São Paulo, sábado, 12 de janeiro de 2002

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As idéias de Giovanni Arrighi sobre a hegemonia americana são discutidas pelo economista e cientista político José Luís Fiori

A crise americana

Caos e Governabilidade no Moderno Sistema Mundial
Giovanni Arrighi e Beverly J. Silver
Tradução: Vera Ribeiro
Ed. UFRJ/Contraponto (Tel. 0/xx/21/2544-0206)
336 págs., R$ 40,00

JOSÉ LUÍS FIORI

Quando Giovanni Arrighi publicou, em 1994, "O Longo Século 20" (Contraponto/Unesp), deu uma contribuição decisiva para o amadurecimento da tese de Immanuel Wallerstein sobre a recorrência das "crises mundiais de hegemonia", dentro do "Modern World System", que nasceu no "longo século 16" de Fernand Braudel.
Segundo Wallerstein, esse "sistema moderno" foi responsável pelo milagre capitalista europeu, cuja originalidade histórica combinou, de forma contraditória e dinâmica, uma "economia-mundo transcontinental" com uma superestrutura política formada por Estados nacionais independentes e competitivos. Mas a guerra quase permanente entre os Estados só não degenerou em caos político e econômico graças ao comando sucessivo -ao longo dos últimos 500 anos- de três grandes potências hegemônicas que foram capazes de organizar, tanto do ponto de vista político quanto econômico, o funcionamento hierárquico do sistema: as Províncias Unidas, no século 17; a Grã-Bretanha, no século 19; e os EUA, no século 20. Essas hegemonias, contudo, não eliminaram os processos subjacentes de competição, acumulação e centralização da riqueza e do poder responsáveis pela repetição periódica de grandes crises e longos períodos de transição e reorganização da base produtiva, assim como da liderança mundial do sistema.
Em "O Longo Século 20", Arrighi retoma e desenvolve essa tese de Wallerstein, a partir de uma idéia sugerida pela leitura de certa passagem de "O Tempo do Mundo - Civilização Material, Economia e Capitalismo", em que Braudel fala das economias que se dedicam a viver dos "rendimentos especulativos", fato que anunciaria "uma espécie de maturidade, sinal de outono" dessas economias. Daí extraiu sua tese central de que todas as "expansões financeiras assinalariam, através da história, transições de um regime de acumulação em escala mundial para outro".
Neste novo livro, "Caos e Governabilidade no Moderno Sistema Mundial", Giovanni Arrighi, Beverly Silver e vários outros pesquisadores retomam essa investigação, em particular a questão da "crise americana".
Segundo os autores, as "crises de hegemonia" podem ser identificadas por meio de três sintomas distintos, mas relacionados: a intensificação da competição interestatal e capitalista; a escalada global dos conflitos sociais e coloniais ou civilizatórios; e a emergência de novas configurações de poder capazes de desafiar e vencer o antigo Estado hegemônico, que já estaria fragilizado. Além disso, em todas as transições, esses sintomas apareceriam associados a grandes "expansões financeiras sistêmicas", que seriam o efeito combinado de uma crise de sobreprodução e do aumento da disputa estatal pelos capitais circulantes. Segue-se a conclusão de que "a expansão financeira dos últimos 20 anos do século 20 é o sinal mais claro de que estamos em meio a uma crise de hegemonia".
Mais importante, porém, segundo eles, seria o fato de que, depois do fim da Guerra Fria, os EUA aumentaram sua vantagem militar, mas se fragilizaram como potência hegemônica devido: (a) ao crescimento de seu endividamento externo, que fez da "maior potência militar do mundo a maior nação devedora mundial"; (b) à "bifurcação" do poder mundial que resultou do deslocamento do poder financeiro e do "cofre do sistema" para outros centros econômicos -fenômeno que transformou o leste asiático "na nova oficina e no novo cofre do mundo, sob a liderança "invisível" de um Estado semelhante a uma empresa, o Japão"; (c) à "sublevação" das "grandes empresas multinacionais que receberam poderes dos EUA e de seus aliados europeus para operar globalmente, mas que se tornaram independentes, solapando o poder dos próprios Estados de que dependem para sua proteção e manutenção".
São esses os fatores em que sustentam sua tese de que os EUA estariam perdendo o controle do sistema mundial, uma hipótese ousada, mas apoiada em conceitos imprecisos e evidências frágeis. Se não, vejamos.
Apesar da importância decisiva do conceito -verdadeira pedra angular da interpretação de Arrighi-, não está claro, na história econômica, o verdadeiro significado das "expansões financeiras" no desenvolvimento da economia capitalista mundial. Tampouco é consensual a interpretação que Arrighi dá às metáforas utilizadas por Braudel com relação à "maturidade" e ao "outono" do capitalismo em Gênova e Amsterdam. Não há dúvida de que Braudel diagnostica, nos dois casos, uma superabundância de capitais baratos e "especulativos" em alguns momentos do século 16 e do 18. Mas ele também nos conta que os holandeses sempre investiram e emprestaram dinheiro para governos e negócios de outros países e os genoveses foram, desde o século 15, uma espécie de cidade-banco, que viveu de emprestar para príncipes e negócios de todo tipo, inclusive o dos "descobrimentos".

Expansão do capital
Seriam, portanto, cidades em estado permanente de expansão financeira. De tal maneira que não é impossível deduzir da narrativa de Braudel uma tese diferente da defendida por Arrighi: em primeiro lugar, a expansão do capital financeiro seria uma tendência permanente e essencial do capitalismo e, em segundo, sua abundância e baixo preço teria sido uma consequência transitória da própria perda de poder de Gênova e Amsterdam, e não o produto de qualquer tipo de "crise de sobreprodução".
No tempo posterior à pesquisa de Braudel, no caso inglês, a expansão financeira do início do século 19 acompanhou a consolidação e não a crise da hegemonia inglesa. E não se transformou em empréstimos especulativos; ao contrário, financiou sua própria revolução industrial, deslocando-se da indústria algodoeira para a indústria metalúrgica e para as estradas de ferro. Logo em seguida, na segunda metade do século 19, uma nova expansão financeira foi contemporânea da "crise de sobreprodução" que atingiu a Inglaterra depois de 1873. Mas tampouco deu origem a empréstimos especulativos, sustentando a venda, no exterior, dos produtos ingleses, além de injetar recursos na montagem do Império através do mundo, depois que a Índia se transformou na pérola da sua Coroa.
Enfim, a "financeirização capitalista" do final do século 20 tampouco parece confirmar a hipótese de Arrighi. Na década de 70, a "expansão financeira" foi sobretudo uma consequência da abundância de petrodólares no mercado europeu; nos 80, foi um fenômeno que se restringiu quase que só aos mercados desregulados anglo-saxões, tendo sido acompanhada pela retomada do crescimento da economia norte-americana, que se prolongou através de toda a década seguinte. É nos anos 90 que ocorre, de fato, uma "expansão financeira sistêmica"; mas esta foi consequência da desregulação generalizada dos mercados de capitais através do mundo, além de ter-se dado em um dos períodos de mais intenso e continuado crescimento dos investimentos, da produção, do consumo e da produtividade na economia norte-americana. Nesses 30 anos, apesar da migração de capitais para o leste asiático, os EUA seguiram sendo o principal território econômico de aplicação e investimento de capitais do mundo inteiro.

Crise de hegemonia
Além disso, não há evidências suficientes (nem no livro nem na historiografia econômica) que permitam sustentar que o acirramento da competição interestatal e interempresarial tenha ocorrido apenas nos momentos das grandes transições, entre distintos ciclos de acumulação. Não parecem ser causa nem são um indicador suficiente de uma crise de hegemonia. Mesmo que pareça uma questão de senso comum prever o aumento da "conflitividade social" em períodos de erosão dos poderes dominantes, é muito mais complicado demonstrar que as lutas revolucionárias e os movimentos sociais tenham aumentado durante os períodos de transição da hegemonia.
Ao contrário, a "era das revoluções", de Hobsbawm, coincidiu com o período de consolidação e não de crise da hegemonia inglesa, enquanto a crise mundial dos últimos 20 anos do século 20, ao contrário do previsto pelo modelo, foi uma conjuntura de desaceleração dos conflitos e de derrota dos movimentos trabalhistas e sociais em quase todo o mundo. É interessante constatar que as grandes ondas de descolonização e independência dos novos Estados, que tiveram lugar no início do século 19 e ao longo do século 20, coincidiram com a ascensão e não com a crise das hegemonias inglesa e norte-americana.
Durante o período da euforia americana dos anos 90, fez parte da ideologia globalitária atribuir às grandes corporações multinacionais e aos mercados financeiros um poder maior que o dos seus próprios Estados de origem. Passado o período das grandes compras e fusões transnacionais, todos os balanços feitos indicam que, no caso dos setores estratégicos -do ponto de vista tecnológico e militar-, o fator nacional foi decisivo e houve intervenções estatais das grandes potências sempre que algumas de suas grandes corporações se viu ameaçada por capitais estrangeiros.
Com relação ao problema do poder e da relação entre a competição interestatal e a acumulação de capital, o esquema interpretativo de Arrighi e seus discípulos fica prisioneiro de grandes analogias históricas sobre os momentos e os processos de "transição da hegemonia". Falta-lhes uma análise mais detalhada do processo de competição, fora do momento da transição e da disputa central, assim como das relações dessa competição com os "lucros extraordinários" que são a própria razão de ser do sistema. É nesse ponto que mais se sente a ausência, no livro de Arrighi, de uma discussão analítica mais cuidadosa sobre as relações originárias entre o poder político e os processos de valorização do capital e da sua multiplicação na forma dinheiro, antes e depois do longo século 16, como nos ensinou Braudel.

Transferência do "caixa"
Por fim, existe um último problema sério no encaminhamento das conclusões do livro: a idéia de que os EUA se fragilizaram nas últimas décadas, ao se endividarem excessivamente e ao permitirem a transferência do "caixa" do sistema para o leste asiático. Com relação ao problema do endividamento, os autores confundem o funcionamento do atual sistema monetário internacional -"dólar-flutuante"- com o que foram os sistemas monetários internacionais anteriores, baseados nos padrões ouro-libra e ouro-dólar. Nestes dois últimos, "os países que emitiam a moeda-chave podiam fechar o saldo de sua balança de pagamentos com déficits globais, mas tinham que se preocupar permanentemente com sua posição externa, para impedir que se alterasse o preço oficial da sua moeda em ouro" (Serrano, "Do Ouro Móvel ao Dólar Flexível").
Entretanto, no novo sistema monetário internacional -que se consolidou nas décadas de 1980 e 90-, "os EUA podem incorrer em déficits em balanço de pagamentos de qualquer monta e financiá-los tranquilamente com ativos denominados em sua própria moeda. Além disso, a ausência de conversibilidade em ouro dá aos EUA a liberdade de variar sua paridade em relação às moedas dos outros países conforme sua conveniência, por meio da alteração das taxas de juros. Nesse sentido, a ausência de conversibilidade em ouro elimina pura e simplesmente o problema da restrição externa para os EUA" (Idem).
Assim, ao contrário do que pensa Arrighi, a crise dos anos 70, a "expansão financeira" posterior e o fim da Guerra Fria transferiram para os EUA uma centralidade militar, monetária e financeira sem precedentes na história da economia-mundo capitalista. E não há nada, portanto, no cenário mundial que sustente a idéia de que ocorreu uma "bifurcação" entre o poder militar e o poder financeiro globais nos últimos 20 anos do século 20. Ao contrário, ambos estão concentrados nas mãos de uma única potência, que responde ainda pelo nome de EUA.
Nesse contexto, fica difícil imaginar que possa surgir uma "nova configuração de poder" com capacidade hegemônica mundial em territórios que não passam de protetorados militares e cujo dinamismo econômico depende radicalmente da evolução dos acontecimentos nos próprios EUA.
Não há dúvida de que o sistema mundial está em transe e é bem provável que os EUA enfrentem dificuldades crescentes, nas próximas décadas, para manter seu controle global. O mais provável é que, se a história mantiver as regras do passado, tampouco os EUA consigam construir um império mundial. Mas, se isso acontecer, será por razões e caminhos que não se encaixam bem no modelo sistêmico de Arrighi e seus discípulos.


José Luís Fiori é autor, entre outros livros, de "60 Lições dos 90" (Record).


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