São Paulo, sábado, 12 de agosto de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Na contramão da oficialidade, exposições relembram relações com a África
Um idioma local

LILIA MORITZ SCHWARCZ

Não foi dessa vez que os 500 anos viraram só efeméride. Pretextos não faltavam: a mágica dos números unia a mística de final de século com a oportunidade de lembrar o tão (mal) falado descobrimento. Além disso, se a aproximação da data dava ensejo à retomada do surrado debate sobre a identidade nacional, já no caso da Mostra do Redescobrimento evidenciou-se a distinção do projeto em relação às atividades apenas laudatórias. Uma exibição como essa poderia optar pela história, que possui um poder curativo: nada como uma boa memória para lembrar um tanto e esquecer mais. Seria possível também elencar grandes momentos e dar à celebração aquilo que ela gosta: a elevação daquilo que de antemão se sabe e espera ver.
Mas, se estavam representadas escolas e artistas reconhecidos, a mostra teve a coragem de impor um perfil inusitado, contrapondo-se à visão dualista, que opõe vencedores a vencidos, como se a cultura fosse uma simples subtração de dois menos dois. Ao contrário, enfrentou-se a ambiguidade das relações sociais que se construíram desde os tempos coloniais e que fizeram com que, nas próprias formas de representação, estivessem presentes repulsa e assimilação.
Marcado por uma mistura de povos que, compulsoriamente, conviveram em condições desiguais, formou-se no país um certo idioma próprio. No entanto, se essa é a nação das práticas mestiças, exaltadas como tal, é também o local da aplicação de um racismo silencioso, que escapa da lei para ganhar a intimidade. E aí está um dos grandes méritos de "Negro de Corpo e Alma", que abandona a fórmula fácil da exotização. Contando com a acertada curadoria de Emanoel Araujo, a mostra não se limita ao suporte das linguagens plásticas ou dos documentos históricos.
Adentra esse imaginário feito de ambivalências, que se inscrevem nos detalhes, nos objetos e espaços pretensamente inocentes: no banco que é suportado por um negrinho, na propaganda de sabão que brinca de limpar o pretume, nos bibelôs que trazem mulatos com dentes brancos. Pequenos sinais de uma sociabilidade que sempre se pautou por contratos nada previsíveis, que comportam exclusão e inclusão, naturalizando relações sociais assimétricas como se fossem desígnios dos céus. Assim, enquanto o argumento do poder explica o enraizamento de hierarquias sociais, não dá conta do universo criativo que compõe a mostra.
"Olhar o Corpo" deflagra a percepção de como o negro, vindo de longe, representou o outro, alma feita para separar, mas em que se encontra alguma humanidade. Aqui está presente o olhar estrangeiro, que descobre no corpo o local seguro para a inscrição da diferença. Em "Olhar a Si Mesmo", a lente capta a visão do próprio artista negro, que acaba por se mimetizar na percepção que vem de fora e revela, na dramaticidade da tela, como só resta para si o avesso do avesso. Nas fotos que retratam o negro à imagem dos brancos, na pincelada de Rafael Pinto Bandeira, entre tantos outros, escapa uma solução difícil: os poucos espaços que restam para aqueles que, entrando nas estruturas de uma sociedade branca, mal se separam delas.
Mas é o terceiro módulo -"Sentir a Alma"- que enfrenta a questão de perto, indicando como aqui desembarcaram outras cosmologias. Mais uma vez, é na linguagem do corpo que deuses estranhos, incorporados nos próprios filhos, vêm cantar e dançar na terra entre os mortais. Nas festas, nos santos de pau oco, nos batuques, uma África repatriada se encena. Como se vê, a tarefa pede fôlego, isso sem esquecer do catálogo, que congrega especialistas, documentos, depoimentos, tudo conduzido pela escrita iluminada de Maria Lucia Montes.

A África no Brasil
A exibição evita biologizar o recorte. Como revela Kabengele Munanga, um dos responsáveis pela exposição "Arte Afro-Brasileira", o universo artístico comporta nomes que, independente de sua origem étnica, participam do grupo por opção política, religiosa ou estética. É por isso que ambas as exibições trazem artistas negros -como Mestre Didi, Agnaldo dos Santos e o próprio Emanoel Araujo- e brancos. Verger, Portinari, Caribé, Segall transladam orixás telúricos ou captam costumes dessa população que, utilizando uma memória que não tem tempo ou lugar, redesenha a África no Brasil.
Não se falou dos objetos africanos que completam a exposição afro-brasileira, mas o que aqui está parece suficiente para indicar como são inúmeras as trilhas dessas várias visões de mundo. As duas exibições, de tão próximas, muitas vezes se duplicam e, nesse caso, o melhor é completar o quebra-cabeças e seguir os artistas. Outra dificuldade está em reter o argumento de "Negro de Corpo e Alma". De tão horizontal a exposição se torna, por vezes, enciclopédica: mérito e armadilha, desenha-se um verdadeiro léxico, mas em alguns momentos resta complicado o percurso, talvez reafirmado em outro módulo, vizinho de edifício e intenções.
É na mostra sobre "Arte Popular" que vemos como esse universo colorido, repleto de uma alegria que se distancia do dia-a-dia desse povo pobre e sofrido, não se resume a um reflexo frágil da política. O que parece lugar terminal -uma lâmpada velha, um toco de madeira, uma lata vazia- vira matéria-prima, ponto de partida para a sofisticação. Essa não é uma mostra da estética da miséria: afirma e faz um tributo à capacidade humana de inventar e dar beleza. Dividida em cânones paralelos aos utilizados na arte erudita, a exposição enche os olhos com tantos detalhes, dispostos tal qual procissão. Aí estão as esculturas religiosas, os ex-votos, as carrancas de barco, as imagens de santeiros que se repetem, sem data e espaço próprios. Expressão de uma linguagem local, esses objetos dialogam com obras que remetem a um passado remoto e aos arcaísmos de uma estrutura compartilhada.

O espaço da festa
Por outro lado, na definição do curador Emanoel Araujo, destacam-se as permanências, momentos em que a comunidade se organiza criando artefatos, movida por uma vontade espiritual ou apenas lúdica. Em foco, o espaço da festa, manifestação por excelência da criatividade popular, que se desenha nos bonecos gigantes, no vermelho do Divino, nos mastros e bandeiras, no bumba-meu-boi, nas máscaras que assustam e fazem troça. Nesses locais, as divisões entre sagrado e profano se diluem, em meio a essa grandiosa produção anônima, que é um pouco de cada um.
Oportuna é, ainda, a introdução da estética do cangaço. O módulo, na curadoria de Pernambucano de Mello, radicaliza a idéia de uma arte que se revela em condições de conflito e de difícil sobrevivência. A arte não é, pois, um apanágio dos tempos de calmaria e encontra espaços onde pode. Nos instrumentos da guerra, nas roupas, nos objetos que protegem do sol que castiga, transborda um imaginário que reconta de outra maneira a mesma história, escrita com as cores dos bordados e nos detalhes caprichados dos adereços.
Estamos muito longe da nossa vã filosofia ocidental, e é isso que exibe, de forma tocante, a mostra sobre "Imagens do Inconsciente"; aquela que demonstra como, ao menos nessa área, são inseguras as fronteiras de nossa racionalidade. Sem lições e sem mestres, uma arte refinada surge sem pedir licença. Com seus artistas presos em seus próprios mundos, por meio dos traços desordenados e fortes de Fernando Diniz e de Raphael Domingues, dos objetos de difícil classificação, mas extrema beleza, de Bispo do Rosário, da estatuária sintética de Adelina Gomes ou do comovente dominó de Arthur Amora ... a exposição divide as reações: o afastamento quando a compreensão falha, a identificação diante desse aprendizado intimista, que renomeia certas estruturas profundas. Mas essa já é uma outra história...
Essas diferentes exposições parecem mesmo orquestradas por uma só melodia. Várias linguagens refazem um movimento contínuo de relembrar e idealizar um certo passado, no qual as relações com a África nunca estiveram tão presentes: nas formas, nos corpos, nas sensações. É como se, abandonada a história, na linha da sincronia e mediante reiterações, fosse se desenhando uma forma própria de contar a brasilidade. Na contramão da oficialidade, as mostras emocionam ao deixar falar a grande sensibilidade de um povo de tantas cores, que, mesmo sem saber, querer ou suspeitar, faz arte e desfila um imaginário explosivo. Se fosse só isso já seria muito.



Mostra do Redescobrimento: Negro de Corpo e Alma, Arte Popular, Arte Afro-Brasileira, Imagens do Inconsciente
4 vols., 560, 320, 200 e 256 págs., R$ 100, 90 e os demais 80



Lilia Moritz Schwarcz é professora de antropologia na USP.

Texto Anterior: Laura de Mello e Souza: Invenções do Brasil
Próximo Texto: Henrique Fleming: O moleque curioso
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.