São Paulo, Sábado, 11 de Dezembro de 1999


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A lógica da guilhotina



Robespierre sabia como ninguém mobilizar a opinião pública em seus discursos
MILTON MEIRA DO NASCIMENTO

Homens de ação, políticos profissionais, revolucionários, enfim, todos aqueles que se põem a tarefa de transformação das instituições da sociedade visando a melhorá-las, não escondem o fascínio diante dos "Discursos" de Robespierre. No prefácio a essa tradução brasileira, João Batista Natali, autor de uma tese de análise semiótica dos discursos de Robespierre, sob a orientação de Roland Barthes, revela-nos também seu entusiasmo e convida o leitor a ouvir um dos maiores oradores da Revolução Francesa, destacando-o como "um "inventor" do discurso político", "uma espécie de agente da metaforização, dentro do espaço de poder, da palavra latente da pátria e dos patriotas que ele acreditava materializar por meio da linguagem".
Robespierre sabia como ninguém a arte de mobilizar a opinião pública com uma lógica implacável, que passava necessariamente pelo recurso à autoridade da recente filosofia jusnaturalista, sobretudo de Rousseau, seu patrono, cujas idéias afloram a cada frase de seus discursos.
No entanto, a admiração pela lógica do "incorruptível", com frequência, não se sustenta diante do incômodo ou da decepção, ao se constatar que este mesmo homem pudesse ter sido o principal protagonista do terror revolucionário. Como isso foi possível?
Vários especialistas da tradição ilustrada da filosofia já disseram que os intelectuais e os homens de ação do século 18 francês desenvolveram uma atividade política e pedagógica muito vinculadas a uma visão teológica do mundo. Mesmo tendo dessacralizado a vida, continuaram a manter uma postura que tomava a filosofia como um conjunto de verdades prontas à espera de homens arrojados para realizá-las.
Robespierre enquadra-se bem nesse tipo de político acima descrito. Para ele, a tradição jusnaturalista, representada especialmente por Rousseau, já havia estabelecido os princípios fundamentais da liberdade, da igualdade, da propriedade, da soberania popular, da resistência à opressão, como direitos inalienáveis e fundamentais. Restava agora aos revolucionários colocá-los em prática.
Essa passagem da abstração da filosofia para a vida prática, que Hegel tão bem analisou na "Fenomenologia do Espírito", iria desembocar no terror revolucionário que levou tanta gente à guilhotina, sob o comando de Robespierre, e que também acabou por devorá-lo no mesmo movimento que ele havia desencadeado.
O que Rousseau havia estabelecido como o domínio do dever-ser, isto é, do ideal da política, Robespierre tentará realizar no momento da febre revolucionária. Rousseau defendia a soberania popular, a liberdade, a igualdade de condições, mas, ao mesmo tempo, reconhecia que não se pode simplesmente transpor o ideal da liberdade, da igualdade e da soberania popular para o plano empírico da vida política.
A política é feita levando-se em consideração, principalmente, a realidade concreta de cada povo, seus costumes, suas tradições, sua maneira de ser. De tal modo que a boa constituição, segundo ele, não é aquela que é boa em si mesma, mas a que melhor se adapta às condições concretas de cada povo em particular.

Discursos e Relatórios na Convenção
Maximilien de Robespierre Tradução: Maria Helena Franco Martins Eduerj /Contraponto (Tel. 0/xx/21/259-4957) 204 págs., R$ 26,00



No discurso de 3 de dezembro de 1792, "Sobre o Julgamento de Luís 16", a lógica de Robespierre consiste em apontar o rei deposto como o inimigo principal do povo francês, argumentando que é absurdo julgar um inimigo que já está por princípio condenado. Suas frases são muito precisas e não há nenhuma dúvida de que foram retiradas de suas leituras de uma certa tradição jusnaturalista que considerava que o monarca estava ligado ao povo por um contrato social.
Diz ele: "Quando uma nação foi forçada a recorrer ao direito de insurreição, volta ao estado natural com relação ao tirano. Como poderia este invocar o pacto social? Ele aniquilou-o".
Embora Rousseau não afirmasse que o rei estava vinculado ao povo por um contrato, admitia que, no estado de insurreição provocado pela usurpação do poder soberano do povo pelo monarca, a volta ao estado de natureza implicava num último recurso que o indivíduo ainda tinha de poder defender-se contra os ataques do inimigo, sob pena de perecer. Nessa condição de vida ou de morte, valia apenas o recurso ao direito natural de sobrevivência individual. Matar o tirano, neste caso, se fosse possível, seria um ato de legítima defesa.
Fica muito difícil, portanto, diante dessa argumentação, aceitar que Luís 16 ainda possa ser julgado, porque numa guerra não cabe julgar o inimigo: se este for absolvido, o que será de quem o condenou? Numa república nascente, não resta nenhuma outra opção a não ser eliminar o monarca, porque se este for absolvido, será o fim da república, e todos os seus adeptos terão imediatamente que se curvar diante da antigo regime restaurado.
Robespierre raciocina bem ao estilo dos jusnaturalistas que tomavam o estado de natureza como a condição dos homens sem nenhuma autoridade comum, entregues apenas à sua força individual e a seu julgamento parcial.
A estratégia de apresentar Luís 16 como inimigo do povo francês explicita-se melhor num outro discurso, de 25 de dezembro de 1793, "Sobre os Princípios do Governo Revolucionário". Ao contrapor o governo revolucionário ao governo constitucional, Robespierre em nenhum instante perde a lucidez dos princípios que devem nortear sua ação política. Para ele, "a Revolução é a guerra da liberdade contra seus inimigos: a Constituição é o regime da liberdade vitoriosa e pacífica". Todas as atividades do governo revolucionário são extraordinárias, móveis, porque o objetivo principal é fundar a república, ao passo que as do governo constitucional são estáveis porque o que está em jogo é conservá-la.
O orador também tem consciência de que é preciso desenvolver uma teoria do governo revolucionário, teoria essa que é "tão nova quanto a Revolução que o introduziu" e que, portanto, não se encontra em nenhum texto dos autores que não previram nem viveram essa experiência nova. Cabe perguntar, também, o que é a justiça durante a Revolução. "Os povos não julgam como as cortes judiciárias; não pronunciam sentenças, fulminam; não condenam os reis, mergulham-no de novo no nada". "O direito de punir o tirano é a insurreição; seu julgamento é a queda de seu poder; sua pena, a exigida pela liberdade do povo." Não há, pois, salvação possível para Luís 16, principalmente porque "o governo revolucionário deve aos bons cidadãos toda a proteção nacional; aos inimigos do povo não deve outra coisa senão a morte".
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Milton Meira do Nascimento é professor de filosofia política na USP e autor de "Opinião Pública e Revolução" (Edusp/Nova Stela).



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