São Paulo, Sábado, 11 de Dezembro de 1999


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Elogio do ócio

LEANDRO KONDER

Paul Lafargue nasceu em Cuba, filho de um francês e de uma judia, neto de uma mulata. Estudou medicina na França e se tornou um apaixonado militante socialista. Em 1868, casou-se com Laura, a filha caçula de Marx.
Seu texto mais conhecido é, provavelmente, "O Direito à Preguiça", publicado em Paris, em 1880; um panfleto que Kautsky considerou "uma sátira política magistral", Charles Rappoport chamou de "obra-prima de crítica ao regime capitalista" e Jean-Marie Brohm exaltou como um "clássico da literatura francesa".
Na época, os trabalhadores nas oficinas parisienses ainda trabalhavam em média 12 ou 13 horas por dia e, às vezes, as jornadas de trabalho se estendiam a 15, 16 e até 17 horas. A essa situação monstruosa ainda se acrescentava a circunstância de muitos operários estarem convencidos de que o trabalho em si mesmo era uma atividade dignificante e benéfica.

Santificação do trabalho
Lafargue insurgiu-se contra essa convicção, denunciando a "santificação" do trabalho promovida por escritores, economistas e moralistas. O trabalho, dentro de limites impostos pela necessidade humana do ócio e do lazer, é uma atividade imprescindível à autoconstrução da humanidade. Desde que passa a nos ser imposto em excesso, torna-se uma desgraça.
Embora se situasse numa perspectiva cruamente materialista, nos antípodas da religião, Lafargue protestava contra a eliminação de muitos feriados religiosos medievais, que dispensavam os homens da labuta. Com um robusto senso de humor, argumentava: Jeová, o Deus do Antigo Testamento, trabalhou seis dias na criação do mundo e depois se permitiu descansar na Eternidade; no entanto, quando os pobres tratam de imitar Jeová, a polícia os rotula como vagabundos e os põe na cadeia.
"O Direito à Preguiça" é implacável na crítica de filósofos como Augusto Comte e escritores como Victor Hugo, acusados de entoar "cantos nauseabundos em honra do deus Progresso, o filho mais velho do Trabalho".
Se o título do famoso panfleto fosse "O Direito ao Lazer" ou "O Direito ao Ócio", ele provavelmente corresponderia melhor ao conteúdo da obra. O autor, contudo, queria provocar discussão, chamar a atenção para o problema criado pela ideologia da exaltação do trabalho; nesse sentido, o título adotado tem sido reconhecido como jornalisticamente genial.
A redução da jornada de trabalho, nas condições presentes, terá eliminado o interesse e a atualidade do tema? Marilena Chaui, em sua magnífica introdução à nova edição brasileira, demonstra que a obra não perdeu seu vigor.
As malogradas experiências socialistas realizadas no século 20 adotaram em relação ao trabalho uma política econômica resolutamente "produtivista", que lembra as "nauseabundas" posições de Comte e Victor Hugo cantando o "progresso"...
Mas o pior mesmo é o que se constata no quadro contemporâneo, na euforia "neoliberal", na onda mundial de exaltação do mercado, na exortação à "competitividade", na busca sem limites do aumento da produção (concebido como aumento de trabalho).
Lafargue, 120 anos atrás, já alertava os trabalhadores para o fato de que a jornada de trabalho poderia ser substancialmente reduzida (segundo ele, poderia ser de apenas três horas), caso os avanços tecnológicos fossem usados em benefício dos que trabalham e não em proveito dos que lucram (e perseguem o aumento da produção de mercadorias, resistindo sempre à redução da jornada de trabalho, retardando-a tanto quanto podem).

O Direito à Preguiça
Paul Lafargue Tradução: Teixeira Coelho Introdução: Marilena Chaui Hucitec/Editora da Unesp (Tel.0/xx/11/232-7171) 132 págs., R$15,00



Mais ainda: em seu brilhante panfleto, Lafargue assegura que os trabalhadores não conseguirão convencer os patrões a investirem em inovações tecnológicas se trabalharem muito. Diz-lhes: "É porque vocês trabalham muito que as máquinas industriais se desenvolvem lentamente". E opina no sentido de que eles só obterão mudanças rápidas no aperfeiçoamento das máquinas se, ao contrário, não trabalharem muito.
Talvez com isso Paul Lafargue tenha antecipado uma idéia que venha a se tornar um dos pontos fortes da reanimação da luta dos socialistas nesta virada do milênio: o capitalismo vem se mostrando incapaz de reduzir significativamente a jornada de trabalho e vem sabotando qualquer possibilidade de um ócio fecundo e de um lazer humanamente enriquecedor para as pessoas, em geral.
Insistindo em manter uma jornada de trabalho desnecessariamente prolongada, o capitalismo agrava o problema do desemprego. Se reduzisse a jornada de trabalho a pelo menos quatro horas (em vez das oito horas atuais), duplicaria o número dos empregos. Mas recusa-se a esse aproveitamento dos avanços tecnológicos que beneficiaria os trabalhadores, porque só quer tecnologia avançada para aumentar seus lucros.
O autor do "O Direito à Preguiça" nos relembra, oportunamente, que o socialismo precisa honrar o compromisso de realizar essa conquista, que está fora do alcance das sociedades baseadas no modo de produção capitalista.


Leandro Konder é professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) e autor de "Walter Benjamin" (Civilização Brasileira), entre outros.


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