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Na contramão da oficialidade, exposições relembram relações com a África
Um idioma local
LILIA MORITZ SCHWARCZ
Não foi dessa vez que os 500
anos viraram só efeméride. Pretextos não faltavam: a mágica dos
números unia a mística de final de
século com a oportunidade de
lembrar o tão (mal) falado descobrimento. Além disso, se a aproximação da data dava ensejo à retomada do surrado debate sobre a
identidade nacional, já no caso da
Mostra do Redescobrimento evidenciou-se a distinção do projeto
em relação às atividades apenas
laudatórias. Uma exibição como
essa poderia optar pela história,
que possui um poder curativo:
nada como uma boa memória para lembrar um tanto e esquecer
mais. Seria possível também elencar grandes momentos e dar à celebração aquilo que ela gosta: a
elevação daquilo que de antemão
se sabe e espera ver.
Mas, se estavam representadas
escolas e artistas reconhecidos, a
mostra teve a coragem de impor
um perfil inusitado, contrapondo-se à visão dualista, que opõe
vencedores a vencidos, como se a
cultura fosse uma simples subtração de dois menos dois. Ao contrário, enfrentou-se a ambiguidade das relações sociais que se
construíram desde os tempos coloniais e que fizeram com que, nas
próprias formas de representação, estivessem presentes repulsa
e assimilação.
Marcado por uma mistura de
povos que, compulsoriamente,
conviveram em condições desiguais, formou-se no país um certo
idioma próprio. No entanto, se essa é a nação das práticas mestiças,
exaltadas como tal, é também o
local da aplicação de um racismo
silencioso, que escapa da lei para
ganhar a intimidade. E aí está um
dos grandes méritos de "Negro de
Corpo e Alma", que abandona a
fórmula fácil da exotização. Contando com a acertada curadoria
de Emanoel Araujo, a mostra não
se limita ao suporte das linguagens plásticas ou dos documentos
históricos.
Adentra esse imaginário feito de
ambivalências, que se inscrevem
nos detalhes, nos objetos e espaços pretensamente inocentes: no
banco que é suportado por um
negrinho, na propaganda de sabão que brinca de limpar o pretume, nos bibelôs que trazem mulatos com dentes brancos. Pequenos sinais de uma sociabilidade
que sempre se pautou por contratos nada previsíveis, que comportam exclusão e inclusão, naturalizando relações sociais assimétricas como se fossem desígnios dos
céus. Assim, enquanto o argumento do poder explica o enraizamento de hierarquias sociais, não
dá conta do universo criativo que
compõe a mostra.
"Olhar o Corpo" deflagra a percepção de como o negro, vindo de
longe, representou o outro, alma
feita para separar, mas em que se
encontra alguma humanidade.
Aqui está presente o olhar estrangeiro, que descobre no corpo o local seguro para a inscrição da diferença. Em "Olhar a Si Mesmo", a
lente capta a visão do próprio artista negro, que acaba por se mimetizar na percepção que vem de
fora e revela, na dramaticidade da
tela, como só resta para si o avesso
do avesso. Nas fotos que retratam
o negro à imagem dos brancos, na
pincelada de Rafael Pinto Bandeira, entre tantos outros, escapa
uma solução difícil: os poucos espaços que restam para aqueles
que, entrando nas estruturas de
uma sociedade branca, mal se separam delas.
Mas é o terceiro módulo
-"Sentir a Alma"- que enfrenta a questão de perto, indicando
como aqui desembarcaram outras cosmologias. Mais uma vez, é
na linguagem do corpo que deuses estranhos, incorporados nos
próprios filhos, vêm cantar e dançar na terra entre os mortais. Nas
festas, nos santos de pau oco, nos
batuques, uma África repatriada
se encena. Como se vê, a tarefa pede fôlego, isso sem esquecer do
catálogo, que congrega especialistas, documentos, depoimentos,
tudo conduzido pela escrita iluminada de Maria Lucia Montes.
A África no Brasil
A exibição evita biologizar o recorte. Como revela Kabengele
Munanga, um dos responsáveis
pela exposição "Arte Afro-Brasileira", o universo artístico comporta nomes que, independente
de sua origem étnica, participam
do grupo por opção política, religiosa ou estética. É por isso que
ambas as exibições trazem artistas negros -como Mestre Didi,
Agnaldo dos Santos e o próprio
Emanoel Araujo- e brancos.
Verger, Portinari, Caribé, Segall
transladam orixás telúricos ou
captam costumes dessa população que, utilizando uma memória
que não tem tempo ou lugar, redesenha a África no Brasil.
Não se falou dos objetos africanos que completam a exposição
afro-brasileira, mas o que aqui está parece suficiente para indicar
como são inúmeras as trilhas dessas várias visões de mundo. As
duas exibições, de tão próximas,
muitas vezes se duplicam e, nesse
caso, o melhor é completar o quebra-cabeças e seguir os artistas.
Outra dificuldade está em reter o
argumento de "Negro de Corpo e
Alma". De tão horizontal a exposição se torna, por vezes, enciclopédica: mérito e armadilha, desenha-se um verdadeiro léxico, mas
em alguns momentos resta complicado o percurso, talvez reafirmado em outro módulo, vizinho
de edifício e intenções.
É na mostra sobre "Arte Popular" que vemos como esse universo colorido, repleto de uma alegria que se distancia do dia-a-dia
desse povo pobre e sofrido, não se
resume a um reflexo frágil da política. O que parece lugar terminal
-uma lâmpada velha, um toco
de madeira, uma lata vazia- vira
matéria-prima, ponto de partida
para a sofisticação. Essa não é
uma mostra da estética da miséria: afirma e faz um tributo à capacidade humana de inventar e dar
beleza. Dividida em cânones paralelos aos utilizados na arte erudita, a exposição enche os olhos
com tantos detalhes, dispostos tal
qual procissão. Aí estão as esculturas religiosas, os ex-votos, as
carrancas de barco, as imagens de
santeiros que se repetem, sem data e espaço próprios. Expressão de
uma linguagem local, esses objetos dialogam com obras que remetem a um passado remoto e
aos arcaísmos de uma estrutura
compartilhada.
O espaço da festa
Por outro lado, na definição do
curador Emanoel Araujo, destacam-se as permanências, momentos em que a comunidade se
organiza criando artefatos, movida por uma vontade espiritual ou
apenas lúdica. Em foco, o espaço
da festa, manifestação por excelência da criatividade popular,
que se desenha nos bonecos gigantes, no vermelho do Divino,
nos mastros e bandeiras, no bumba-meu-boi, nas máscaras que assustam e fazem troça. Nesses locais, as divisões entre sagrado e
profano se diluem, em meio a essa
grandiosa produção anônima,
que é um pouco de cada um.
Oportuna é, ainda, a introdução
da estética do cangaço. O módulo,
na curadoria de Pernambucano
de Mello, radicaliza a idéia de uma
arte que se revela em condições de
conflito e de difícil sobrevivência.
A arte não é, pois, um apanágio
dos tempos de calmaria e encontra espaços onde pode. Nos instrumentos da guerra, nas roupas,
nos objetos que protegem do sol
que castiga, transborda um imaginário que reconta de outra maneira a mesma história, escrita
com as cores dos bordados e nos
detalhes caprichados dos adereços.
Estamos muito longe da nossa
vã filosofia ocidental, e é isso que
exibe, de forma tocante, a mostra
sobre "Imagens do Inconsciente";
aquela que demonstra como, ao
menos nessa área, são inseguras
as fronteiras de nossa racionalidade. Sem lições e sem mestres, uma
arte refinada surge sem pedir licença. Com seus artistas presos
em seus próprios mundos, por
meio dos traços desordenados e
fortes de Fernando Diniz e de Raphael Domingues, dos objetos de
difícil classificação, mas extrema
beleza, de Bispo do Rosário, da estatuária sintética de Adelina Gomes ou do comovente dominó de
Arthur Amora ... a exposição divide as reações: o afastamento
quando a compreensão falha, a
identificação diante desse aprendizado intimista, que renomeia
certas estruturas profundas. Mas
essa já é uma outra história...
Essas diferentes exposições parecem mesmo orquestradas por
uma só melodia. Várias linguagens refazem um movimento
contínuo de relembrar e idealizar
um certo passado, no qual as relações com a África nunca estiveram tão presentes: nas formas,
nos corpos, nas sensações. É como se, abandonada a história, na
linha da sincronia e mediante reiterações, fosse se desenhando
uma forma própria de contar a
brasilidade. Na contramão da oficialidade, as mostras emocionam
ao deixar falar a grande sensibilidade de um povo de tantas cores,
que, mesmo sem saber, querer ou
suspeitar, faz arte e desfila um
imaginário explosivo. Se fosse só
isso já seria muito.
Mostra do Redescobrimento: Negro de
Corpo e Alma, Arte Popular,
Arte Afro-Brasileira, Imagens
do Inconsciente
4 vols., 560, 320, 200 e 256
págs., R$ 100, 90 e os demais 80
Lilia Moritz Schwarcz é professora de
antropologia na USP.
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