São Paulo, Sábado, 11 de Dezembro de 1999


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Defesa do filme mudo



Ensaios fazem elogio do cinema expressionista
LÚCIA NAGIB

"As Sombras Móveis" tem como eixo um tema que se acreditava sepultado: a defesa do cinema silencioso. A existência de motivos para se reanimar uma discussão que esteve em voga há mais de 60 anos é a tese que o livro se propõe provar.
Esses motivos, segundo o autor, teriam dupla natureza. Em primeiro lugar, o filme silencioso permaneceria atual graças a seu caráter puramente visual. Luiz Nazário explica-se em "Nota do Autor": "Atualidade porque o filme silencioso, mais do que uma fase do cinema, delimitada por sua história, constitui a própria linguagem cinematográfica, enquanto expressão artística autônoma, não apenas sobrevivendo ao fim do mudo, como também o antecedendo (sic)" (pág. 11).
Já pelo caráter confuso da justificativa, o leitor começa a desconfiar de um certo panfletarismo e de imprecisões teóricas. Falar de "linguagem cinematográfica" ou de "expressão artística autônoma" sem maiores explicações, no atual nível de desenvolvimento dos estudos de cinema, parece mais coerente com a rapidez impressionista da crítica de imprensa do que com a pesquisa acadêmica a que vem se dedicando o autor.
A segunda justificativa, bem mais convincente, se constitui no ponto forte do volume. Trata-se da necessidade de uma reavaliação histórica do cinema silencioso com base nas recentes descobertas e restaurações de filmes e nas novas técnicas de copiagem. Não há dúvida de que o trabalho arqueológico das cinematecas do mundo acrescentou ao filme silencioso dimensões que escapavam a seus primeiros historiadores; ao mesmo tempo, a reprodução em vídeo -LD (Laser Disk) e DVD (Digital Video Disk)- começa a devolver o silencioso à apreciação popular. É neste campo da pesquisa que se revela a real competência de Nazário, que estudou um sem número de filmes raros em cinematecas do mundo.
De modo geral, os ensaios compõem um manual útil para o estudante que deseja ter um panorama rápido dos primeiros tempos do cinema. O leitor especializado, no entanto, precisará fazer uma garimpagem das novidades em meio a páginas e páginas de lugares-comuns. O primeiro capítulo, por exemplo, faz um apanhado vertiginoso das primeiras experiências cinematográficas, passando por Méliès, Griffith, Stroheim e Vigo, sem quase acrescentar informações às já conhecidas.

O pastelão
A particular visão de Nazário começa a se configurar no segundo capítulo, "A Essência da "Slapstick Comedy'", no qual analisa o pastelão e a comédia em geral. Mesmo tropeçando em frases gratuitas, como "Chaplin não inovou a linguagem do cinema, mas seus filmes têm uma qualidade cinematográfica indefinível", não há como não se deixar envolver pelo raciocínio do autor quanto àquilo que chama de "essência da "slapstick comedy'": demolição e catástrofe.
Em análises perspicazes de filmes de Chaplin e Keaton, Nazário identifica uma característica comum ao cômico e ao sádico: a estrutura psíquica totalitária. "Os cômicos parecem inocentes porquanto sobrevivem às catástrofes que desencadeiam, gozam da destruição de que participam e tiram da hecatombe lições de segurança. Os agentes da comédia maluca são, neste sentido, subversivos aparentes." Tese ainda mais ousada é a de que o "tipo cômico é um homossexual não assumido" (pág. 71), conclusão apoiada em abundantes exemplos de comediantes travestidos.
Infelizmente, porém, as conclusões de teses tão interessantes são preteridas em favor de um mergulho nas comédias sonoras dos anos 40, que se completa com um salto ainda mais incoerente para o cinema falado de Jacques Tati. Seria apenas um erro de recorte ou realmente o autor acredita que neste o advento do som não teria obstruído o desenvolvimento estético, como teria ocorrido, em sua opinião, com o restante da produção cinematográfica?

Ataque ao realismo
Mas a parte mais controversa do livro se encontra no terceiro capítulo, "Contra o Cinema Conceitual". De início, não parece mais do que um conjunto de divagações aleatórias, às quais não faltam frases de efeito, como "a má história bem narrada é preferível à boa história mal narrada" (pág. 95) ou "o sonoro, a profundidade de campo e o colorido foram criando um cinema inexpressivo" (pág. 98). A certa altura, revela-se o objeto dos ataques do autor: o realismo. Mas qual realismo? Há ressonâncias de um Bazin não nomeado, na crítica ao plano-sequência ou à já mencionada "profundidade de campo", dois bastiões do crítico francês.
Mas afinal o alvo se concentra em Eisenstein e seu "cinema conceitual". Eisenstein é acusado de tentar criar um "realismo proletário", ao procurar transpor idéias marxistas para o cinema: "é da essência da filosofia exprimir-se em conceitos; é da essência do cinema exprimir-se em imagens", diz o autor na pág. 117. Aqui, a arbitrariedade e o desconhecimento da "pobre teoria" (pág. 118) de Eisenstein se unem à mais primária defesa do cinema puro. Negar a interface do cinema com a literatura, a música, a pintura, o teatro e, por que não, a filosofia é negar o cinema como um todo. Aliás, o cinema expressionista alemão, o preferido de Nazário, não teria existido sem as artes plásticas e o teatro, nos quais, muito antes do cinema, o expressionismo se definiu enquanto filosofia.

As Sombras Móveis - Atualidade do Cinema Mudo
Luiz Nazário Ed. da UFMG (Tel. 0/xx/31/499-4650) 336 págs., R$ 25,00



Mas eis que então chegamos à melhor parte do livro, "A Revolta Expressionista". Graças a uma longa pesquisa em arquivos alemães, Nazário conseguiu fazer uma reconstituição precisa das origens do cinema alemão, estabelecendo relações entre a Primeira Guerra e os filmes de educação sexual, descrevendo a influência do diretor de teatro Max Reinhardt no cinema, reconstituindo a gênese da produtora UFA (Universum Film Aktien Gesellschaft). As paráfrases acuradas de filmes, muitos ainda desconhecidos, vêm acrescentar informações preciosas aos dois clássicos da história do cinema alemão: "De Caligari a Hitler", de Siegfried Kracauer, e "A Tela Demoníaca", de Lotte Eisner.

Defesa do expressionismo
O texto se encerra com uma defesa apaixonada da pré-estilização expressionista e de seu caráter revolucionário, implicando um novo ataque ao cinema realista, desta vez aos "filmes de rua" que sucederam o expressionismo. Para Nazário, ao contrário do entendimento reinante, esses filmes, influenciados pela "neue Sachlichkeit" ("nova objetividade"), trariam em seu bojo afinidades com o pensamento nacional-socialista. Permanecendo discutível, pelo menos aqui Nazário oferece argumentos sólidos, baseados num real conhecimento da matéria.
O capítulo seguinte, sobre Fritz Lang, se deixa fascinar pelas descobertas, já nem tão recentes, das ligações do grande cineasta com o nazismo. Destruir o mito de Lang parece ser, de fato, a moda atual, levada ao extremo pelo americano Patrick McGilligan (não citado por Nazário), que acusa Lang não apenas de nazista, mas também de ter assassinado sua primeira mulher. O resultado, em "As Sombras Móveis", é que toda a obra de Lang acaba se reduzindo às suas prováveis inclinações nazistas, quando a própria história do cinema já provou que os filmes foram muito maiores do que as supostas opções políticas do diretor.
Trata-se, enfim, de um livro vigoroso, mas de organização precária, que depende de um leitor paciente que dele saiba extrair as boas idéias.


Lúcia Nagib é professora de cinema na Universidade Estadual de Campinas e na Pontifícia Universidade Católica (SP) e autora, entre outros, de "Werner Herzog -O Cinema Como Realidade" (Estação Liberdade).



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