São Paulo, sábado, 12 de janeiro de 2002

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Coletânea reúne textos sobre Jorge Luis Borges

Presença de um ausente

Borges no Brasil
Organização: Jorge Schwartz
Ed. Unesp (Tel. 0/xx/11/3232-7171)
608 págs., R$ 40,00


PABLO ROCCA

Não existia um livro assim. A rigor, não havia um livro como este que organizou o argentino-brasileiro Jorge Schwartz sobre Jorge Luis Borges, nem no Brasil nem em nenhuma outra parte do mundo. Seria mais fácil, é claro, fazer um "Borges na Argentina", que, não obstante, deveria contemplar a recompilação de vários milhares de páginas. Isso dá vantagem ao trabalho empreendido por Schwartz. Contudo cabe retificar a afirmação feita acima, porque, quando ainda era vivo Borges (1899-1986), o organizador -em colaboração com Elza Miné- tinha tentado essa tarefa pioneira no Brasil, ao reunir uma porção de artigos velhos e novos num número especial do "Boletim Biográfico da Biblioteca Mário de Andrade" (1984). Agora, trata de repetir essa experiência, que a rigor circulou de forma muito limitada, recuperando todos esses textos no novo livro. Porém há algo mais que chama a atenção. As vinculações estritas de Borges com o Brasil não são muito abundantes, coisa que facilita a tarefa. Ou, visto de outro modo, pode complicá-la.
Consciente desse problema, Schwartz lança mão de uma porção significativa daquilo que se escreveu no Brasil sobre a obra e a pessoa de Borges, desde os longínquos anos 20 até os umbrais do novo milênio. Para começar, é patente a distância que existe entre 1984 e 2000 na valorização desse escritor. Se naquele tempo o autor argentino estava consagrado nos círculos acadêmicos e entre os leitores mais ou menos especializados, hoje sua obra adquire o cômodo e merecido lugar de um clássico, posição como a que -sem exagero- se poderia atribuir a Cervantes, Shakespeare ou Flaubert. Por isso, as interpretações recolhidas em "Borges no Brasil" se multiplicam pelos atalhos da tradução do espanhol para o português, pelas leituras das leituras borgianas de textos-chave ("Dom Quixote", "A Divina Comédia", "As Mil e Uma Noites" etc.), pelo exame do escritor "fora" da história ou inserido nela.
O material distribui-se em cinco seções. A parte um recolhe os estudos mais recentes de especialistas -quase todos do meio universitário brasileiro-, a partir de diferentes perspectivas teóricas; a parte dois reúne os trabalhos do mencionado "Boletim", a começar pela nota lúcida e pioneira de Mário de Andrade, passando pelas avaliações não menos inteligentes de Augusto Meyer e Guilhermino César, pela recriação textual à maneira borgiana de Clarice Lispector, para logo chegar aos enfoques do próprio Schwartz -que trabalha com argúcia o problema da tradução borgiana do "Ulisses" de Joyce-, de Eneida Maria de Souza, de Augusto de Campos, de Zipora Rubinstein, entre outros; a terceira seção inclui quatro entrevistas com o escritor homenageado, realizadas entre 1970 e 1985, por ocasião de suas diferentes passagens pelo Brasil; a parte quatro junta uma erudita bibliografia crítica publicada em território brasileiro e, por último, a seção cinco põe em ordem algumas fotografias, reproduzidas com diferentes níveis de qualidade.
E, no entanto, o Brasil é quase um espaço vazio para Borges. Quando em suas ficções, em seus ensaios ou ainda em suas declarações públicas faz referência a um topos reconhecível, este será o do "pampa" crioulo, mas sempre o pampa em contato com a zona hispânica. Daí o Rio Grande do Sul ingressar em sua obra de forma subsidiária e limítrofe com o único território com o qual este outro pampa tem fronteira: o Uruguai. Pouco diz Borges sobre o Brasil, como cenário e literatura, além do Rio Grande do Sul. Ou diz muito, se o interpretamos como o fez Raúl Antelo num artigo de 1984; diz que a fronteira é o espaço privilegiado do bárbaro. Há alguns sinais de admiração borgiana por "Os Sertões", de Euclides da Cunha -o que é verificado por vários ensaístas deste livro-, no qual certamente encontrou os visíveis ecos do "Facundo", o clássico de Domingo F. Sarmiento; há leituras depreciativas sobre Ribeiro Couto e bem pouco mais. Não consta, no entanto, que conhecesse um escritor maior, com quem -como postula Leyla Perrone-Moisés- as simetrias parecem evidentes: Machado de Assis.

O lugar do remoto
Na página de rosto do volume brilha uma fotografia na qual Borges e Maria Kodama estão de costas, numa noite qualquer, prestes a tomar um avião. De certa forma, essa fotografia pode funcionar como uma metáfora de sua atitude sobre o Brasil. Porque nas escassíssimas oportunidades em que pensou esse país, ele o fez como o lugar daquilo que é remoto. Uma vasta terra atrasada e mestiça, onde -como acreditava Sarmiento, em quem provavelmente pode ter se inspirado- "mais do que em nenhum outro lugar, desenham-se as diferenças da vida européia e da vida indígena". Quer dizer, um país quase infinito, onde a civilização e a barbárie dificilmente podem se conciliar.
Assim, nas vezes em que mencionou o Brasil em seus contos, Borges o fez em histórias de contrabandistas e delinquentes, que passam de um lado para o outro, da turva fronteira uruguaia para o Rio Grande do Sul. Esse cenário de violência e delito pode ser visto, por exemplo, em dois contos reunidos no volume "O Aleph" (1949): "O Morto" e "Emma Zunz".
No primeiro há um brasileiro, Azevedo Bandeira, que deixa avançar seu subordinado, o presunçoso portenho Benjamín Otárola, a ponto de deixá-lo possuir sua mulher. Mas deixa-o fazê-lo para planejar seu doloroso fim, que nem sequer ele, mas um matador, executará. O primeiro retrato de Bandeira diz muito sobre a visão que Borges tem do Brasil: "Alguém opina que Bandeira nasceu do outro lado de Cuareim, no Rio Grande do Sul; isso, que deveria diminuí-lo, obscuramente o enriquece de selvas populosas, de lamaçais, de inextricáveis e quase infinitas distâncias".
Para dar outro exemplo, no relato policial (e metafísico) "Emma Zunz" há um suposto vigarista argentino-judeu de origem alemã, que foge da justiça e se refugia num hotel de Bagé, como se a pequena cidade gaúcha fosse um lugar de faroeste, aonde não chega o braço da lei.
Um fragmento muito conhecido de sua vida, um episódio que repetira em muitas ocasiões, volta a aparecer numa das entrevistas compiladas aqui. Trata-se de um testemunho valioso porque referenda essas observações presentes na ficção. Rodríguez Monegal registra-o em seu "Borges, Uma Biografia Literária" (1987), mas muito antes, em 1963, numa entrevista dada a um jornalista de Montevidéu, Carlos Peralta, Borges já havia mostrado essa obsessão: "Não conheço quase nada da América Latina. Argentina, Uruguai, e passei uns dias em Santana do Livramento, na fronteira com o Brasil, onde tive a sorte de ver um assassinato. Estávamos numa confeitaria, com Amorim, e havia em outra mesa um guarda-costas de alguém importante, um capanga. Um bêbado aproximou-se dele e o capanga o matou com dois balaços. E, no dia seguinte, o tal capanga estava na mesma confeitaria tomando um refresco. Foi na mesa do lado, mas conto o que me contaram depois, e essa lembrança é mais clara que a realidade. Eu só vi um homem que se levantava e ouvi o estrondo". Esse mesmo acontecimento tinha sido retocado ou recriado no pós-escrito de 1947 ao relato "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" (em "Ficções", 1944).
Seja como for, até o final Borges foi fiel a essa visão. Mas este livro não rende tributo ao homem atravessado por tão toscos prejuízos (ou juízos), mas ao outro, ao que soube penetrar o universo com uma escrita imperecível.


Pablo Rocca é professor de literatura uruguaia e latino-americana na Universidade da República (Montevidéu).
Tradução de Yanet Aguilera


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