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Livro traz uma coleção de histórias surpreendentes sobre o físic o Feynman
O moleque curioso
HENRIQUE FLEMING
O filme "Radio Days", de Woody Allen,
apresenta, logo nas primeiras cenas, a cidadezinha de Far Rockaway, atualmente
subúrbio de Nova York, debaixo de uma
tempestade. O autor comenta: "Obviamente não era sempre assim tão linda".
Vinte anos antes, aí em Far Rockaway,
nascera e se educara Richard Phillips
Feynman, o personagem do livro "Deve
Ser Brincadeira, Sr. Feynman" (cuja tradução para o português do Brasil apresenta falhas graves).
Como Allen, foi um gênio que sabia ver
beleza onde aos outros parecia não haver
nada, dotado que era de uma estética, ou,
antes, de uma forma mental, original.
Quando menino construíra e consertara
rádios, enquanto Allen consumia todo o
seu tempo grudado às estações de
"broadcasting", como se chamava então
o rádio comercial. Isaac Isador Rabi,
grande físico e grande espírito, dizia que
na infância de cada grande físico moderno há ou um problema com o seu aparelho de rádio ou um problema com o seu
Deus. Feynman pertencia à primeira categoria, Einstein, à segunda.
Ganhou o Prêmio Nobel de Física de
1965 por trabalhos das décadas de 40 e 50,
em que transformou a teoria quântica do
eletromagnetismo em um instrumento
prático de cálculo e de compreensão das
propriedades finas da luz. Elaborando as
idéias do grande Paul Dirac sobre os processos elementares de produção da luz, o
verdadeiro "fiat lux", conseguiu desenvolver um algoritmo tão claro e simples
que transformou essas investigações em
tarefas ao alcance de quase qualquer um.
No dizer de seu colega nobelista Julian
Schwinger, Feynman "levou o cálculo às
massas". Poderia ter ganho pelo menos
mais um Nobel, pela sua inovadora formulação da mecânica quântica, que não
só lançou luz sobre o princípio de incerteza de Heisenberg, como permitiu, no devido tempo, a elaboração de uma versão
quântica das teorias ditas de "gauge", generalizações não triviais do eletromagnetismo e que dominam a atual física fundamental, isto é, aquela parte da física
que trata dos processos elementares, os
"átomos" de Demócrito de nossos dias,
que se chamam quarks, neutrinos etc.
Nos anos 60 resolveu fazer uma experiência didática e ensinou física básica
durante alguns semestres no Caltech (California Institute of Technology), cujos
estudantes são a nata dos jovens americanos com interesse em ciência. Como resultado, saíram três famosos volumes
vermelhos que são um extraordinário
texto introdutório de física e que suscitaram muito progresso no ensino e na arte
de escrever textos daquele nível.
Esteve no Brasil várias vezes, uma delas
por cerca de um ano. Há menção dessa
experiência no capítulo "O Americano,
Outra Vez". Parte do que ele disse do Brasil desceu mal, causando alguma indignação quando de seu aparecimento ou,
mais precisamente, uma grande indignação por parte de alguns. Voltarei ao assunto. Falava português com clareza, embora o entendesse mal. Em geral é o contrário, mas... trata-se de Richard Feynman. Assisti a um curso seu, no Rio de Janeiro, sobre física do estado sólido, magnífico, cheio da tensão da descoberta (fazia-as de um dia para o outro, de noite, no
hotel), em que se devia seguir uma regra
curiosa: embora o curso fosse em português, as perguntas ao mestre deviam ser
em inglês.
Sua fama transcendeu o ambiente dos
físicos com o aparecimento do "Deve Ser
Brincadeira, Sr. Feynman", em 1985.
Imediato e duradouro best seller, seguido
de várias outras coleções de suas aventuras, o livro deu origem a um culto a Feynman nos Estados Unidos de tal porte que
rivaliza, se não ultrapassa, aquele por
Charles Lindbergh, o aviador solitário,
pioneiro da travessia do Atlântico.
Consertando rádios
Trata-se de um livro de aventuras ou,
mais precisamente, de um livro de travessuras, e um crítico o colocou na tradição
de Mark Twain, certamente com "Tom
Sawyer" em mente. Contudo, e isso é essencial, não é um livro de ficção, mas, digamos, um diário censurado às avessas.
Escreve um leitor: "Eu era um engenheiro eletricista triste e deprimido, a ponto
de precisar de uma psicóloga. Depois de
ler esse livro, dispensei-a e aprendi a rir
da vida!". Recomendo uma leitura das
várias dezenas de críticas de leitores que
se encontram no site da Amazon.
O livro principia com o autor ainda menino, entretendo-se com o seu laboratório doméstico e ganhando uns tostões
(era a época da Depressão) com o conserto de rádios. "O menino conserta rádios
pensando", espanta-se um cliente. Estende-se até um pouco antes dos anos 80,
com idas e vindas. Trata-se, na verdade,
do trabalho de um caro amigo que recolheu, ao longo dos anos, essas histórias, e
as concatenou na forma atual. Chama-se
Ralph Leighton e não é um físico, embora
seja filho de um colega de Feynman, Robert Leighton.
A imagem de Feynman sugerida pelo livro é a de um moleque que, movido exclusiva e irrestritamente pela curiosidade, não deixa pedra por revirar. No entanto, o grande físico inglês Freeman
Dyson, homem de grande cultura humanista, disse dele que se tratava do único físico americano no qual encontrara uma
certa dimensão dramática comum àqueles que provinham de países de populações dizimadas pela guerra. E, em outra
ocasião, que era "um grande homem, em
todos os sentidos". Vale a pena, portanto,
examinar com algum cuidado esse surpreendente texto.
Primeiro, é preciso descontar uma certa cafajestice proposital. Diz o autor (minha tradução): "A razão pela qual digo
que sou "inculto" ou "antiintelectual" remonta provavelmente ao tempo em que
eu estava no colégio. Temia parecer um
mariquinhas; não queria parecer delicado demais. Para mim, nenhum homem
de verdade ligaria para a poesia ou coisas
desse tipo. Por isso desenvolvi uma atitude negativa em relação a quem estudava
literatura francesa...".
Ora, mais tarde, ao procurar uma analogia para um erro que cometera em um
seu trabalho de pesquisa, lembra-se do...
marido de Madame Bovary! Há vários
exemplos desse tipo no texto. Feynman
não é, como se diz na piada antiga, "a besta que aparenta". Finge ser. Certas sequências de idéias que apresenta, neste livro e em outros, ou foram inspiradas numa leitura (às escondidas?) de Platão, ou
são ainda mais reveladoras, se próprias,
de um "esprit de finesse" que teima em
aparecer por baixo da camuflagem.
Uma característica de Feynman bem
ilustrada neste livro é a necessidade de
submeter tudo à experiência, de preferência, pessoal. Ainda estudante do Massachusetts Institute of Technology, devendo escrever um ensaio requerido pelo
curso de filosofia (obrigatório, de outro
modo jamais o faria...), realiza, ao longo
de vários dias, pesquisas consigo mesmo
sobre o processo gradual da perda de
consciência pelo sobrevir do sono.
Em outra ocasião, submete-se em público a um hipnotizador e relata suas sensações enquanto hipnotizado. Comandado por aquele e instado a voltar ao seu lugar na platéia por um caminho complicado, pensa consigo: "Nada disso, vou voltar pelo caminho mais curto", para depois perceber que, sim, seria, em princípio, capaz de voltar pelo caminho que
quisesse, mas preferia voltar pelo caminho sugerido. Conclui: "Poderia fazê-lo,
mas não o farei", o que, reflete, "é só uma
outra maneira de dizer que não posso".
Nesse momento, e em outros, o leitor
provavelmente pediria que ele se aprofundasse mais. Como essa coerção, e o esforço para negá-la, poderiam conviver
com o fulcro do pensamento de Sartre, de
que, a cada instante, somos inteiramente
livres de escolher a próxima ação? Mas
nada poderia estar mais distante de Feynman do que essa preocupação!
Um toque de Brasil
Em seu estágio brasileiro, aproveitando-se de um ano sabático, morou em um
hotel do Posto Seis, em Copacabana, convenientemente usado pela maioria das
aeromoças, na época ainda beldades, e
não ignorou essa conveniência. Além disso, realizou proezas de cálculo nas areias
de Copacabana e tocou frigideira em um
bloco carnavalesco, primeiro, malíssimo
("O americano, outra vez!"), depois, ao
que parece, como um nativo. E cometeu
uma grande indelicadeza: escreveu que
os estudantes brasileiros eram grandes
conhecedores das teorias, mas não conseguiam aplicá-las aos fenômenos diante
de seus próprios olhos. Não que estivesse
errado. Apenas isso não se aplica só, ou
especialmente, aos estudantes brasileiros, mas a todo estudante que aprende física sem estar realmente interessado nela.
Mas bastou para que alguns de meus colegas ficassem indignados.
A mim, a menção específica a brasileiros não pareceu mais do que técnica narrativa, a busca de uma situação concreta
para expor um conceito com maior vigor.
No entanto soube depois que um professor de física da Universidade Cornell tinha sido imbecil o suficiente para recusar
novos estudantes brasileiros, após ler o livro de Feynman. Assim, meus amigos tinham razão.
Isso superado, o livro é uma leitura
agradabilíssima, muito rica, surpreendente, compulsiva. Lamenta-se quando
se chega ao fim. Desnecessariamente,
pois o veio foi explorado a fundo. Há agora quase uma dezena de livros que são, de
uma forma ou de outra, continuações
deste, que é, contudo, de longe o melhor.
No que veio logo a seguir, intitulado "O
Que Lhe Importa o Que os Outros Pensam", é narrado um episódio importante
da vida de Feynman, a morte de sua jovem esposa, de tuberculose, enquanto
ele, ainda nem doutorado, trabalhava em
Los Alamos, na construção da bomba
atômica.
A conjunção desses dois fatos, a tragédia pessoal e a não imediata, mas completa, conscientização da tragédia moral,
deu a Feynman a dimensão trágica que
Dyson lhe atribuiu e que é essencial para
que essas arlequinadas adquiram, também, em seu conjunto, uma dimensão
trágica, que as enriquece, transforma e,
finalmente, elucida.
Deve Ser Brincadeira,
Sr. Feynman!
Richard Phillips Feynman
Tradução: Cláudia Bentes David
Editora UnB (Tel. 0/xx/61/226-6874)
392 págs., R$ 35,00
Henrique Fleming é professor do Instituto de Física da USP.
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