São Paulo, sábado, 12 de janeiro de 2002

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Democracia limitada

República do Capital
Décio Saes
Boitempo (Tel. 0/xx/11/3875-7285)
136 págs., R$ 22,00

JOÃO TRAJANO SENTO-SÉ

"República do Capital" reúne sete artigos escritos entre 1988 e 1999 e, como é comum em obras dessa natureza, há um certo desnível entre os textos. O objetivo central é o esforço de compreender as alterações ocorridas na política brasileira a partir do golpe de 1964 e as configurações de força dali decorrentes. Mesmo no texto de abertura, "Florestan Fernandes e a "Revolução Burguesa no Brasil'", e em "A Evolução do Estado no Brasil", que a princípio poderiam ser tomados como debates teóricos, são os rumos e modulações da consolidação da ordem burguesa no Brasil contemporâneo que constituem o foco privilegiado de análise.
Em "A Questão da Transição do Regime Militar à Democracia", de 1988, Saes questiona as teses, então em voga, de que o Brasil passava por um processo gradual de mudança do regime autoritário militar para uma democracia liberal. A partir da diferenciação conceitual, inspirada em Nicos Poulantzas, entre forma de Estado e regime político, o autor traça uma morfologia do Estado brasileiro, tentando evidenciar que, a despeito da convocação da Assembléia Constituinte e da passagem do governo para mãos civis, os militares se movimentavam de modo a garantir sua posição de poder tutelar na política brasileira. À tese de transição para a democracia é contraposta a idéia de que vivíamos uma reforma conservadora do regime militar. Embora as limitações da ordem democrática brasileira sejam indiscutíveis, o artigo, escrito há apenas 13 anos, soa datado, e sua hipótese central, improcedente.
"Estado e Classes Sociais no Capitalismo Brasileiro dos Anos 70/ 80" parece reunir dois artigos em um. Na primeira parte, Saes mostra como o capital financeiro ascende, ao longo do regime militar, à posição hegemônica no bloco de poder então instituído, deixando à burguesia industrial o papel de enunciador da ideologia dominante nas relações com as classes sociais subalternas. A reconstituição histórica, embora sintética, é bem informada e convincente.
Na segunda parte do artigo, também de modo sintético, são apresentadas as estratégias utilizadas pelo Estado para desorganizar as classes dominadas, bem enumerados alguns dilemas enfrentados pelos trabalhadores em seus esforços de reorganização, despendidos no processo de liberalização política desencadeado a partir da segunda metade dos anos 1970. Também aí o autor é convincente. Caberia, contudo, questionar se é pertinente encarar o Estado como uma espécie de entidade dotada de racionalidade estratégica suficientemente eficaz não só na determinação de suas finalidades, mas também na definição dos meios de lograr sucesso. A recusa acrítica dos postulados implícitos em tal leitura compromete seriamente o poder de convencimento da interpretação apresentada.
É quando se afasta um pouco da perspectiva tomada de Poulantzas que Saes encontra seus melhores momentos. São os casos de "Populismo e Neoliberalismo" e "A Política Neoliberal e o Campo Político Conservador no Brasil Atual". Nesses artigos, são abordados dois dos conceitos mais enxovalhados pela "vulgata" intelectual e pseudoacadêmica recente: populismo e neoliberalismo. No primeiro, deve-se notar o cuidado analítico na redefinição de um conceito, o de populismo, que de tão esgarçado passou a se referir às mais variadas práticas e performances políticas, a ponto de ter seu rendimento heurístico totalmente esvaziado.
No caso em questão, Saes lança mão de algumas das proposições de Richard Sennett sobre o declínio do homem público no mundo moderno para redimensionar aspectos do conceito de populismo na América Latina, como formulados nos idos dos anos de 1950 e 1960. Podem-se fazer ressalvas à nova versão proposta, mas não se deve negar a originalidade do resultado. Quanto ao conceito de neoliberalismo, há o cuidado de explicitar o que exatamente se quer designar com o termo, o que propicia uma leitura instigante sobre a política recente no Brasil. Esse é, aliás, o ponto alto do livro.
"Democracia e Capitalismo no Brasil: Balanço e Perspectivas", texto que o fecha, é um esforço de compreensão das razões para o "déficit de democracia" na história republicana brasileira. A ênfase argumentativa de Saes repousa nas singularidades do processo político que levaram à exaustão do pacto de poder vigente na República Velha em comparação às causas que precipitaram o fim da chamada democracia populista. Entretanto o que sobressai na análise é a percepção do autor de que não tivemos, nesses dois momentos, partidos sólidos, que organizassem efetivamente os interesses de classe. Diagnóstico já reiteradamente apresentado.
Além disso, o interesse de Saes pelo tempo presente e seus possíveis desdobramentos futuros fica evidente nesse ensaio. Os três desenlaces possíveis para os rumos políticos pós 1988 são sombrios: a emergência de um novo autoritarismo civil, a estabilização da democracia limitada ou a restauração do autoritarismo militar. Alternativas que, na prática, nada mais seriam do que a repetição diferenciada, uma vez que articuladas a um novo quadro econômico interno e mundial, de uma história política marcada pelo fracasso da consolidação de uma ordem republicana democrática.
O livro de Décio Saes reabre discussões e propõe leituras da história brasileira recente a partir de um marco teórico claramente definido. A indiscutível capacidade analítica do autor talvez ganhasse muito se ele assumisse os riscos de realizar combinações entre perspectivas teóricas distintas, alternativa que rejeita peremptoriamente como ecléticas. Talvez não haja outra saída para aqueles que desejem efetivamente recolocar a tradição marxista no patamar em que ela merece estar, revigorando sua capacidade de compreensão crítica de processos históricos singulares. Essa, porém, não é a escolha do autor, e escolhas, quando assumidas e postas abertamente ao debate, devem ser respeitadas.


João Trajano Sento-Sé é professor de ciências sociais da UERJ e autor de "Brizolismo - Estetização da Política e Carisma" (Ed. FGV/ Espaço e Tempo).


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