São Paulo, Sábado, 12 de Junho de 1999
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Sermonários do diabo



Novela de cavalaria do século 15 encontra boa tradução
JERUSA PIRES FERREIRA


Não há dúvida de que a novela de cavalaria, na Península Ibérica, em fins do século 15 e durante o 16, foi em devidas proporções uma literatura de grande público, uma espécie de literatura de massas, que atraiu um número sempre crescente de leitores e ouvintes. Para perceber isso, basta que se acompanhem, por exemplo, as listas de novelas, o desenvolvimento de certos núcleos, como o "Amadis" ou os "Palmeirins" e seus continuadores, nas tipografias ibéricas.
Para chegar ao processo maduro de sua crítica, teve Cervantes de vivê-las, tão intensamente como poucos. "Dom Quixote" é síntese e, ao mesmo tempo, crítica, tema, desenvolvimento e sua própria glosa. O famoso capítulo sexto, da queima dos livros, em que o autor escolhe para salvar o "Tirant lo Blanc" e o "Palmeirim de Inglaterra" é, de fato, muito sugestivo para a percepção do que significam essas novelas, enquanto realizações muito especiais, no seu âmbito e no da literatura em geral.
Pode-se dizer que o "Tirant" representa o desenvolvimento de um estilo peculiar, incorporando princípios de uma construção elaborada e "realista", e o "Palmeirim de Inglaterra" é uma novela galante, que incorpora à paisagem idealizada tópicos da paisagem portuguesa, desenvolvendo-se num grande equilíbrio entre fabulação e corpo de doutrina. Também há, no referido capítulo de Cervantes, uma questão fundamental: a relação permanente com a censura. Estão presentes nos princípios de composição desses textos várias maneiras de disfarçar heterodoxias, de incorporar sensualidade, lançando-se mão de todo um corpo exemplar e doutrinário, inclusive como prática de camuflagem. Curioso é que elas eram estimuladas e condenadas ao mesmo tempo, chamadas de sermonários do diabo, perseguidas "por conter falsa edificação e desvario", conforme palavras dos censores, mas, ao mesmo tempo, traziam uma desejada unidade de princípios e a conversão enquanto meta.
"Tirant lo Blanc" já tinha sido impresso duas vezes, nos fins do século 15, em Valência e Barcelona. Dedicada a d. Fernando de Portugal, trata-se de um verdadeiro doutrinário do cavaleiro andante. A obra está ligada aos princípios básicos daquilo que constitui o cerne de uma novela de cavalaria, mas desenvolve um modo próprio, um estilo, que compatibiliza, como no "Quixote", o ideal cavaleiresco e a visão realista, incluindo a demonstração de um intenso erotismo.
Trata-se, no entanto, de um texto de cruzada, de conversão, em que o mouro é tratado com crueldade, em ações que compreendem até o extermínio. Basta que nos lembremos do episódio em que tem destaque o Rei Eremita, que determina abrirem valas em seu campo e pede à condessa que lhe mande dois barris de estrepes de cobre. Manda espalhar os estrepes na valeta, a fim de que espetassem os pés dos mouros à sua passagem: "Foram assim nesse dia mortos e cremados (sic) 22 mil mouros".

Tirant lo Blanc
Joanot Martorell Tradução: Claudio Giordano Prólogo: Mário Vargas Llosa Ed. Giordano (Tel. 011/240-0684) 920 págs., R$ 48,00



Quando li essa novela há muitos anos, fiquei muito impressionada com a conquista de uma estrutura curiosa, em estilo epistolar, criando uma dramaticidade, em modulação própria. Essas formas dialogantes, escritas e oralizadas fazem dela um grande diálogo (ainda que muitas vezes o diálogo seja um monólogo). Mas pode-se falar de teatralidade, de situações que colocam falas e personas em confronto, tirando disso grande efeito. Lembro aqui do texto de Vargas Llosa, no livro "El Combate Imaginário" ("As Cartas de Batalha de Joanot Martorell"), dele e de Martin de Riquer: ali a palavra é tratada como uma ocupação de rivais.
É extraordinário o esforço e muito louvável a iniciativa de Claudio Giordano, tradutor e editor. Afeita à linguagem dessas novelas nas edições de sua própria época, foi difícil começar a lê-las em linguagem mais contemporânea. Devo dizer, porém, que as soluções de Giordano são ótimas, simples, precisas e denotam grande sensibilidade. Além do mais, uma iniciativa assim possibilita que novos leitores tenham acesso a esse antigo e sempre novo meio.
Interessante é observar a relação dessas obras com o mundo da novelística latino-americana contemporânea: "O Amadis de Gaula" está presente em "A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e Sua Avó Desalmada", de Gabriel García Márquez. Não é por acaso que ali os heróis míticos, os fantasmas vivos são chamados Amadis 1º e 2º. Aponta-se, em toda parte, o interesse de Vargas Llosa por "Tirant lo Blanc" e a identificação desse autor com as qualidades criativas e as cenas de alcova. Aliás, é muito enriquecedor o prólogo de Llosa, publicado por Giordano nesta edição brasileira.
Repito que deve ter calado bem fundo em Cervantes, a par da idealização cortês, a presença de um conjunto realista. Note-se que alguns dos textos cavaleirescos se constroem tirando grande efeito dessa cisão e conflito. No caso do "Palmeirim de Inglaterra", seus dois heróis, o principal e o coadjuvante, cumprem diferentes papéis. O Palmeirim realiza o padrão cortês, e o cavaleiro Floriano do Deserto é um terrível galã para quem "donzellas são avianda mui comezinha". Eles as conquistam a todas. No corpo de um ideário platônico e da consideração do amor como ofício sagrado irrompe um amor ao corpo e aos prazeres da carne, como tão bem expressou Camões em seu auto "Filodemo" (e que aqui cito de cor): "O que eu vos quero me engana, mas o que desejo não". Assim, e ainda mais no "Tirant", quando o herói chega ao quarto da princesa, e ela pede que ele lhe tire a roupa e cate as pulgas, o que nos deixa também entrever, por um lado, uma prática corrente e, por outro, uma pitada de ironia por conta do autor.
Podemos falar aí, como em outros textos cavaleirescos, do exagero, dos golpes e feridas mortais, dos desmaios de amor e prantos sem medida, da palidez ou do rubor. Pulsões e lágrimas, ao lado do conjunto de preceitos moralizadores. Vale a pena, um tanto aleatoriamente, percorrer capítulos como: "O Imperador Conforta Tirant", do mesmo modo a sugestiva fala da personagem tão bem demarcada e rica que é "Prazer de Minha Vida" ou "A Carta de Tirant à Princesa" ou ainda a resposta de Tirant à proposta da "Viúva Repousada".
São notáveis, como se pode ver, os nomes dados aos personagens. Aliás, o processo de nominação das novelas de cavalaria merece um capítulo à parte. Também os heroísmos, as batalhas, os torneios, os golpes mortais. Como no "Palmeirim", que é uma novela dos meados de 1500, a presença marcante de Constantinopla. Finalmente, mantendo os propósitos de uma novela de cruzada, a paz se faz com os turcos. Aqui, como em outra parte, unem-se a paisagem imaginária e a paisagem vivida e concreta, com referências bem diretas ao mundo arturiano, mas também à reconquista de territórios, aos turcos, ao império bizantino. Sem fugir dos estereótipos, vai alcançando toda uma estética heráldica, além da perfeição de cores e arranjos da natureza-paisagem e de indumentária.
Encontra-se em "Tirant" uma espécie de chave para o posterior desenvolvimento desse veio novelístico, para a pujança do gênero e o pleno curso dos livros ibéricos de cavalaria. A leitura que dela podemos fazer agora, em português, implica em conhecimento, em reconhecimento e prazer renovado: uma conquista de todos nós por mérito desse editor singular.


Jerusa Pires Ferreira é professora da USP, da Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP) e autora de "Cavalaria em Cordel" (Hucitec), entre outros.


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