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As idéias de Giovanni Arrighi sobre a hegemonia americana são discutidas pelo economista e cientista político José Luís Fiori
A crise americana
Caos e Governabilidade
no Moderno Sistema Mundial
Giovanni Arrighi e Beverly J. Silver
Tradução: Vera Ribeiro
Ed. UFRJ/Contraponto (Tel. 0/xx/21/2544-0206)
336 págs., R$ 40,00
JOSÉ LUÍS FIORI
Quando Giovanni Arrighi publicou,
em 1994, "O Longo Século 20" (Contraponto/Unesp), deu uma contribuição
decisiva para o amadurecimento da tese
de Immanuel Wallerstein sobre a recorrência das "crises mundiais de hegemonia", dentro do "Modern World
System", que nasceu no "longo século
16" de Fernand Braudel.
Segundo Wallerstein, esse "sistema
moderno" foi responsável pelo milagre
capitalista europeu, cuja originalidade
histórica combinou, de forma contraditória e dinâmica, uma "economia-mundo transcontinental" com uma superestrutura política formada por Estados
nacionais independentes e competitivos. Mas a guerra quase permanente entre os Estados só não degenerou em caos
político e econômico graças ao comando sucessivo -ao longo dos últimos
500 anos- de três grandes potências
hegemônicas que foram capazes de organizar, tanto do ponto de vista político
quanto econômico, o funcionamento
hierárquico do sistema: as Províncias
Unidas, no século 17; a Grã-Bretanha,
no século 19; e os EUA, no século 20. Essas hegemonias, contudo, não eliminaram os processos subjacentes de competição, acumulação e centralização da
riqueza e do poder responsáveis pela repetição periódica de grandes crises e
longos períodos de transição e reorganização da base produtiva, assim como da
liderança mundial do sistema.
Em "O Longo Século 20", Arrighi retoma e desenvolve essa tese de Wallerstein, a partir de uma idéia sugerida pela
leitura de certa passagem de "O Tempo
do Mundo - Civilização Material, Economia e Capitalismo", em que Braudel
fala das economias que se dedicam a viver dos "rendimentos especulativos",
fato que anunciaria "uma espécie de
maturidade, sinal de outono" dessas
economias. Daí extraiu sua tese central
de que todas as "expansões financeiras
assinalariam, através da história, transições de um regime de acumulação em
escala mundial para outro".
Neste novo livro, "Caos e Governabilidade no Moderno Sistema Mundial",
Giovanni Arrighi, Beverly Silver e vários
outros pesquisadores retomam essa investigação, em particular a questão da
"crise americana".
Segundo os autores, as "crises de hegemonia" podem ser identificadas por
meio de três sintomas distintos, mas relacionados: a intensificação da competição interestatal e capitalista; a escalada
global dos conflitos sociais e coloniais
ou civilizatórios; e a emergência de novas configurações de poder capazes de
desafiar e vencer o antigo Estado hegemônico, que já estaria fragilizado. Além
disso, em todas as transições, esses sintomas apareceriam associados a grandes "expansões financeiras sistêmicas",
que seriam o efeito combinado de uma
crise de sobreprodução e do aumento
da disputa estatal pelos capitais circulantes. Segue-se a conclusão de que "a
expansão financeira dos últimos 20 anos
do século 20 é o sinal mais claro de que
estamos em meio a uma crise de hegemonia".
Mais importante, porém, segundo eles, seria o fato de que, depois do fim da Guerra Fria, os
EUA aumentaram sua vantagem
militar, mas se fragilizaram como
potência hegemônica devido: (a)
ao crescimento de seu endividamento externo, que fez da "maior
potência militar do mundo a
maior nação devedora mundial";
(b) à "bifurcação" do poder mundial que resultou do deslocamento do poder financeiro e do "cofre
do sistema" para outros centros
econômicos -fenômeno que
transformou o leste asiático "na
nova oficina e no novo cofre do
mundo, sob a liderança "invisível"
de um Estado semelhante a uma
empresa, o Japão"; (c) à "sublevação" das "grandes empresas multinacionais que receberam poderes dos EUA e de seus aliados europeus para operar globalmente,
mas que se tornaram independentes, solapando o poder dos
próprios Estados de que dependem para sua proteção e manutenção".
São esses os fatores em que sustentam sua tese de que os EUA estariam perdendo o controle do
sistema mundial, uma hipótese
ousada, mas apoiada em conceitos imprecisos e evidências frágeis. Se não, vejamos.
Apesar da importância decisiva
do conceito -verdadeira pedra
angular da interpretação de Arrighi-, não está claro, na história
econômica, o verdadeiro significado das "expansões financeiras"
no desenvolvimento da economia
capitalista mundial. Tampouco é
consensual a interpretação que
Arrighi dá às metáforas utilizadas
por Braudel com relação à "maturidade" e ao "outono" do capitalismo em Gênova e Amsterdam.
Não há dúvida de que Braudel
diagnostica, nos dois casos, uma
superabundância de capitais baratos e "especulativos" em alguns
momentos do século 16 e do 18.
Mas ele também nos conta que os
holandeses sempre investiram e
emprestaram dinheiro para governos e negócios de outros países
e os genoveses foram, desde o século 15, uma espécie de cidade-banco, que viveu de emprestar
para príncipes e negócios de todo
tipo, inclusive o dos "descobrimentos".
Expansão do capital
Seriam, portanto, cidades em
estado permanente de expansão
financeira. De tal maneira que
não é impossível deduzir da narrativa de Braudel uma tese diferente da defendida por Arrighi:
em primeiro lugar, a expansão do
capital financeiro seria uma tendência permanente e essencial do
capitalismo e, em segundo, sua
abundância e baixo preço teria sido uma consequência transitória
da própria perda de poder de Gênova e Amsterdam, e não o produto de qualquer tipo de "crise de
sobreprodução".
No tempo posterior à pesquisa
de Braudel, no caso inglês, a expansão financeira do início do século 19 acompanhou a consolidação e não a crise da hegemonia inglesa. E não se transformou em
empréstimos especulativos; ao
contrário, financiou sua própria
revolução industrial, deslocando-se da indústria algodoeira para a
indústria metalúrgica e para as estradas de ferro. Logo em seguida,
na segunda metade do século 19,
uma nova expansão financeira foi
contemporânea da "crise de sobreprodução" que atingiu a Inglaterra depois de 1873. Mas tampouco deu origem a empréstimos
especulativos, sustentando a venda, no exterior, dos produtos ingleses, além de injetar recursos na
montagem do Império através do
mundo, depois que a Índia se
transformou na pérola da sua Coroa.
Enfim, a "financeirização capitalista" do final do século 20 tampouco parece confirmar a hipótese de Arrighi. Na década de 70, a
"expansão financeira" foi sobretudo uma consequência da abundância de petrodólares no mercado europeu; nos 80, foi um fenômeno que se restringiu quase que
só aos mercados desregulados anglo-saxões, tendo sido acompanhada pela retomada do crescimento da economia norte-americana, que se prolongou através de
toda a década seguinte. É nos
anos 90 que ocorre, de fato, uma
"expansão financeira sistêmica";
mas esta foi consequência da desregulação generalizada dos mercados de capitais através do mundo, além de ter-se dado em um
dos períodos de mais intenso e
continuado crescimento dos investimentos, da produção, do
consumo e da produtividade na
economia norte-americana. Nesses 30 anos, apesar da migração
de capitais para o leste asiático, os
EUA seguiram sendo o principal
território econômico de aplicação
e investimento de capitais do
mundo inteiro.
Crise de hegemonia
Além disso, não há evidências
suficientes (nem no livro nem na
historiografia econômica) que
permitam sustentar que o acirramento da competição interestatal
e interempresarial tenha ocorrido
apenas nos momentos das grandes transições, entre distintos ciclos de acumulação. Não parecem
ser causa nem são um indicador
suficiente de uma crise de hegemonia. Mesmo que pareça uma
questão de senso comum prever o
aumento da "conflitividade social" em períodos de erosão dos
poderes dominantes, é muito
mais complicado demonstrar que
as lutas revolucionárias e os movimentos sociais tenham aumentado durante os períodos de transição da hegemonia.
Ao contrário, a "era das revoluções", de Hobsbawm, coincidiu
com o período de consolidação e
não de crise da hegemonia inglesa, enquanto a crise mundial dos
últimos 20 anos do século 20, ao
contrário do previsto pelo modelo, foi uma conjuntura de desaceleração dos conflitos e de derrota
dos movimentos trabalhistas e sociais em quase todo o mundo. É
interessante constatar que as
grandes ondas de descolonização
e independência dos novos Estados, que tiveram lugar no início
do século 19 e ao longo do século
20, coincidiram com a ascensão e
não com a crise das hegemonias
inglesa e norte-americana.
Durante o período da euforia
americana dos anos 90, fez parte
da ideologia globalitária atribuir
às grandes corporações multinacionais e aos mercados financeiros um poder maior que o dos
seus próprios Estados de origem.
Passado o período das grandes
compras e fusões transnacionais,
todos os balanços feitos indicam
que, no caso dos setores estratégicos -do ponto de vista tecnológico e militar-, o fator nacional
foi decisivo e houve intervenções
estatais das grandes potências
sempre que algumas de suas
grandes corporações se viu ameaçada por capitais estrangeiros.
Com relação ao problema do
poder e da relação entre a competição interestatal e a acumulação
de capital, o esquema interpretativo de Arrighi e seus discípulos fica
prisioneiro de grandes analogias
históricas sobre os momentos e os
processos de "transição da hegemonia". Falta-lhes uma análise
mais detalhada do processo de
competição, fora do momento da
transição e da disputa central, assim como das relações dessa competição com os "lucros extraordinários" que são a própria razão de
ser do sistema. É nesse ponto que
mais se sente a ausência, no livro
de Arrighi, de uma discussão analítica mais cuidadosa sobre as relações originárias entre o poder
político e os processos de valorização do capital e da sua multiplicação na forma dinheiro, antes e
depois do longo século 16, como
nos ensinou Braudel.
Transferência do "caixa"
Por fim, existe um último problema sério no encaminhamento
das conclusões do livro: a idéia de
que os EUA se fragilizaram nas últimas décadas, ao se endividarem
excessivamente e ao permitirem a
transferência do "caixa" do sistema para o leste asiático. Com relação ao problema do endividamento, os autores confundem o
funcionamento do atual sistema
monetário internacional -"dólar-flutuante"- com o que foram
os sistemas monetários internacionais anteriores, baseados nos
padrões ouro-libra e ouro-dólar.
Nestes dois últimos, "os países
que emitiam a moeda-chave podiam fechar o saldo de sua balança de pagamentos com déficits
globais, mas tinham que se preocupar permanentemente com sua
posição externa, para impedir que
se alterasse o preço oficial da sua
moeda em ouro" (Serrano, "Do
Ouro Móvel ao Dólar Flexível").
Entretanto, no novo sistema
monetário internacional -que se
consolidou nas décadas de 1980 e
90-, "os EUA podem incorrer
em déficits em balanço de pagamentos de qualquer monta e financiá-los tranquilamente com
ativos denominados em sua própria moeda. Além disso, a ausência de conversibilidade em ouro
dá aos EUA a liberdade de variar
sua paridade em relação às moedas dos outros países conforme
sua conveniência, por meio da alteração das taxas de juros. Nesse
sentido, a ausência de conversibilidade em ouro elimina pura e
simplesmente o problema da restrição externa para os EUA"
(Idem).
Assim, ao contrário do que pensa Arrighi, a crise dos anos 70, a
"expansão financeira" posterior e
o fim da Guerra Fria transferiram
para os EUA uma centralidade
militar, monetária e financeira
sem precedentes na história da
economia-mundo capitalista. E
não há nada, portanto, no cenário
mundial que sustente a idéia de
que ocorreu uma "bifurcação"
entre o poder militar e o poder financeiro globais nos últimos 20
anos do século 20. Ao contrário,
ambos estão concentrados nas
mãos de uma única potência, que
responde ainda pelo nome de
EUA.
Nesse contexto, fica difícil imaginar que possa surgir uma "nova
configuração de poder" com capacidade hegemônica mundial
em territórios que não passam de
protetorados militares e cujo dinamismo econômico depende radicalmente da evolução dos acontecimentos nos próprios EUA.
Não há dúvida de que o sistema
mundial está em transe e é bem
provável que os EUA enfrentem
dificuldades crescentes, nas próximas décadas, para manter seu
controle global. O mais provável é
que, se a história mantiver as regras do passado, tampouco os
EUA consigam construir um império mundial. Mas, se isso acontecer, será por razões e caminhos
que não se encaixam bem no modelo sistêmico de Arrighi e seus
discípulos.
José Luís Fiori é autor, entre outros livros, de "60 Lições dos 90" (Record).
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