São Paulo, Sábado, 11 de Dezembro de 1999


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O Renascimento de Goethe

MARCO AURÉLIO WERLE

Realizada em 1786-88 e publicada por Goethe na forma de um relato autobiográfico quase 30 anos depois, em 1816-17, a partir de seu diário e de suas cartas, "Viagem à Itália" tem como tema central o encontro com a Antiguidade.
A epígrafe do livro é a retomada de uma expressão que remonta ao pintor Guercino e se tornou famosa a partir de um quadro de Nicolas Poussin, pintado por volta de 1626-28, em que se apresenta a imagem de pastores procurando decifrar o sentido misterioso de uma inscrição sobre um sarcófago antigo: "Et in Arcadia ego" ("Também eu na Arcádia"). Segundo Erwin Panofsky, o "eu" em Poussin significa "a morte", que igualmente se faria presente neste mundo pastoril da Arcádia. Na época de Goethe a expressão já havia perdido seu primeiro significado, de modo que o "eu" de Goethe remete, ao contrário, a uma vivência pessoal.
A idéia de viajar à Itália para adquirir conhecimento e se educar entrou em voga na Alemanha, na Inglaterra e na França no início do século 17. Foi assim ainda que o pai de Goethe, Johann Caspar Goethe, viajou à Itália em 1740, despertando no filho o desejo de fazer o mesmo. Decisiva foi ainda a estada em Roma para Winckelmann, que pôde confirmar a sua concepção da "nobre simplicidade e calma grandeza" do mundo grego mediante a observação direta de obras de arte da Antiguidade.
O período romano foi, segundo suas palavras, o mais feliz de sua vida, motivo pelo qual em 1768, em sua viagem de volta à Alemanha, sentiu um aperto no coração ao se aproximar dos Alpes. Apenas a contragosto seguiu adiante, mas não alcançou mais sua pátria, pois foi assassinado tragicamente em Trieste por um assaltante. Em Leipzig, esperavam-no o jovem Goethe, ansioso por conhecê-lo, e seu antigo mestre Oeser, que agora ensinava a Goethe.
A experiência de viagem de Goethe apresenta um amplo leque de interesses. Os objetos de sua atenção vão desde a arquitetura, a escultura, a pintura, a paisagem, os hábitos do povo e a história até a botânica, a geologia e a mineralogia. Em Vicenza, admira o arquiteto Palladio e sua edificação denominada "Rotonda", e considera que "a arquitetura talvez jamais tenha produzido luxo maior". Em Pádua, adquire a obra teórica deste arquiteto, que passa a ser uma referência constante para a reflexão sobre a arquitetura moderna e as ruínas da Antiguidade, a ponto de Goethe considerar que foi Palladio quem lhe abriu o "caminho para toda a arte e toda a vida". Em Veneza, chama-lhe a atenção que a elevada claridade dos quadros de Veronese e Ticiano possuem um equivalente no brilho do sol veneziano que destaca de maneira ofuscante as cores locais.
Em todos os lugares por onde passa recolhe exemplares de rochas, observa as plantas e o relevo, registrados por meio de desenhos próprios ou por Kniep, desenhista contratado para acompanhá-lo ao sul da Itália. Em Nápoles, acredita estar próximo de descobrir a solução do problema da planta original que estaria na base da constituição de todo o reino vegetal. As considerações mineralógicas, por sua vez, atingem um ponto alto quando sobe arriscadamente o Vesúvio e fica impressionado com o "espetáculo grandioso, capaz de elevar o espírito".
O contraste entre a Itália moderna, que por vezes descuida de seu patrimônio cultural, e a Roma dos tempos de glória é analisado criticamente. Em Palermo denuncia o mau gosto do príncipe da Palagônia, que construiu um castelo que prima pelo disforme e pela ausência de imaginação.
Estas vivências se definem para Goethe como uma etapa de sua formação, como a concretização de um anseio que já vinha sentindo no estreito mundo nórdico no qual vivia. Por isso, durante todo o seu relato, a despeito do entusiasmo e da alegria com que se dedica ao que o cerca, em momento algum ocorre uma descoberta inteiramente nova. Tudo se lhe mostra como algo que de algum modo já lhe era conhecido e familiar.

Viagem à Itália
J. W. Goethe Tradução: Sérgio Tellaroli Companhia das Letras (Tel. 0/xx/11/866-0801) 438 págs., R$ 42,00



Ainda no começo da viagem, em Trento, afirma: "Desfruto disso tudo como se tivesse nascido e sido criado aqui". E ao partir de Veneza, em direção a Roma: "A minha impressão não é de fato a de que estou vendo as coisas pela primeira vez, mas sinto-me como se as estivesse revendo". Em Roma: "Nenhum pensamento inteiramente novo me ocorreu, mas os velhos tornaram-se tão definidos, tão vivos, tão coerentes, que poderiam passar por novos".
A Itália é, pois, uma confirmação concreta daquilo que apenas conhecia em livros ou, no caso da escultura antiga, por meio de cópias de gesso. Por outro lado, a viagem fornece uma elasticidade inteiramente nova, treina o olhar, apresenta surpresas e aventuras, propicia menos a reflexão sobre o que se vê do que o contato vivo com os objetos e a terra estranha, fazendo com que o próprio sujeito também se modifique a si nesta perspectiva e, assim, dificulta a avaliação de si mesmo.
O poeta parece tê-lo sentido em Roma: "Embora eu siga sendo sempre a mesma pessoa, creio ter mudado até os ossos". Diferentemente de Winckelmann, que buscava nesse solo clássico um ideal de formação do gênero humano, Goethe imprime ao seu relato o sentido de uma autoformação, e com isso deparamos mais uma vez com um aspecto bastante peculiar de seu trajeto poético, que é o de fazer de sua vida uma obra e de sua obra uma vida.
O lugar de "Viagem à Itália" na obra de Goethe pode ser ilustrado pela peça dramática "Ifigênia em Táuride", na qual Goethe trabalha ao longo de sua viagem, concluindo-a em Roma. Os amigos mais próximos da Itália, como Tischbein e P. Hackert, bem como os da Alemanha, para os quais envia o manuscrito para publicação, esperam do autor do "Werther" algo mais impetuoso e incisivo e não apreciam muito a figura calma e serena da personagem central Ifigênia, cuja plasticidade lembra uma escultura grega.
Ou seja, tem-se ainda em vista o jovem Goethe e não se percebe que a "Ifigênia" significa um novo estágio de sua poesia, cujo traço característico é o equilíbrio das formas e o abandono de exageros sentimentais. A "Viagem à Itália" constitui o terreno desta passagem do jovem Goethe para o período do classicismo de Weimar, quando também é inaugurada sua amizade com Schiller.
Por fim, gostaria de elogiar a tradução fluente e límpida de Sérgio Tellaroli e o cuidadoso trabalho de edição, que traz reproduções de desenhos e quadros de Goethe, de Hackert, de Tischbein e de Canalleto.


Marco Aurélio Werle é professor de filosofia na Universidade Estadual Paulista (Unesp).


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