|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RÉPLICA
Entre parênteses
BORIS KOSSOY
Declarou o prof. José de Souza Martins, em sua resenha de meu livro "Realidades e Ficções na Trama Fotográfica" (Jornal de Resenhas, de 13/11/99), que tenho
um débito teórico "explícito" com a sociologia fenomenológica, "em especial com Alfred Shutz e seus seguidores Berger e Luckmann, autores curiosamente não citados" (sic). Engano do professor.
Se tive alguma influência da fenomenologia, eu a devo
a Edmund Husserl, cujos conceitos me instigaram, isto
ainda nos anos 70, a pensar que na imagem fotográfica a
realidade está, de fato, entre parênteses. Tal percepção,
associada à praxis da produção de imagens, me fez
apreender a essência do fenômeno fotográfico. Fenômeno que se repete sempre, em qualquer situação, mediante determinados elementos constitutivos (assunto,
fotógrafo, tecnologia) e segundo específicas coordenadas de situação (espaço e tempo). Percebi também que a
fotografia tem uma realidade própria: uma segunda realidade. A partir dessas formulações, elaborei pressupostos metodológicos para a pesquisa das imagens que têm
encontrado aplicações em diferentes áreas das ciências
humanas.
Não obstante, tenho outras influências teóricas, professor. Francastel e Panofsky encabeçam essa lista, porque perceberam a importância das imagens como
meios de conhecimento. Ao mesmo tempo, fui buscar
em Marc Bloch, Fernand Braudel, Henri-Irenée Marrou, Vovelle, entre outros, renovados conceitos sobre a
natureza e alcance dos documentos. Mas, além desses,
Walter Benjamin, Charles Peirce e Gisèle Freund. Desses autores, sim, recebi influências teóricas que me foram decisivas enquanto historiador e estudioso das
imagens.
Por outro lado, acumulei toda uma bagagem de influências que passam por Magritte, Poe, Huxley, Borges,
Antonioni, Bergman, Buñuel, Kubrick, Ridley Scott...,
que despertaram meu espírito para as ficções da realidade. Influências importantes para a minha carreira paralela enquanto fotógrafo criador de realidades e de ficções.
A criação e a interpretação das imagens -a partir do
real ou das fantasias individuais e coletivas que povoam
nosso imaginário- inserem-se em processos de criação de realidades. Melhor dizendo, de construção de
realidades. A construção de realidades ocorre sempre na
fotografia, seja ela exercida enquanto expressão do autor sem finalidades utilitárias, seja como registro fotojornalístico ou instrumento de criação publicitária.
Vemos diariamente como a publicidade e a imprensa
constroem realidades e verdades. Em embalagens sedutoras. Talvez aí resida o equívoco de Martins, quando
afirma que utilizo os conceitos shutzianos de "criação
de realidades" e o de "múltiplas realidades" de "ponta a
ponta" no livro. Além disso, não se trata de "construção
social da realidade", como investigaram Berger e Luckmann, e sim de construção cultural e ideológica do signo (o documento/ representação) e da interpretação,
como tenho explicitado. Não confunda terminologias
semelhantes com conceitos distintos, professor.
Minhas investigações teóricas têm sido centradas na
detecção das múltiplas "realidades" que se encontram
fluidas na representação fotográfica e/ou que dela emanam, com o objetivo de trazer alguma luz para a compreensão dos mecanismos que regem a produção e a recepção das imagens. Trata-se de mecanismos mentais
identificados por dois processos: 1) processo de construção da representação, isto é, a produção da obra fotográfica engendrada ao longo do processo de criação do
fotógrafo; 2) processo de construção da interpretação,
isto é, a recepção da obra fotográfica, suas diferentes leituras em precisos momentos da história; processo este
que se funda na evidência fotográfica e que é elaborado
no imaginário dos receptores, segundo seus repertórios
culturais, concepções ideológicas/estéticas etc. A imagem fotográfica é moldável de acordo com nossas imagens mentais, nossas fantasias e ambições, nossas realidades e ficções. Refiro-me, na recepção, à múltiplas interpretações e, portanto, "múltiplas realidades". Isso fez
com que o professor assumisse que tenho "filiações explícitas" à Shutz e seguidores...
Em termos gerais, essas têm sido as influências das
quais recebi minhas linhas de investigação e meus conceitos. Sem débitos para Shutz "e seus seguidores" e sem
"transposições conceituais" (sic). Leituras apressadas
podem levar a equívocos lamentáveis, por vezes ofensivos.
Boris Kossoy é professor do departamento de jornalismo e editoração da Escola de
Comunicações e Artes (ECA) da USP. É autor de "Realidade e Ficções na Trama Fotográfica" (Ateliê Editorial).
Texto Anterior: Lúcia Nagib: Defesa do filme mudo Próximo Texto: José Antonio Pasta Jr.: O arcanjo e a revolução Índice
|