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A casa do poeta
Henriqueta Lisboa. Poesia Traduzida
Organização, introdução e notas: Reinaldo Marques e Maria Eneida Victor Farias
Editora UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4650)
487 págs., R$ 37,00
CELIA PEDROSA
Deste recente lançamento, uma coletânea de poemas traduzidos pela
poeta mineira Henriqueta Lisboa (1901-1985) -alguns inéditos, a
maioria publicada em antologias e suplementos literários entre 1961 e
1970-, pode-se dizer sem exagero que é primoroso. Nele, o delicado
requinte gráfico faz eco ao também delicado gesto de busca e recolha de
traduções dispersas de autores vários, bem como de seus respectivos
originais, de modo a contribuir para lançar luz sobre aspectos pouco
conhecidos da atividade literária de uma dedicada amante da poesia,
que escolheu fazer "do silêncio e da sombra sua morada", conforme declarou um dia.
Além disso, a publicação concilia as tarefas de divulgar a produção da
instituição universitária a que se vincula e de dar a conhecer trabalhos
que contribuam para o adensamento da discussão intelectual -nesse
caso específico, a produção poética e suas relações com outras práticas
discursivas, como a da tradução. Assim, essa coletânea torna pública
uma etapa da pesquisa desenvolvida por professores da Universidade
Federal de Minas Gerais em torno do tema "Acervo de Escritores Mineiros", cuja finalidade principal é a organização e preservação do acervo bibliográfico e documental dos escritores Murilo Rubião, Oswaldo
França Júnior, Abgar Renault e Cyro dos Anjos, além do de Henriqueta,
e das coleções Alexandre Eulálio, Octavio Dias Leite, Aníbal Machado e
José Oswaldo de Araújo.
"Poesia Traduzida" põe o leitor em contato com escritores pouco conhecidos pelo público leigo -Dante Alighieri, Luís de Góngora, Friedrich Schiller, Giacomo Leopardi, José Martí, Giuseppe Ungaretti, Gabriela Mistral, Jorge Guillén, Cesare Pavese, Archibald MacLeish-, tão
diversos e distantes, mas dotados agora de uma proximidade instigante, propiciada pela amorosa seleção da poeta-tradutora. Tal proximidade eletiva propicia um novo ângulo de leitura da personalidade lírica da
poeta, que pode ser então compreendida como efeito de uma construção intertextual de leituras que faz interagirem fatores especificamente
biográficos e contextuais, de um lado, e formas e valores mobilizados a
partir do diálogo tradutório com a tradição da literatura ocidental, de
outro.
Pensando essa interação, vamos ao encontro de um tópico fundamental à crítica literária contemporânea, que tem se dedicado à discussão do significado solipsista dos conceitos de obra e de autoria individual -discussão que encontra eco nos estudos de base linguística e
psicanalítica também sobre a própria prática da tradução. E, principalmente, mobilizamos dados que permitem redimensionar a compreensão do caráter universalista e sublime da poesia de Henriqueta Lisboa.
Em razão desse caráter, ela, com outros poetas da chamada "geração
45" (entre os quais ressalta a voz também feminina de Cecília Meirelles,
cuja obra em boa hora começa a ser relida), teve sua significação minimizada, por contraposição à dicção modernista hegemônica, fundada
numa poética da ruptura e da paródia direcionada para a figuração do
cotidiano em suas marcas locais e nacionais.
Nos últimos anos, uma outra produtiva demanda de nossa crítica literária tem sido justamente a releitura da tradição moderna e do discurso
historiográfico que a constituiu, visando tanto a uma compreensão
mais ampla e matizada de autores e obras canônicos quanto à identificação de procedimentos de exclusão e/ou minimização que relegaram
à insignificância inúmeros aspectos de nossa vida literária e cultural. O
distanciamento temporal, bem como a saudável fragilização de dogmas utópicos e vanguardistas, não só permite como obriga a repensar
antinomias e unanimidades. E, em tempos como os nossos, em que a
experiência do cotidiano se confunde com a adesão ao imaginário massificado e em que a ideologia da globalização econômica e cultural se
afirma como única forma de convivência e comunhão, talvez seja importante repensar o valor estético e político da demanda poética pelo
sublime e por um universal outro, ainda não institucionalizado, em que
se integrem diferenças assim então liberadas de sua fragmentação fundamentalista.
A esse propósito, não custa nada lembrar aqui que Antonio Candido,
com a acuidade que lhe é própria, já nos alertou para a necessidade de
relativizar antinomias, propondo, por exemplo, uma reavaliação positiva da vontade simbolista do sublime, não só metafísico como propriamente religioso, em tempos de anemia parnasiana e realista. Nessa sua
postulação ecoa o dramático apelo feito por Mário de Andrade, em sua
avaliação crítica do movimento modernista, em prol da fé no mito da
verdade universal, como antídoto à elasticidade informe e oportunista
de verdades transitórias e à escravidão às aparências fugazes. Na poesia
de Henriqueta Lisboa, encontramos uma manifestação dessa fé -fé na
poesia como experiência de busca, figurada no único poema de Schiller
que ela escolhe traduzir: "Não é uma ilusão fugaz/ com que se ofusca o
néscio. Mas/ o alto prenúncio, em nosso peito, de que o destino humano é mais perfeito".
Não por acaso, a poesia que abre a coletânea é a de Dante Alighieri, de
quem Henriqueta escolhe, além de sonetos da "Vita Nuova", a "Divina
Comédia". Não a dos cantos do "Inferno" ou do "Paraíso", mas a do
"Purgatório", que para ela é a casa do poeta. Pois, inserindo a própria
idéia de temporalidade e de diferença na eternidade imóvel da dicotomia Céu/ Inferno que antes fundava o imaginário religioso, o Purgatório representa a existência humana, e nela a poesia, como reino do fazer, em que se carregam as pedras da construção, em que se alertam os
sentidos para os mais tênues matizes, em que a imaginação transporta
rios e montanhas do cotidiano para uma geografia mais alta, em nome
da liberdade de criar e da vontade de comunhão. Essa liberdade e vontade fazem da poesia e da tradução práticas afins e complementares,
diálogo de diferenças em busca da utopia de uma língua universal, como queria Walter Benjamin, como Henriqueta Lisboa ensaia e os organizadores desse livro nos sugerem, nesses tempos de barbárie e apatia.
Celia Pedrosa é professora de teoria da literatura e literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense.
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