São Paulo, sábado, 12 de janeiro de 2002

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O estatuto do autor na antropologia

O nativo universal

Como Pensam os Nativos
Marshall Sahlins
Tradução: Sandra Vasconcelos
Edusp (Tel. 0/xx/11/3818-4008)
352 págs., R$ 47,00

LILIA MORITZ SCHWARCZ

A história deste livro é, de certa maneira, a narrativa de uma crise anunciada. Uma série de polêmicas recentes tem colocado em questão, na antropologia, o estatuto do autor e sua autoridade. Se a "modernidade" -entendida como a afirmação da crise de representação-tomou assento em diferentes lugares, foi nessa área, talvez em função da proximidade entre sujeito e objeto de análise, que esse movimento se transformou em debate de referência. Sob o rótulo de "pós-modernidade", uma gama ampla de tópicos e abordagens tomou a agenda intelectual, sobretudo a norte-americana, levando a repensar modelos até então bastante estabelecidos na tradição antropológica.
Em questão está agora o estatuto do conhecimento, a qualidade da investigação e também a responsabilidade política do cientista. Bem no centro do foco aparece o processo de descolonização, cenário onde o antigo objeto de análise se rebela, transforma-se em sujeito, cidadão do terceiro mundo preocupado com a transformação e narrativa de sua história.
Além do mais, altera-se -de reboque- a própria posição do antropólogo, que deixa de ser entendido como um especialista capaz de traduzir hábitos e costumes distantes dos seus. Por fim, e como decorrência lógica, a própria noção de cultura, antigo baluarte das escolas antropológicas, é atualizada, quase como uma essência definidora das sociedades. Cada povo conhece seu tipo de felicidade e a cultura vira legado da tradição ancestral, transmitida e reconhecida na língua e nas adaptações às condições de vida específicas.
Não é difícil notar como, por detrás de toda essa celeuma, paira um certo pânico pós-moderno e "tudo que é sólido parece se desmanchar no ar". Com isso, o próprio conceito de cultura passa a ser condenado, em nome do que até então se considerava como sua grande coerência, e a situação se torna no mínimo paradoxal: exatamente quando muitos observadores anunciam e garantem a existência de suas culturas, nesse momento são os antropólogos que pretendem negá-las.
Por certo não é o caso de entrar nessa seara escorregadia. Melhor é mostrar de que maneira o antropólogo Marshall Sahlins, da escola de Chicago, foi também atingido por esse debate, e alocado na condição de "representante de um país central". O livro "Como Pensam os Nativos" (publicado originalmente em 1995) relata os rumos de uma polêmica específica, mas é um bom pretexto para nomear algumas falácias dessa discussão que, em nome da autoria, coloca em questão qualquer narrativa.

Sobre o capitão Cook
O pivô da história é Gananathe Obeyesekere, um antropólogo nascido em Sri Lanka, que, em "The Apotheosis of Captain Cook" (1992), acusa Sahlins de perpetuar mitos do imperialismo ocidental, ao enxergar nos nativos havaianos apenas seres místicos, incapazes de produzir respostas pragmáticas. Diz Obeyesekere que a divindade de Cook é uma criação ocidental e não uma concepção local, uma vez que os havaianos seriam profundamente arraigados à sua realidade empírica e pouco afeitos a ilusões dessa ordem.
Igualado por Obeyesekere à figura do capitão Cook -até em seu papel de vilão-, Sahlins responde, dando a seu livro um tom de panfleto, como se o profissional ultrajado precisasse recuperar a "nobreza ofendida". Trocando em miúdos, o que está em pauta é a capacidade e o direito que se tem de fazer a história dos "outros" ou de traduzir um ponto de vista que não é o seu. No entanto, menos do que tomar partido, importa reter a reação de Sahlins, que ajuda a refletir sobre o lugar do antropólogo e a possibilidade que tem de emitir juízos.
O cerne da argumentação de Sahlins concentra-se em desqualificar o "estatuto de nativo universal" a que Obeyesekere se arvora e seu suposto básico de que todos "seus irmãos colonizados" são iguais, sobretudo em suas respostas racionais e pragmáticas. Nada mais oposto às interpretações de Sahlins, que, em suas obras, tem destacado a relação entre cosmologia e história, razão prática e simbólica, não como uma condição havaiana, mas antes como um estatuto universal e humano. A própria história seria governada pela reprodução impensada de códigos culturais, e aí estaria a grande contribuição de Sahlins, que em livros como "Ilhas de História" e "Historical Metaphors and Mythical Realities" buscou introduzir a noção de "estrutura histórica".
Os argumentos de Obeyesekere levariam, ainda, a outro tipo de etnocentrismo, uma vez que se os havaianos seriam só e sempre racionais; já os ocidentais, durante 200 anos, permaneceriam incapazes de realizar nada além de reproduzir mitos e supor que os nativos os tomavam por deuses. Assim, ao transformar a etnografia em fábula, Obeyesekere pinta "seus nativos" de "burgueses realistas", fazendo deles o que somos nós. O problema é que não se realiza boa história sem que se busque por racionalidades diversas: o pensamento havaiano não difere do empirismo ocidental por uma falta de atenção ao mundo, mas sim pela premissa ontológica de que a divindade e, de modo mais amplo, a subjetividade podem ser imanentes nele.
A partir das reações de Sahlins seria possível recuperar a aposta de Lévi-Strauss em "O Pensamento Selvagem" e sua reafirmação de uma humanidade plural em suas simbologias, mas universal nas estruturas elementares. Insistindo na tese de que os "nativos", como nós, não são só pragmáticos, racionais e instrumentais, em relação à realidade empírica, Sahlins destaca a importância da dimensão simbólica na análise política de qualquer cultura. Aos povos colonizados não sobra somente a "esperança" de deixar de pensar miticamente e passar a ter uma visão racional. Afinal, não há povo que não classifique e construa simbolicamente seus universos culturais.
Um senso aguçado da diferença tem levado a uma espécie de clamor de que cada um fale "por e em nome de sua cultura". Essa situação, por sua vez, tem gerado impasses e mudanças: cobra da produção antropológica um engajamento social e uma responsabilidade política. No entanto, se os textos são instrumentos de prestígio, as investidas de Sahlins permitem voltar à idéia de reversibilidade e pensar que, em vez da "coincidência", seria a "distância" a atitude mais salutar na reflexão do pesquisador. É a reflexibilidade que permite buscar não só o que é diverso, mas também as persistências, ou mesmo um alargamento da reflexão sobre o próprio sujeito do conhecimento.
De alguma maneira somos iguais quando exigimos que a cultura produza sentido para a experiência humana, e desse ponto de vista as construções se equivalem e a universalidade é fundamental. É essa perspectiva que se corre o risco de perder quando enfatizamos apenas e tão-somente a dimensão do poder, regendo e organizando a produção da cultura.
Apostar na idéia de que as culturas são diversas, umas em relação às outras, não significa cair em uma relatividade absoluta e impenetrável. A diretriz que singulariza a disciplina parece ser, ainda -e enquanto não se inventar fórmula melhor-, buscar uma matriz universal, por sob um grande e variado inventário. Como diz Sahlins, retomando Hegel, "que a coruja de Minerva alce vôo ao anoitecer" e nos conceda retroceder ao antigo suposto de que a humanidade é una, enquanto as culturas são muitas e diferentes em suas lógicas.


Lilia Moritz Schwarcz é professora do departamento de antropologia da USP e autora, entre outros, de "As Barbas do Imperador - D. Pedro 2º, um Monarca nos Trópicos" (Cia. das Letras).



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