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Detento descobre a literatura na prisão
A ciência da tortura
Memórias de um Sobrevivente
Luiz Alberto Mendes
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/3846-0801)
478 págs., R$ 32,00
SERGIO ADORNO
Está se tornando habitual que "delinquentes" ou "ex-delinquentes", presos
ou egressos de estabelecimentos prisionais, escrevam autobiografias. Nestas, relatam suas histórias pessoais, perfis de
carreira moral nos crimes, contatos com
o aparelho repressor, amarguras, sofrimentos, humilhações, privações, violências a que foram submetidos ao longo de
sua existência. Os relatos desfilam nomes, lugares, situações, cenários próprios
aos bas-fonds da sociedade. Descrevem
aventuras, ousadias, vidas compartilhadas na companhia dos sem lei. Listam crimes, nomeiam seus algozes, muitos dos
quais agentes da ordem destituídos de escrúpulos, corruptos, igualmente violentos.
Sob essa perspectiva, "Memórias de um
Sobrevivente" não difere dos demais relatos. Nele há pouco que não se saiba.
Não obstante "tudo o que se sabe" é algo
sobejamente desconhecido do grande
público, a sociedade informada dos cidadãos que se encontram do lado de cá das
grades. De fato, dizem que a história não
se repete. Aqui não é o caso.
Como alguns -que parecem muitos- jovens de sua classe social, o autor,
nascido no seio de uma família pobre, habitante do bairro paulistano Vila Maria
baixa (cerca de 50 anos atrás moradia regular de membros das classes operárias),
abandona sua casa aos 12 anos e inicia
uma carreira de crimes. Em parte, estimulado por conflitos familiares e domésticos, nutridos pelo pai que (embora trabalhador, em geral desempregado e alcoolizado) o espancava regularmente
diante de uma mãe (trabalhadora, honesta) que a tudo assistia impassível porque
impotente. Em parte, atraído pelas luzes e
cores de uma cidade, São Paulo no início
dos anos 60, que se desenvolvia freneticamente na direção de uma megalópole.
Daí por diante, contam-se crimes; revela-se o entra-e-sai das agências de controle social, aparentemente destituídas de finalidades sociais; deixa-se entrever a
construção de identidades virtuais já que
a real se perdeu nas esquinas e nos registros policiais; se descreve o caráter fortuito das rotinas da delinquência, sempre a
mesma: furto, inserção em quadrilhas,
roubo, partilha, gastos incontáveis, mulheres, drogas, evolução para crimes cada
mais violentos, inclusive homicídio, fugas, encarceramento. O círculo sempre se
repetindo, como se encerrado no circuito
de um destino inexorável e inquebrantável. Tudo seria previsível não fosse o encontro do autor com a literatura, ponto
de inflexão que torna o livro distinto dos
demais.
Autobiografia pungente
"Memórias de um Sobrevivente" não se
detém na mesmice. Trata-se, antes de tudo, de autobiografia pungente, sobre a
dor e o sofrimento, sobre a angústia de viver entre parênteses nos estreitos limites
da desordem social e urbana, eivada de
reflexão pessoal e de imagens literárias.
Em primeiro lugar, há que se destacar
uma certa nostalgia que percorre o relato
através da geografia de uma São Paulo
que não mais existe: a da Galeria Metrópole, tradicional lugar de interseção dos
distintos escapados da ordem, bandidos,
prostitutas, pequenos traficantes, desocupados gerais, jovens moderninhos de
classe média revoltados com suas famílias, espaço que se estendia da avenida
São Luís, ao lado da Biblioteca Municipal,
passando pela Praça da República, avenidas São João e Rio Branco, o bairro de
Santa Ifigênia e alcançando a estação da
Luz. Àquela época, um espaço de profusão de emoções e de sentimentos, de sexo
abundante, de encontros ocasionais e duradouros, de laços que se forjam nas ruas
e se formalizam no interior das instituições de controle social.
Não apenas a cidade parece próxima,
apesar de esquecida no tempo. Para leitores contumazes da crônica policial e para
aqueles que se dedicam, há anos, aos estudos sobre violência, crime e justiça, não
há como não se deleitar com a galeria de
tipos humanos familiares: o assistente social generoso, do antigo Recolhimento
Provisório de Menores, o famigerado
RPM, que procura a seu modo restituir
um pouco de humanidade àqueles que
parecem moralmente excluídos da comunidade humana; os delegados durões
que fizeram escola na polícia civil; um ex-diretor da Casa de Detenção que diariamente, após a chegada do bonde de presos, proferia rotineiras preleções morais
contra a delinquência e o crime às quais
todos deveriam se resignar.
Mas é a partir do encontro com a literatura que o livro ganha em densidade.
Cansado de tantas aventuras, de intercalar a vivência dominada no interior das
instituições fechadas, que vez ou outra
lhe permitia se concentrar no trabalho,
com as aventuras e fugas espetaculares
que a liberdade provisória lhe proporcionava, passou por acaso a frequentar um
admirável mundo novo. Em pouco tempo, estava devorando livros, aprendera a
amá-los, a colecioná-los, a recompô-los
quando destruídos pela fúria das operações "pente fino" nas celas -nas palavras do autor, "a cultura, na prisão, era
sempre a primeira a sofrer agressões".
Leu parte da obra de Dostoiévski, Tolstói, Górki, Steinbeck, Cronin, Scott Fitzgerald, Maupassant, Walter Scott, Stendhal, Balzac, além dos clássicos da literatura brasileira. Aproximou-se de companheiros que também desfrutavam dos
mesmos hábitos. Compartilhou o gosto
pela filosofia com um companheiro que
dispunha da coleção completa, primeira
edição, de "Os Pensadores". A aventura
agora era outra: viajou de Aristóteles a
Merleau-Ponty. O resultado não podia
ser outro: afastou-se progressivamente
do mundo do crime, deixou pouco a pouco de ser o sujeito insensível, exasperado,
voltado para a satisfação imediata das
vontades e das paixões. Tornou-se mais
introspectivo, reflexivo, mais tolerante
para com as adversidades da vida e sobretudo mais compreensivo com relação
ao mundo social em seu entorno.
Certamente, é o encontro com a literatura que lhe facultará os comentários surpreendentes que vão aparecendo, inicialmente de modo tímido, mais frequentes à
medida que se aproxima o desfecho da
autobiografia. Não há como permanecer
indiferente às sucessivas aproximações
entre a lógica hierárquica das prisões e
aquela que vige na sociedade mais ampla.
À aspereza com que descreve a resistência à tortura e o enfrentamento dos suplícios, resistência qualificada como ciência
dos sobreviventes. Aliás, é nos inúmeros
relatos de tortura que o livro ganha em
intensidade dramática ("um bom torturador nunca é emotivo"). À jocosidade
com que se refere à polícia e aos policiais
que facilitavam a ação dos punguistas toda a vez que garoava na cidade ("a polícia
não gosta de tomar chuva e se esconde").
À sensibilidade de suas observações sociais quando descobre cenários de pobreza nas fronteiras da cidade ainda mais
dramáticos ("sempre tivera a curiosidade
de saber como viveriam as pessoas mais
pobres que eu e meus pais"). Sobrevivente da memória, a prisão somente poderia
ter violentado sua natureza.
Sergio Adorno é professor do departamento de
sociologia da USP.
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