da vida atual.



Notas 1. Ver. "Rapport sur l'État des Études Hegeliennes en France", em A. Koyré, "Études d'Histoire de la Pensée Philosophique", Ed. Gallimard, 1971.
2. A respeito dos enriquecedores anacronismos da leitura kojèviana da "Fenomenologia", cf. o ensaio de Paulo Arantes "Um Hegel Errado, Mas Vivo", na revista "Ide", nº 21, 1991. Aliás, a coisa estava no ar no fim da década de 20: em 1928, Marcuse publicava a tese que escrevera sob a orientação de Heidegger sobre a ontologia hegeliana da temporalidade, já pensando numa reconstrução da concepção marxista da história.
3. "Epistemológica" é uma palavra que, embora necessária no contexto, não é muito precisa, pois o herói da epopéia narrada na "Fenomenologia" não é apenas o sujeito cognitivo, mas o sujeito humano em todas as suas formas, estéticas, éticas, políticas e religiosas.


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Bento Prado Jr. é professor de filosofia na Universidade Federal de São Carlos e autor, entre outros livros, de "Presença e Campo Transcendental - Consciência e Negatividade na Filosofia de Bergson" (Edusp).



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