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O estatuto do autor na antropologia
O nativo universal
Como Pensam os Nativos
Marshall Sahlins
Tradução: Sandra Vasconcelos
Edusp (Tel. 0/xx/11/3818-4008)
352 págs., R$ 47,00
LILIA MORITZ SCHWARCZ
A história deste livro é, de certa maneira, a narrativa de uma crise anunciada.
Uma série de polêmicas recentes tem colocado em questão, na antropologia, o estatuto do autor e sua autoridade. Se a
"modernidade" -entendida como a
afirmação da crise de representação-tomou assento em diferentes lugares, foi
nessa área, talvez em função da proximidade entre sujeito e objeto de análise, que
esse movimento se transformou em debate de referência. Sob o rótulo de "pós-modernidade", uma gama ampla de tópicos e abordagens tomou a agenda intelectual, sobretudo a norte-americana, levando a repensar modelos até então bastante
estabelecidos na tradição antropológica.
Em questão está agora o estatuto do conhecimento, a qualidade da investigação
e também a responsabilidade política do
cientista. Bem no centro do foco aparece
o processo de descolonização, cenário
onde o antigo objeto de análise se rebela,
transforma-se em sujeito, cidadão do terceiro mundo preocupado com a transformação e narrativa de sua história.
Além do mais, altera-se -de reboque- a própria posição do antropólogo,
que deixa de ser entendido como um especialista capaz de traduzir hábitos e costumes distantes dos seus. Por fim, e como
decorrência lógica, a própria noção de
cultura, antigo baluarte das escolas antropológicas, é atualizada, quase como
uma essência definidora das sociedades.
Cada povo conhece seu tipo de felicidade
e a cultura vira legado da tradição ancestral, transmitida e reconhecida na língua
e nas adaptações às condições de vida específicas.
Não é difícil notar como, por detrás de
toda essa celeuma, paira um certo pânico
pós-moderno e "tudo que é sólido parece
se desmanchar no ar". Com isso, o próprio conceito de cultura passa a ser condenado, em nome do que até então se
considerava como sua grande coerência,
e a situação se torna no mínimo paradoxal: exatamente quando muitos observadores anunciam e garantem a existência
de suas culturas, nesse momento são os
antropólogos que pretendem negá-las.
Por certo não é o caso de entrar nessa
seara escorregadia. Melhor é mostrar de
que maneira o antropólogo Marshall Sahlins, da escola de Chicago, foi também
atingido por esse debate, e alocado na
condição de "representante de um país
central". O livro "Como Pensam os Nativos" (publicado originalmente em 1995)
relata os rumos de uma polêmica específica, mas é um bom pretexto para nomear
algumas falácias dessa discussão que, em
nome da autoria, coloca em questão
qualquer narrativa.
Sobre o capitão Cook
O pivô da história é Gananathe Obeyesekere, um antropólogo nascido em Sri
Lanka, que, em "The Apotheosis of Captain Cook" (1992), acusa Sahlins de perpetuar mitos do imperialismo ocidental,
ao enxergar nos nativos havaianos apenas seres místicos, incapazes de produzir
respostas pragmáticas. Diz Obeyesekere
que a divindade de Cook é uma criação
ocidental e não uma concepção local,
uma vez que os havaianos seriam profundamente arraigados à sua realidade empírica e pouco afeitos a ilusões dessa ordem.
Igualado por Obeyesekere à figura do
capitão Cook -até em seu papel de vilão-, Sahlins responde, dando a seu livro um tom de panfleto, como se o profissional ultrajado precisasse recuperar a
"nobreza ofendida". Trocando em miúdos, o que está em pauta é a capacidade e
o direito que se tem de fazer a história dos
"outros" ou de traduzir um ponto de vista que não é o seu. No entanto, menos do
que tomar partido, importa reter a reação
de Sahlins, que ajuda a refletir sobre o lugar do antropólogo e a possibilidade que
tem de emitir juízos.
O cerne da argumentação de Sahlins
concentra-se em desqualificar o "estatuto
de nativo universal" a que Obeyesekere
se arvora e seu suposto básico de que todos "seus irmãos colonizados" são iguais,
sobretudo em suas respostas racionais e
pragmáticas. Nada mais oposto às interpretações de Sahlins, que, em suas obras,
tem destacado a relação entre cosmologia
e história, razão prática e simbólica, não
como uma condição havaiana, mas antes
como um estatuto universal e humano. A
própria história seria governada pela reprodução impensada de códigos culturais, e aí estaria a grande contribuição de
Sahlins, que em livros como "Ilhas de
História" e "Historical Metaphors and
Mythical Realities" buscou introduzir a
noção de "estrutura histórica".
Os argumentos de Obeyesekere levariam, ainda, a outro tipo de etnocentrismo, uma vez que se os havaianos seriam
só e sempre racionais; já os ocidentais,
durante 200 anos, permaneceriam incapazes de realizar nada além de reproduzir
mitos e supor que os nativos os tomavam
por deuses. Assim, ao transformar a etnografia em fábula, Obeyesekere pinta
"seus nativos" de "burgueses realistas",
fazendo deles o que somos nós. O problema é que não se realiza boa história sem
que se busque por racionalidades diversas: o pensamento havaiano não difere
do empirismo ocidental por uma falta de
atenção ao mundo, mas sim pela premissa ontológica de que a divindade e, de
modo mais amplo, a subjetividade podem ser imanentes nele.
A partir das reações de Sahlins seria
possível recuperar a aposta de Lévi-Strauss em "O Pensamento Selvagem" e
sua reafirmação de uma humanidade
plural em suas simbologias, mas universal nas estruturas elementares. Insistindo
na tese de que os "nativos", como nós,
não são só pragmáticos, racionais e instrumentais, em relação à realidade empírica, Sahlins destaca a importância da dimensão simbólica na análise política de
qualquer cultura. Aos povos colonizados
não sobra somente a "esperança" de deixar de pensar miticamente e passar a ter
uma visão racional. Afinal, não há povo
que não classifique e construa simbolicamente seus universos culturais.
Um senso aguçado da diferença tem levado a uma espécie de clamor de que cada um fale "por e em nome de sua cultura". Essa situação, por sua vez, tem gerado impasses e mudanças: cobra da produção antropológica um engajamento
social e uma responsabilidade política.
No entanto, se os textos são instrumentos
de prestígio, as investidas de Sahlins permitem voltar à idéia de reversibilidade e
pensar que, em vez da "coincidência", seria a "distância" a atitude mais salutar na
reflexão do pesquisador. É a reflexibilidade que permite buscar não só o que é diverso, mas também as persistências, ou
mesmo um alargamento da reflexão sobre o próprio sujeito do conhecimento.
De alguma maneira somos iguais quando exigimos que a cultura produza sentido para a experiência humana, e desse
ponto de vista as construções se equivalem e a universalidade é fundamental. É
essa perspectiva que se corre o risco de
perder quando enfatizamos apenas e tão-somente a dimensão do poder, regendo e
organizando a produção da cultura.
Apostar na idéia de que as culturas são
diversas, umas em relação às outras, não
significa cair em uma relatividade absoluta e impenetrável. A diretriz que singulariza a disciplina parece ser, ainda -e
enquanto não se inventar fórmula melhor-, buscar uma matriz universal, por
sob um grande e variado inventário. Como diz Sahlins, retomando Hegel, "que a
coruja de Minerva alce vôo ao anoitecer"
e nos conceda retroceder ao antigo suposto de que a humanidade é una, enquanto as culturas são muitas e diferentes
em suas lógicas.
Lilia Moritz Schwarcz é professora do departamento de antropologia da USP e autora, entre outros, de "As Barbas do Imperador - D. Pedro 2º, um
Monarca nos Trópicos" (Cia. das Letras).
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