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Glauber na TV
A Épica Eletrônica de Glauber
Regina Mota
Editora UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4650)
226 págs., R$ 21,00
ALFREDO MANEVY
O programa de televisão "Abertura" foi ao ar entre 1979 e 1980, pela TV Tupi, alcançando altos índices de audiência e causando grande
preocupação no governo militar. "A Épica Eletrônica de Glauber"
não revela apenas a contribuição de Glauber Rocha para as eficientes
e sucessivas polêmicas do programa "Abertura", mas acaba produzindo a seu modo uma outra espécie de abertura, muito oportuna,
entre os estudos de cinema e televisão no Brasil.
A primeira qualidade do trabalho de Regina está em como não se
contamina com o que ela chama de "folclore que identificava (Glauber) com os gênios delirantes, aos quais devemos reverência por serem identificados como tais". A estratégia política de Glauber não é
investigada fora da forma televisiva, mas na linguagem do programa, não reduzindo o gesto glauberiano ao espalhafatoso ou ao psicológico. Regina Mota caminha assim com enorme segurança pelo
território político um tanto movediço do período, sem cair nas armadilhas do próprio Glauber (antes de tudo um estrategista que, sob
o álibi do transe, costumava facilmente passar de objeto para sujeito,
de entrevistado para entrevistador).
Regina Mota aponta como a TV foi cara à formação cinematográfica de Glauber. Se ele pôde mais tarde abraçar a televisão sem temores ou purismos, é porque a TV já estava na pauta de Glauber, bem
como dos cineastas modernos entre o fim da guerra e os cinema novos, como Robert Bresson, Fritz Lang, Orson Welles, Jacques Tati,
Roberto Rosselini. Para o crítico Serge Daney, citado por Mota, "todos eles, de perto ou de longe, sabendo ou não, anteciparam aquilo
que se tornou ordinário na televisão". Influência capital na fundação
do cinema novo brasileiro, Rosselini tinha grande interesse pela televisão já em 1950, em coerência com os princípios do neo-realismo:
filmar em locações reais, com atores não profissionais e luz natural,
o "modus operandi" básico das reportagens televisivas.
Glauber, influenciado pelo neo-realismo, herdaria também a duração do plano como estratégia para extrair a verdade do acontecimento (muito claro em "Câncer"). O uso do som direto em "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" havia sido sugerido a
Glauber por Jean Renoir, lembra Mota. As câmeras leves e com
maior mobilidade seriam viabilizadas pela demanda de reportagens
da nascente televisão: desse encontro, o cinema seria enriquecido
com as escolas do cinema direto e do cinema verdade. Essa abertura
cinema-TV seria a antecipação do que veio a ser o "Abertura". São
histórias subterrâneas do cinema que podem lançar luz sobre o atual
(e anacrônico) apartheid entre cinema e TV no Brasil.
Em 1950, como mostra Regina, a televisão estava aberta ao cinema,
e os cineastas eram os primeiros interessados na especificidade de
televisão: a TV poderia executar melhor algumas vocações que foram menosprezadas pelo cinema ao longo de sua história, como o
didatismo e a atualidade.
A verdade, para o cinema moderno, era uma questão de método, e
este consistia em atracar a verdade, forçá-la no momento mesmo da
filmagem, no "ao vivo", que pode ser radicalizado na televisão. A visão quase franciscana de cinema que marcara o neo-realismo seria
mais tarde transfigurada no Brasil pela estética da violência do Cinema Novo, entendida como um traço capaz de explicitar as relações
de poder no país, entre o cineasta e o povo, a câmera e a verdade, o
centro e a periferia, tensões que marcam o estilo glauberiano no cinema. Dezessete anos depois, ao ver Glauber desestabilizando, irritando seus entrevistados, jornalistas perguntavam ao cineasta se isso era jornalismo. Glauber, em vez de meramente informar, procurava revelar as tensões internas ao mundo jornalístico (que entrevista não é um jogo de forças?) e dos papéis sociais por trás do culto à
personalidade, abrindo um debate de idéias em torno da mídia como espaço público.
De um lado, como mostra o livro, foi importante que os cineastas
reconhecessem a eficiência comunicativa da TV. Mas, para que a
equação do "Abertura" se efetivasse, era preciso que alguns "homens de TV", no caso o diretor geral Fernando Barbosa Lima, tivessem faro para a força criativa, o poder de polêmica e o talento dos
que vinham de fora da TV. O livro recupera a importância do "Jornal de Vanguarda", que em 1960 reunia na TV Excelsior o primeiro
time de jornalistas e intelectuais do Rio de Janeiro num programa
que se tornou reconhecido internacionalmente (sendo usado em
aulas de MacLuhan). Com a censura, o diretor geral Barbosa Lima
partiria para a publicidade, só retornando com a distensão iniciada
no governo Geisel, e criando "o que poderíamos chamar de metalinguagem televisual da abertura democrática. Pela primeira vez, depois do longo período de censura, um programa abordava aspectos
políticos da realidade brasileira", afirma Regina Mota.
O "Abertura" influenciou gerações de videomakers, e também as
aparições de Arnaldo Jabor, por vezes em versões que domesticaram a matriz de Glauber, o que torna este livro uma contribuição
importante para a reflexão sobre a atual conjuntura da TV no Brasil,
e para atuação necessariamente mais ampla e embasada do "media
criticism".
"A Épica Eletrônica" analisa um raro momento de cruzamento entre as questões de cinema, televisão e jornalismo, no Brasil. O lançamento deste livro ocorre num momento em que tal cruzamento
vem novamente entrando em pauta, seja pela entrada das emissoras
no mundo do cinema, seja pelo interesse público cada vez maior em
discutir as distorções causadas pelo jornalismo, em que as relações
de poder reveladas por Glauber muitas vezes não estão abertas ao
público, mas permanecem lá. A televisão brasileira está deixando de
ser um continente inabordável, e será menos ainda sob a luz do
Glauber de "Abertura".
Alfredo Manevy é doutorando em cinema na Escola de Comunicações e Artes da
USP.
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