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A ação do pintor
Mondrian: A Dimensão Humana na Pintura Abstrata
Meyer Schapiro
Tradução: Betina Bischos
Cosac & Naify (Tel. 0/xx/11/3218-1444)
96 págs., R$ 32,00
LUIZ ARMANDO BAGOLIN
O ato de apreensão de uma obra de arte implica sempre a parcialidade de julgamentos e as condições limitadas daqueles que a percebem;
portanto, compreende a aquisição progressiva de diferentes percepções cotejadas historicamente. Talvez essa seja uma das premissas
fundamentais presentes na prosa crítica de Meyer Schapiro, importante historiador da arte, ativo entre as décadas de 30 e 80 na cena norte-americana.
Schapiro, estudioso da arte medieval, supostamente conheceu as
proposições de Nicolau de Cusa, que utilizou o "exemplum" do artífice para designar que toda realização em ato sempre apresenta alguma
coisa que não se traduziu em ato, ou seja, uma imperfeição que multiplica as ações deste artífice em múltiplas e variadas obras. É justamente essa margem de não-realização, de inacabamento, que impediria,
na visão de Schapiro, qualquer possibilidade de acercamento da obra
de arte como de um todo coerente.
Particularmente quando se trata de pensar sobre a arte moderna em
suas manifestações abstratas, Schapiro não acredita na crítica de fundo teleológico que tenderia a associar a exclusão de formas naturais a
uma universalização não-histórica das qualidades artísticas. Desse
modo, em um ensaio publicado pela primeira vez em 1937, intitulado
"A Natureza da Arte Abstrata", Schapiro glosa o livro "Cubism and
Abstract Art", de Alfred H. Barr Jr., demonstrando a inadequação em
considerar a arte abstrata como independente das condições históricas de seu aparecimento, a sua descontinuidade em relação à arte figurativa precedente e a transformação inequívoca em prol de uma arte
de forma pura sem conteúdo.
Para Schapiro, o próprio artista identificado com a abstração teria
assimilado o discurso segundo o qual a representação da natureza implicaria uma atitude passiva diante da mesma e, portanto, uma experiência de menor importância se comparada com a pesquisa de um
campo formal absoluto, fundamentada pela razão. A advertência sobre os perigos de uma radicalização das posições em favor seja da arte
representativa, seja da abstrata, dá lugar, então, à possibilidade de
pensar a arte em termos de continuidade por força positiva de pensamentos e sentimentos coligidos historicamente. Para Schapiro, há
passagens coerentes de um tipo de arte a outro, pois a arte deve ser entendida como algo que continuamente se produz e progressivamente
se recebe.
Essas idéias voltarão a ser desenvolvidas em dois ensaios posteriores, sobre a obra de Piet Mondrian, intitulados "A Dimensão Humana
da Pintura Abstrata", publicado em 1960, e "Mondrian - A Ordem e o
Aleatório na Pintura Abstrata", de 1978, ambos novamente publicados em língua portuguesa sob o título do primeiro.
Em "A Dimensão", Schapiro refuta as proposições que tentariam
vincular a pintura abstrata à abstração lógica ou matemática, limitando-a a um padrão geométrico frívolo. O termo abstração, nesse sentido, não seria muito adequado, pois para Schapiro não é possível pensar o artista fazendo uma obra em que seus sentimentos e sensações
estejam em estado de suspensão momentânea. Por outro lado, uma
pintura que pressupõe a espontaneidade e o envolvimento sensorial
do artista não o livraria do lugar-comum "macaqueador da natureza",
ou aquele para quem a pintura é "símia" (como em texto de Filippo
Villani), pois o artista passa a ser produtor de "borrões", típicos dos
primatas que nos divertem nos zoológicos citadinos.
"O pintor, ao que parece", satiriza Schapiro, "não pode escapar à sua
natureza animal". Mas esse lugar-comum, reassumido de forma pejorativa na atualidade, ainda demonstra que não se pode creditar à arte
abstrata um poder puramente racional, avesso à emoção, nem se pode
igualmente considerá-la um álibi para a expressividade desenfreada
das emoções num jogo aleatório e instintivo de formas e cores que a
deslocaria do tempo histórico. Para Schapiro, o espectador moderno,
seja ele representado pelo público reacionário ou pelo artista demasiadamente libertário, não percebeu as fortes ligações da pintura abstrata
com as composições e os métodos de estruturação da pintura figurativa de finais do século 19.
Em "A Ordem e o Aleatório", Schapiro escolhe uma obra emblemática de Mondrian, "Composição em Branco e Preto", de 1926, e revela
o modo como a pintura, em suas relações internas assimétricas, desenhadas pelas barras negras, tangíveis, referem um observador fora do
quadro, sugerindo a existência de um espaço singular também exterior que se apresentaria mediante a apreensão dos elementos pintados. A interrupção das direções indicadas pelos elementos que estruturam internamente a pintura não podia ser encontrada nas pinturas
mais antigas de Mondrian, sejam as paisagens, sejam os trabalhos
aproximados à linguagem pictórica do cubismo.
Entretanto essas composições com elementos essenciais, entrecruzando-se em ortogonais, referem estratégias pictóricas anteriores, sobretudo achadas nas obras de Monet, Degas, Seurat e Toulouse-Lautrec. Nessa aproximação, Schapiro reitera a assimilação, por parte de
Mondrian, de estruturações pictóricas que instrumentalizam a pintura, para além do plano do quadro, a situar a posição do olhar de um
observador presumido. Propõe-se o exemplo da obra na chapelaria de
Degas, onde a situação das figuras em cena tem tratamento distintivo
que certamente se desfaria sem a perscrutação móvel daquele observador. Porém, para Schapiro, Mondrian tentou transpor para a experiência de sua arte abstrata apenas as relações espaciais observadas naquelas referências artísticas alheias, não incorrendo na redução das
formas naturais a padrões geométricos simples.
A ação do pintor, por muitos considerada extremamente racional,
justifica-se como força de operação contínua não somente artística,
mas também sinalizadora de uma busca por novos modos de interação na vida cotidiana, e Schapiro vê esta ação como algo contrário a
qualquer esquema de construção fria e impessoal. Antes, tal ação representaria o esforço por parte do artista em aliar a sua arte aos instrumentos de liberação das novas forças sociais prometidas pela modernidade.
Assim a sua pintura não oporia o espectador ao quadro, mas procuraria integrá-lo à cena espacial, expandida pela assimetria de suas relações. Não é incomum nos comentários de Schapiro, como de resto em
boa parte da crítica do período, encontrarmos ainda a presença de algum ideário de fundo marxista.
Luiz Armando Bagolin é artista plástico e professor de história da arte na Pontifícia Universidade Católica - MG.
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