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Elogio do ócio
LEANDRO KONDER
Paul Lafargue nasceu em Cuba, filho de um francês e de
uma judia, neto de uma mulata. Estudou medicina na
França e se tornou um apaixonado militante socialista.
Em 1868, casou-se com Laura, a filha caçula de Marx.
Seu texto mais conhecido é, provavelmente, "O Direito
à Preguiça", publicado em Paris, em 1880; um panfleto
que Kautsky considerou "uma sátira política magistral",
Charles Rappoport chamou de "obra-prima de crítica ao
regime capitalista" e Jean-Marie Brohm exaltou como
um "clássico da literatura francesa".
Na época, os trabalhadores nas oficinas parisienses ainda trabalhavam em média 12 ou 13 horas por dia e, às vezes, as jornadas de trabalho se estendiam a 15, 16 e até 17
horas. A essa situação monstruosa ainda se acrescentava
a circunstância de muitos operários estarem convencidos de que o trabalho em si mesmo era uma atividade
dignificante e benéfica.
Santificação do trabalho
Lafargue insurgiu-se contra essa convicção, denunciando a "santificação" do trabalho promovida por escritores, economistas e moralistas. O trabalho, dentro de limites impostos pela necessidade humana do ócio e do lazer, é uma atividade imprescindível à autoconstrução da
humanidade. Desde que passa a nos ser imposto em excesso, torna-se uma desgraça.
Embora se situasse numa perspectiva cruamente materialista, nos antípodas da religião, Lafargue protestava
contra a eliminação de muitos feriados religiosos medievais, que dispensavam os homens da labuta. Com um robusto senso de humor, argumentava: Jeová, o Deus do
Antigo Testamento, trabalhou seis dias na criação do
mundo e depois se permitiu descansar na Eternidade; no
entanto, quando os pobres tratam de imitar Jeová, a polícia os rotula como vagabundos e os põe na cadeia.
"O Direito à Preguiça" é implacável na crítica de filósofos como Augusto Comte e escritores como Victor Hugo,
acusados de entoar "cantos nauseabundos em honra do
deus Progresso, o filho mais velho do Trabalho".
Se o título do famoso panfleto fosse "O Direito ao Lazer" ou "O Direito ao Ócio", ele provavelmente corresponderia melhor ao conteúdo da obra. O autor, contudo,
queria provocar discussão, chamar a atenção para o problema criado pela ideologia da exaltação do trabalho;
nesse sentido, o título adotado tem sido reconhecido como jornalisticamente genial.
A redução da jornada de trabalho, nas condições presentes, terá eliminado o interesse e a atualidade do tema?
Marilena Chaui, em sua magnífica introdução à nova
edição brasileira, demonstra que a obra não perdeu seu
vigor.
As malogradas experiências socialistas realizadas no
século 20 adotaram em relação ao trabalho uma política
econômica resolutamente "produtivista", que lembra as
"nauseabundas" posições de Comte e Victor Hugo cantando o "progresso"...
Mas o pior mesmo é o que se constata no quadro contemporâneo, na euforia "neoliberal", na onda mundial
de exaltação do mercado, na exortação à "competitividade", na busca sem limites do aumento da produção (concebido como aumento de trabalho).
Lafargue, 120 anos atrás, já alertava os trabalhadores
para o fato de que a jornada de trabalho poderia ser substancialmente reduzida (segundo ele, poderia ser de apenas três horas), caso os avanços tecnológicos fossem usados em benefício dos que trabalham e não em proveito
dos que lucram (e perseguem o aumento da produção de
mercadorias, resistindo sempre à redução da jornada de
trabalho, retardando-a tanto quanto podem).
O Direito à Preguiça
Paul Lafargue
Tradução: Teixeira Coelho
Introdução: Marilena Chaui
Hucitec/Editora da Unesp (Tel.0/xx/11/232-7171)
132 págs., R$15,00
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Mais ainda: em seu brilhante panfleto, Lafargue assegura que os trabalhadores não conseguirão convencer os
patrões a investirem em inovações tecnológicas se trabalharem muito. Diz-lhes: "É porque vocês trabalham muito que as máquinas industriais se desenvolvem lentamente". E opina no sentido de que eles só obterão mudanças rápidas no aperfeiçoamento das máquinas se, ao
contrário, não trabalharem muito.
Talvez com isso Paul Lafargue tenha antecipado uma
idéia que venha a se tornar um dos pontos fortes da reanimação da luta dos socialistas nesta virada do milênio: o
capitalismo vem se mostrando incapaz de reduzir significativamente a jornada de trabalho e vem sabotando
qualquer possibilidade de um ócio fecundo e de um lazer
humanamente enriquecedor para as pessoas, em geral.
Insistindo em manter uma jornada de trabalho desnecessariamente prolongada, o capitalismo agrava o problema do desemprego. Se reduzisse a jornada de trabalho
a pelo menos quatro horas (em vez das oito horas atuais),
duplicaria o número dos empregos. Mas recusa-se a esse
aproveitamento dos avanços tecnológicos que beneficiaria os trabalhadores, porque só quer tecnologia avançada
para aumentar seus lucros.
O autor do "O Direito à Preguiça" nos relembra, oportunamente, que o socialismo precisa honrar o compromisso de realizar essa conquista, que está fora do alcance
das sociedades baseadas no modo de produção capitalista.
Leandro Konder é professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) e autor de
"Walter Benjamin" (Civilização Brasileira), entre outros.
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