São Paulo, sábado, 12 de agosto de 2000


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Dos cavaletes aos experimentos de vanguarda
Modernidade suada

SERGIO MICELI

A representatividade dos artistas, os diálogos visuais entre criadores e personagens (a começar pelas três imagens sedutoras do crítico-dândi Gonzaga Duque), o vigor dos eixos temáticos, os ligamentos entre obras e critérios iconográficos, os encadeamentos plásticos da sequência histórica, o caprichado texto do catálogo, esses acertos tornam a exposição um dos pontos altos na Mostra do Redescobrimento. Tal resultado espelha um cuidadoso rastreamento de acervos, o desígnio de incorporar releituras sobre artistas e tendências do período e o impacto de telas recém-descobertas, como as da coleção brasiliana Kugel. Entre os escorregões evitados pelo curador Luciano Migliaccio, cumpre mencionar a não adoção de bastões da arte contemporânea a fim de ajuizar, de marcha à ré, obras pertencentes a outro universo social e artístico.

Século 19
Apesar do realce conferido aos enlaces entre atividade artística, elites usuárias e instituições dirigentes -a Corte e seus mandatários-, esse esquema de constrangimentos se encaixa melhor na primeira metade do século, em que as obras de arte encontram-se moldadas por políticas de Estado, do que nas últimas décadas, quando os artistas mais inventivos tiveram que responder aos reclamos de uma elite emergente de colecionadores sofisticados. Os engates entre influências externas e programas de uma política cultural imperial ajudam a desentranhar uma dicção plástica original.
Entretanto os escorços interpretativos das composições de gênero ou dos nus, forçando aproximações com heroínas trágicas da ópera, Dido ou Butterfly, são bem menos convincentes e patinam em paralelismos desprovidos de lastro documental. Tal sucede, a meu ver, devido à anêmica oxigenação desses trabalhos pela sociedade que lhes deu vida.
Ao discutir as raízes programáticas da tela "Moema", de Vítor Meirelles, deflagradora de idealizações com personagens indígenas ou nativistas (Marabás, Iracemas etc.), a que se seguiu outra leva de nus de "cocottes", a lembrança de "O Nascimento de Vênus" (1863), de Cabanel, como modelo eventual, não basta para esclarecer a genealogia pictórica ou as motivações da clientela daqui. Assim o demonstram algumas coleções brasileiras do final do século 19 que abrigavam uma proporção apreciável de nus e poses eróticas, por exemplo, a do senador Freitas Valle. Tanto em Paris como no eixo Rio-São Paulo havia uma demanda inexaurível por telas fesceninas da parte de colecionadores antenados com o universo da prostituição, que se havia firmado no âmago da sociabilidade burguesa sob a designação de "demi-monde".
Em vez de constituir apenas reelaboração parodística da tradição pastoral, as fontes visuais dessas telas "indianistas" remontavam aos caracteres da "Vênus Anadyomène" (1848), de Ingres. Pelo visto, os artistas brasileiros haviam substituído as cortesãs da pintura francesa, disfarçadas em personagens antigas, na linhagem dos Cabanel, Bouguereau e de seus epígonos, por equivalentes patrícias ostentando traços fisionômicos, colorações de pele e atavios indígenas. "A Carioca" (1882), de Pedro Américo, remexe os cabelos como a Vênus de Ingres, assim como a peladona estirada de costas na cama, de Amoedo (aliás, pintada em Paris em 1884), constituiria uma versão francamente obscena da mulher-mercadoria, sem rosto, reduzida à condição de carne-dinheiro, da "Olympia" (1863), de Manet.

Retrato de colecionador
Embora diversas obras expostas se prestem ao esclarecimento da interação entre artistas e clientes, a matéria expressiva da "Cena da Família de Adolfo Augusto Pinto" (1891), de Almeida Jr., traz à tona certas linhas de força reveladoras dessa demanda por obras de arte procedente dos grupos de elite no surto urbano-industrial impelido pela cafeicultura. Faltou, pois, essa pimenta indispensável do nutriente social dando sentido a uma prática artística cujos ingredientes de importação foram bem equacionados de outra perspectiva.
O retrato de família revela as dimensões conexas da existência desse engenheiro colecionador e mecenas, cuja fortuna foi sendo acumulada em frentes de atividade complementares: dirigente com participação acionária na Companhia Paulista de Estradas de Ferro, consultor de grupos financeiros, sócio de empresas, militante católico, publicista e tecnocrata.
Os figurantes na sala de estar compõem uma cena de intimidade doméstica, em que se reconhece o zelo feminino (vasos de plantas, mantas, costura), o clima de harmonia no convívio entre pais e filhos (cão de raça), os emblemas da identidade profissional do pai, bem como seus padrões de gosto e sensibilidade artística. Acomodado confortavelmente na poltrona de madeira, encostado no espaldar, de pernas cruzadas, trajado com elegância discreta, de calça e paletó escuros, colarinho alto engomado, abotoaduras de ouro, de aliança no dedo, o pai segura com as duas mãos a "Revista de Engenharia", e não um jornal em que estaria lendo notícias sobre economia e política, tal como se afirma no catálogo. O piano, o violoncelo, a partitura e o arco, os bustos de compositores sobre o tampo, os quadros na parede, esses artefatos evidenciam interesses e práticas culturais de um colecionador requintado. Adolfo aprendera a ler escrita musical desde jovem, quando tocava pistão, que fora preterido pelo estudo do violoncelo já adulto.
Uma cena de moral edificante para cujo impacto e teor de veracidade contribuem, sobremaneira, os sinais de uma religiosidade católica difusa -as batas brancas das crianças convertidas em anjos-, deixando fora do alcance do espectador o contingente de serviçais imprescindíveis a esse estilo de vida.
O visitante sai maravilhado com a arte brasileira do século 19, depois de acompanhar os lances de fabricação desse repertório de representações de um momento de virada na história do país.

Modernismos
Já o que se enxerga no andar consagrado à "arte moderna", em particular o espaço reservado a obras dos modernistas, é decepcionante. O início do percurso sinaliza continuidades com o período anterior, mas esse partido acaba truncado, após exibir trabalhos ousados de alguns artistas importantes de transição. A definição do modernismo como um movimento de raízes e projeção nacionais é perfeitamente defensável e teria proporcionado moldura abrangente aos experimentos artísticos e literários dos anos 10, 20 e 30, destacando a contribuição de artistas menos conhecidos (Alfredo Andersen, Cícero Dias) ou dos que se firmaram a partir da capital federal (Portinari, Guignard), ainda que ao preço de esmaecer a pujança do núcleo paulista impulsionador.
O que se apresenta ao visitante, perdido diante desse emaranhado sem costura de obras e artistas, é quase um despistamento. Alguns estão representados por telas feitas em períodos bem posteriores aos tempos "quentes" do movimento, como nos casos de Di Cavalcanti e Guignard. Outros comparecem com trabalhos confeccionados para atender a clientela, penalizando ainda Guignard, com decalques aguados de obras comoventes dos anos 30 e 40, salvo a paisagem do Parque Municipal em Belo Horizonte. Não há nenhuma obra da primeira fase "légeriana" de Tarsila, nenhuma tela de Portinari de sua fase de convivência com outros artistas modernistas no Rio de Janeiro ou logo após seu retorno da Europa, nenhum estudo ou imagem, de sua autoria, vinculado aos murais para o prédio do Ministério da Educação, tampouco algum trabalho de Segall ligado à sua experiência de imigrante recém-chegado, ou do Di Cavalcanti ilustrador.
As ligações entre modernismo artístico e literário, ou então, os feitos modernistas nas artes aplicadas, foram descartados. Nem sequer as influências externas, da escola de Paris em especial, mobilizaram a curadoria, mesmo quando se sabe que os estilos e linguagens dos modernistas brasileiros foram moldados em íntimo diálogo com mestres e artistas europeus. Tais lacunas se explicam pela desconsideração dos estudos e debates recentes a respeito de novas lentes de apreciação e interpretação do modernismo, a antítese da postura adotada para o século 19.
Perdeu-se, assim, valiosa oportunidade de examinar artistas em processo de reavaliação -Galileo Emendabili, por exemplo-, ou de suscitar leituras provocativas de obras conhecidas, seja ao evidenciar o enraizamento em suas fontes iconográficas, seja ao desvendar veios experimentais explorados por diferentes artistas, seja ao confrontá-los, quem sabe, aos seus contemporâneos de geração e condiscípulos dos mesmos mestres, procedentes de outros países então ainda periféricos (EUA, México).
Após certo tempo de andança, tem-se a sensação de estar passeando pelos corredores de um antiquário ou casa de leilões, como se diversos colecionadores quisessem se desfazer, ao mesmo tempo, desses trabalhos desemparelhados. Tamanha zoeira de obras, artistas e fases, presta um desserviço, ganhando tradução no texto sentencioso e anedótico do catálogo, assinado por Nelson Aguilar. Mas a impressão de estar numa pré-exposição de leiloeiro serve de gancho à continuidade da visita no mesmo andar, onde se encontram reunidos pequenos acervos de artistas modernos consagrados.
Dois critérios dominantes teriam presidido à seleção dos artistas aí homenageados: grandes nomes canonizados da vanguarda -Helio Oiticica e Lygia Clark- estão postos ao lado dos artistas mais cotados e colecionados no mercado de arte -Volpi e Sergio Camargo-, "acossados", pelos flancos, por artistas de igual projeção, relegados à sombra como acólitos de honra da linhagem louvada.

Critérios de mercado
Talvez por terem sido pinçados com o fito de celebrar o "nec plus ultra" de um gênio artístico, os 39 trabalhos de Volpi transmitem, ao invés, um itinerário de extremado convencionalismo. Desnudam etapas por meio das quais um artista fabuloso foi dessorando sua fatura e decantando os estilemas de sua linguagem num léxico inconfundível, fórmula de aceitação segura com grande liquidez no mercado. Ao cabo, chega-se a uma pintura previsível, sem segredo, descrita, na linguagem de seus cultores, como poética despojada e rigorosa, risco e geometria, síntese de logotipos caipiras (portas, casario, bandeirinhas), numa camisa-de-força sobre fundo branco, cujo mérito estaria equacionado por truques de forma, linha e cor.
A dada altura do vídeo exibido na mostra "Imagens do Inconsciente", ao se indagar por que nunca lhe perguntam onde estão os autores dessas telas inquietantes, Nise da Silveira esclarece, pesarosa, que os doentes mentais encontram-se amontoados em "tristes lugares", os hospitais psiquiátricos. Mal comparando, poder-se-ia contrastar o paradeiro institucional das obras de Oiticica -hoje abrigadas em museus e fundações, justo o circuito do qual ele queria se libertar- às finalidades pedagógicas de suas experiências de "arte pobre", feita dessa mescla de delírio conceitual imaginoso, crítica social ferina e sintonia com caracteres populares, distante de badulaques e materiais nobres, demandando a participação do espectador.
O fenômeno Oiticica é ilustrativo do que caracteriza o esvaecimento institucional de uma proposta artística festejada como "radical" e "revolucionária". Em lugar do desgaste inevitável dos materiais empregados, altamente perecíveis, constata-se empenho em preservar obras frágeis, feitas muito mais a título indicativo do que como acabadas e dotadas de aura. A apreensão crítica se tornou especialidade de decifradores, prontos a mobilizar crivos pós-modernos, dando vazão a uma série redundante, bastante tediosa, de leituras espiritualizadas e cada vez mais distantes dos alvos prosaicos mirados pelo artista. Não obstante, sua presença destoa um bocado das obras selecionadas como fio de prumo histórico do que teria sido a contribuição estética dos movimentos concreto e neoconcreto, fazendo pulsar a inquietação de uma atitude quase etnográfica perante vivências populares que furavam sua vista. Um momento desnorteante, como convém à magia de um feiticeiro.
Ainda que discorde dos critérios adotados pela curadora Maria Alice Milliet ao privilegiar a linhagem dos concretos em detrimento de artistas descompassados desse metro, trata-se de uma escolha plausível e fundamentada. Eu teria preferido atribuir posições de destaque a artistas de outro naipe: Amilcar de Castro, cujas dobras enormes de ferro se reconfiguram no entorno em sombra e luz coada, atraindo o espectador para um duplo de mistério; Iberê Camargo e suas telas tumultuadas, estuantes de paixão e sofrimento na medida. O tom apologético do texto no catálogo ficaria minorado se buscasse algum fundamento histórico-conceitual nas ligações dessas obras construtivistas com teorias semióticas e da informação, linguagens gráficas em publicidade, desenho industrial e comunicação visual.
A despeito das intenções da curadoria, o arranjo de obras, os textos e entrevistas nos catálogos e a copiosa cobertura de imprensa a respeito da mostra vão chamando a atenção para os diversos agentes que hoje já se tornaram tão ou mais importantes para a dinâmica da vida artística do que os próprios criadores. Críticos, curadores, restauradores, museólogos, animadores, galeristas, dirigentes de fundações, integrantes dos conselhos dessas entidades, esses profissionais e grupos de interesse, gravitando em torno da atividade artística, logram viabilizar seus projetos em razão dos recursos políticos e, sobretudo, do cabedal de relações sociais de que dispõem junto aos colecionadores, às instituições culturais públicas, aos grandes patrocinadores privados, às editoras especializadas, ou seja, às balizas de armação político-institucional do mercado de arte. Entre panoramas para fruição da corte e bólides entronizados por "connaisseurs", um prato cheio para a reflexão da legião de estetas, defensores convictos da autonomia da obra de arte, que nos têm proporcionado fórmulas lapidares dessa modernidade suada.



Mostra do Redescobrimento: Século 19, Arte Moderna, Arte Contemporânea
3 vols., 224, 256 e 256 págs., R$ 80,00 cada volume



Sergio Miceli é professor de sociologia na USP, autor, entre outros, de "Imagens Negociadas - Retratos da Elite Brasileira, 1920-1940" (Cia. das Letras) e organizador de "O Que Ler na Ciência Social Brasileira" (Sumaré).


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