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O Renascimento de Goethe
MARCO AURÉLIO WERLE
Realizada em 1786-88 e publicada por Goethe na forma de um
relato autobiográfico quase 30 anos depois, em 1816-17, a partir
de seu diário e de suas cartas, "Viagem à Itália" tem como tema
central o encontro com a Antiguidade.
A epígrafe do livro é a retomada de uma expressão que remonta ao pintor Guercino e se tornou famosa a partir de um quadro
de Nicolas Poussin, pintado por volta de 1626-28, em que se
apresenta a imagem de pastores procurando decifrar o sentido
misterioso de uma inscrição sobre um sarcófago antigo: "Et in
Arcadia ego" ("Também eu na Arcádia"). Segundo Erwin Panofsky, o "eu" em Poussin significa "a morte", que igualmente se
faria presente neste mundo pastoril da Arcádia. Na época de
Goethe a expressão já havia perdido seu primeiro significado, de
modo que o "eu" de Goethe remete, ao contrário, a uma vivência
pessoal.
A idéia de viajar à Itália para adquirir conhecimento e se educar entrou em voga na Alemanha, na Inglaterra e na França no
início do século 17. Foi assim ainda que o pai de Goethe, Johann
Caspar Goethe, viajou à Itália em 1740, despertando no filho o
desejo de fazer o mesmo. Decisiva foi ainda a estada em Roma
para Winckelmann, que pôde confirmar a sua concepção da
"nobre simplicidade e calma grandeza" do mundo grego mediante a observação direta de obras de arte da Antiguidade.
O período romano foi, segundo suas palavras, o mais feliz de
sua vida, motivo pelo qual em 1768, em sua viagem de volta à
Alemanha, sentiu um aperto no coração ao se aproximar dos Alpes. Apenas a contragosto seguiu adiante, mas não alcançou
mais sua pátria, pois foi assassinado tragicamente em Trieste por
um assaltante. Em Leipzig, esperavam-no o jovem Goethe, ansioso por conhecê-lo, e seu antigo mestre Oeser, que agora ensinava a Goethe.
A experiência de viagem de Goethe apresenta um amplo leque
de interesses. Os objetos de sua atenção vão desde a arquitetura,
a escultura, a pintura, a paisagem, os hábitos do povo e a história
até a botânica, a geologia e a mineralogia. Em Vicenza, admira o
arquiteto Palladio e sua edificação denominada "Rotonda", e
considera que "a arquitetura talvez jamais tenha produzido luxo
maior". Em Pádua, adquire a obra teórica deste arquiteto, que
passa a ser uma referência constante para a reflexão sobre a arquitetura moderna e as ruínas da Antiguidade, a ponto de Goethe considerar que foi Palladio quem lhe abriu o "caminho para
toda a arte e toda a vida". Em Veneza, chama-lhe a atenção que a
elevada claridade dos quadros de Veronese e Ticiano possuem
um equivalente no brilho do sol veneziano que destaca de maneira ofuscante as cores locais.
Em todos os lugares por onde passa recolhe exemplares de rochas, observa as plantas e o relevo, registrados por meio de desenhos próprios ou por Kniep, desenhista contratado para acompanhá-lo ao sul da Itália. Em Nápoles, acredita estar próximo de
descobrir a solução do problema da planta original que estaria
na base da constituição de todo o reino vegetal. As considerações
mineralógicas, por sua vez, atingem um ponto alto quando sobe
arriscadamente o Vesúvio e fica impressionado com o "espetáculo grandioso, capaz de elevar o espírito".
O contraste entre a Itália moderna, que por vezes descuida de
seu patrimônio cultural, e a Roma dos tempos de glória é analisado criticamente. Em Palermo denuncia o mau gosto do príncipe da Palagônia, que construiu um castelo que prima pelo disforme e pela ausência de imaginação.
Estas vivências se definem para Goethe como uma etapa de sua
formação, como a concretização de um anseio que já vinha sentindo no estreito mundo nórdico no qual vivia. Por isso, durante
todo o seu relato, a despeito do entusiasmo e da alegria com que
se dedica ao que o cerca, em momento algum ocorre uma descoberta inteiramente nova. Tudo se lhe mostra como algo que de
algum modo já lhe era conhecido e familiar.
Viagem à Itália
J. W. Goethe
Tradução: Sérgio Tellaroli
Companhia das Letras (Tel. 0/xx/11/866-0801)
438 págs., R$ 42,00
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Ainda no começo da viagem, em Trento, afirma: "Desfruto disso tudo como se tivesse nascido e sido criado aqui". E ao partir
de Veneza, em direção a Roma: "A minha impressão não é de fato a de que estou vendo as coisas pela primeira vez, mas sinto-me
como se as estivesse revendo". Em Roma: "Nenhum pensamento inteiramente novo me ocorreu, mas os velhos tornaram-se tão
definidos, tão vivos, tão coerentes, que poderiam passar por novos".
A Itália é, pois, uma confirmação concreta daquilo que apenas
conhecia em livros ou, no caso da escultura antiga, por meio de
cópias de gesso. Por outro lado, a viagem fornece uma elasticidade inteiramente nova, treina o olhar, apresenta surpresas e aventuras, propicia menos a reflexão sobre o que se vê do que o contato vivo com os objetos e a terra estranha, fazendo com que o
próprio sujeito também se modifique a si nesta perspectiva e, assim, dificulta a avaliação de si mesmo.
O poeta parece tê-lo sentido em Roma: "Embora eu siga sendo
sempre a mesma pessoa, creio ter mudado até os ossos". Diferentemente de Winckelmann, que buscava nesse solo clássico
um ideal de formação do gênero humano, Goethe imprime ao
seu relato o sentido de uma autoformação, e com isso deparamos mais uma vez com um aspecto bastante peculiar de seu trajeto poético, que é o de fazer de sua vida uma obra e de sua obra
uma vida.
O lugar de "Viagem à Itália" na obra de Goethe pode ser ilustrado pela peça dramática "Ifigênia em Táuride", na qual Goethe
trabalha ao longo de sua viagem, concluindo-a em Roma. Os
amigos mais próximos da Itália, como Tischbein e P. Hackert,
bem como os da Alemanha, para os quais envia o manuscrito
para publicação, esperam do autor do "Werther" algo mais impetuoso e incisivo e não apreciam muito a figura calma e serena
da personagem central Ifigênia, cuja plasticidade lembra uma
escultura grega.
Ou seja, tem-se ainda em vista o jovem Goethe e não se percebe
que a "Ifigênia" significa um novo estágio de sua poesia, cujo traço característico é o equilíbrio das formas e o abandono de exageros sentimentais. A "Viagem à Itália" constitui o terreno desta
passagem do jovem Goethe para o período do classicismo de
Weimar, quando também é inaugurada sua amizade com Schiller.
Por fim, gostaria de elogiar a tradução fluente e límpida de Sérgio Tellaroli e o cuidadoso trabalho de edição, que traz reproduções de desenhos e quadros de Goethe, de Hackert, de Tischbein
e de Canalleto.
Marco Aurélio Werle é professor de filosofia na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
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