São Paulo, Sábado, 12 de Junho de 1999 |
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Sonho dos pobres, desejo uterino
FÁTIMA TOLEDO
Em seguida, o autor procura entender o processo de elaboração do texto, a emissão/ recepção do poema e a maneira pela qual se deu o contato do poeta anônimo com essa "herança multicultural". A utopia da abundância fornece-lhe as pistas para investigar por que e para quem o texto foi escrito. O sonho da mesa farta e rica, negação de uma realidade de fome e miséria, pode ser compreendido em virtude dos rigores vividos na Alta Idade Média, até o século 11. Num plano mais profundo, porém, Hilário Franco vê na ausência de alimentos considerados banais do banquete cocaniano -como o pão- uma crítica ao processo de clericalização que ocorria naquele momento, que fazia da comunhão com hóstias e vinho um privilégio dos sacerdotes, enquanto aos leigos restava a comunhão com pão. Essa ausência pode indicar, ainda, uma faceta aristocrática do autor/receptor do "fabliau", mas é igualmente possível associar a autoria do poema ao imaginário camponês. Esse mesmo tipo de análise será empregado para tratar dos temas da ociosidade, juventude e liberdade. Sociedade caracterizada pelas condições de trabalho árduas e rigorosa moral sexual exigida pelas autoridades religiosas, o mito da Cocanha certamente é, em primeiro lugar, uma compensação às vicissitudes históricas vividas pelo homem medieval. O autor, porém, levando ao limite a análise interpretativa, examina inúmeras possibilidades de autoria e público do poema. Terra da ociosidade, onde o tempo não passa e "todos se mantêm com 30 anos", a inexistência do tempo na Cocanha pode ser explicada como vestígio da herança multicultural do poema, resultado do entrecruzamento das culturas pagã, germânica e cristã, que permitia ao homem medieval sentir passado, presente e futuro como momentos simultâneos. Terra das festas, a Cocanha pode ser uma forma de viagem mística ao além, o relato de um sonho, a fantasia do retorno ao útero ou a abolição da oposição natureza/ cultura. Terra da juventude, o país imaginário pode significar a visão idealizada que um cruzado tinha de Jerusalém, ou a alegoria do rito iniciático ao qual se submetiam os jovens artesãos, ou ainda uma crítica à própria juventude. Terra da liberdade, a Cocanha nega o fortalecimento dos poderes monárquico e eclesiástico, ao mesmo tempo que pode significar uma visão hedonista da divindade ou uma crítica à vida monástica e ao ascetismo cristão. Hilário Franco analisa ainda as versões tardias do poema, sobretudo as realizadas nos séculos 16 e 17, quando o mito da Cocanha conhece sua maior difusão. Aqui, debate principalmente com Jean Delumeau ("La Mort des Pays de Cocagne", Publications de La Sorbonne, 1976), para quem as utopias modernas são essencialmente materialistas, não propondo nenhum outro ideal além da felicidade sobre a terra. Não disponho de espaço para retomar a argumentação de Hilário Franco, mas apenas seu resultado. Para ele, também a Cocanha moderna pode não ser apenas o "sonho dos pobres", como quer Delumeau, mas também o "sonho uterino" de unidade, de retorno a uma condição primordial da humanidade. O livro, como um todo, é bastante audacioso e original, combinando erudição, domínio das fontes e talento literário. Hilário Franco Jr. faz de "Cocanha" uma obra inspiradora para todos os que estudam a história do imaginário e as relações entre a cultura popular e a erudita. Fátima Toledo é pós-graduanda do departamento de história da USP. Texto Anterior: Glauco Arbix: Metamorfoses do corporativismo Próximo Texto: Jerusa Pires Ferreira: Sermonários do diabo Índice |
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