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Dos cavaletes aos experimentos de vanguarda
Modernidade suada
SERGIO MICELI
A representatividade dos artistas, os
diálogos visuais entre criadores e personagens (a começar pelas três imagens sedutoras do crítico-dândi Gonzaga Duque), o vigor dos eixos temáticos, os ligamentos entre obras e critérios iconográficos, os encadeamentos plásticos da sequência histórica, o caprichado texto do
catálogo, esses acertos tornam a exposição um dos pontos altos na Mostra do
Redescobrimento. Tal resultado espelha
um cuidadoso rastreamento de acervos,
o desígnio de incorporar releituras sobre
artistas e tendências do período e o impacto de telas recém-descobertas, como
as da coleção brasiliana Kugel. Entre os
escorregões evitados pelo curador Luciano Migliaccio, cumpre mencionar a não
adoção de bastões da arte contemporânea a fim de ajuizar, de marcha à ré, obras
pertencentes a outro universo social e artístico.
Século 19
Apesar do realce conferido aos enlaces
entre atividade artística, elites usuárias e
instituições dirigentes -a Corte e seus
mandatários-, esse esquema de constrangimentos se encaixa melhor na primeira metade do século, em que as obras
de arte encontram-se moldadas por políticas de Estado, do que nas últimas décadas, quando os artistas mais inventivos
tiveram que responder aos reclamos de
uma elite emergente de colecionadores
sofisticados. Os engates entre influências
externas e programas de uma política
cultural imperial ajudam a desentranhar
uma dicção plástica original.
Entretanto os escorços interpretativos
das composições de gênero ou dos nus,
forçando aproximações com heroínas
trágicas da ópera, Dido ou Butterfly, são
bem menos convincentes e patinam em
paralelismos desprovidos de lastro documental. Tal sucede, a meu ver, devido à
anêmica oxigenação desses trabalhos pela sociedade que lhes deu vida.
Ao discutir as raízes programáticas da
tela "Moema", de Vítor Meirelles, deflagradora de idealizações com personagens
indígenas ou nativistas (Marabás, Iracemas etc.), a que se seguiu outra leva de
nus de "cocottes", a lembrança de "O
Nascimento de Vênus" (1863), de Cabanel, como modelo eventual, não basta para esclarecer a genealogia pictórica ou as
motivações da clientela daqui. Assim o
demonstram algumas coleções brasileiras do final do século 19 que abrigavam
uma proporção apreciável de nus e poses
eróticas, por exemplo, a do senador Freitas Valle. Tanto em Paris como no eixo
Rio-São Paulo havia uma demanda inexaurível por telas fesceninas da parte de
colecionadores antenados com o universo da prostituição, que se havia firmado
no âmago da sociabilidade burguesa sob
a designação de "demi-monde".
Em vez de constituir apenas reelaboração parodística da tradição pastoral, as
fontes visuais dessas telas "indianistas"
remontavam aos caracteres da "Vênus
Anadyomène" (1848), de Ingres. Pelo visto, os artistas brasileiros haviam substituído as cortesãs da pintura francesa, disfarçadas em personagens antigas, na linhagem dos Cabanel, Bouguereau e de
seus epígonos, por equivalentes patrícias
ostentando traços fisionômicos, colorações de pele e atavios indígenas. "A Carioca" (1882), de Pedro Américo, remexe
os cabelos como a Vênus de Ingres, assim
como a peladona estirada de costas na cama, de Amoedo (aliás, pintada em Paris
em 1884), constituiria uma versão francamente obscena da mulher-mercadoria,
sem rosto, reduzida à condição de carne-dinheiro, da "Olympia" (1863), de Manet.
Retrato de colecionador
Embora diversas obras expostas se
prestem ao esclarecimento da interação
entre artistas e clientes, a matéria expressiva da "Cena da Família de Adolfo Augusto Pinto" (1891), de Almeida Jr., traz à
tona certas linhas de força reveladoras
dessa demanda por obras de arte procedente dos grupos de elite no surto urbano-industrial impelido pela cafeicultura.
Faltou, pois, essa pimenta indispensável
do nutriente social dando sentido a uma
prática artística cujos ingredientes de importação foram bem equacionados de
outra perspectiva.
O retrato de família revela as dimensões
conexas da existência desse engenheiro
colecionador e mecenas, cuja fortuna foi
sendo acumulada em frentes de atividade
complementares: dirigente com participação acionária na Companhia Paulista
de Estradas de Ferro, consultor de grupos
financeiros, sócio de empresas, militante
católico, publicista e tecnocrata.
Os figurantes na sala de estar compõem
uma cena de intimidade doméstica, em
que se reconhece o zelo feminino (vasos
de plantas, mantas, costura), o clima de
harmonia no convívio entre pais e filhos
(cão de raça), os emblemas da identidade
profissional do pai, bem como seus padrões de gosto e sensibilidade artística.
Acomodado confortavelmente na poltrona de madeira, encostado no espaldar,
de pernas cruzadas, trajado com elegância discreta, de calça e paletó escuros, colarinho alto engomado, abotoaduras de
ouro, de aliança no dedo, o pai segura
com as duas mãos a "Revista de Engenharia", e não um jornal em que estaria
lendo notícias sobre economia e política,
tal como se afirma no catálogo. O piano, o
violoncelo, a partitura e o arco, os bustos
de compositores sobre o tampo, os quadros na parede, esses artefatos evidenciam interesses e práticas culturais de um
colecionador requintado. Adolfo aprendera a ler escrita musical desde jovem,
quando tocava pistão, que fora preterido
pelo estudo do violoncelo já adulto.
Uma cena de moral edificante para cujo
impacto e teor de veracidade contribuem, sobremaneira, os sinais de uma religiosidade católica difusa -as batas
brancas das crianças convertidas em anjos-, deixando fora do alcance do espectador o contingente de serviçais imprescindíveis a esse estilo de vida.
O visitante sai maravilhado com a arte
brasileira do século 19, depois de acompanhar os lances de fabricação desse repertório de representações de um momento de virada na história do país.
Modernismos
Já o que se enxerga no andar consagrado à "arte moderna", em particular o espaço reservado a obras dos modernistas,
é decepcionante. O início do percurso sinaliza continuidades com o período anterior, mas esse partido acaba truncado,
após exibir trabalhos ousados de alguns
artistas importantes de transição. A definição do modernismo como um movimento de raízes e projeção nacionais é
perfeitamente defensável e teria proporcionado moldura abrangente aos experimentos artísticos e literários dos anos 10,
20 e 30, destacando a contribuição de artistas menos conhecidos (Alfredo Andersen, Cícero Dias) ou dos que se firmaram
a partir da capital federal (Portinari,
Guignard), ainda que ao preço de esmaecer a pujança do núcleo paulista impulsionador.
O que se apresenta ao visitante, perdido
diante desse emaranhado sem costura de
obras e artistas, é quase um despistamento. Alguns estão representados por telas
feitas em períodos bem posteriores aos
tempos "quentes" do movimento, como
nos casos de Di Cavalcanti e Guignard.
Outros comparecem com trabalhos confeccionados para atender a clientela, penalizando ainda Guignard, com decalques aguados de obras comoventes dos
anos 30 e 40, salvo a paisagem do Parque
Municipal em Belo Horizonte. Não há
nenhuma obra da primeira fase "légeriana" de Tarsila, nenhuma tela de Portinari
de sua fase de convivência com outros artistas modernistas no Rio de Janeiro ou
logo após seu retorno da Europa, nenhum estudo ou imagem, de sua autoria,
vinculado aos murais para o prédio do
Ministério da Educação, tampouco algum trabalho de Segall ligado à sua experiência de imigrante recém-chegado, ou
do Di Cavalcanti ilustrador.
As ligações entre modernismo artístico
e literário, ou então, os feitos modernistas
nas artes aplicadas, foram descartados.
Nem sequer as influências externas, da
escola de Paris em especial, mobilizaram
a curadoria, mesmo quando se sabe que
os estilos e linguagens dos modernistas
brasileiros foram moldados em íntimo
diálogo com mestres e artistas europeus.
Tais lacunas se explicam pela desconsideração dos estudos e debates recentes a
respeito de novas lentes de apreciação e
interpretação do modernismo, a antítese
da postura adotada para o século 19.
Perdeu-se, assim, valiosa oportunidade
de examinar artistas em processo de reavaliação -Galileo Emendabili, por
exemplo-, ou de suscitar leituras provocativas de obras conhecidas, seja ao evidenciar o enraizamento em suas fontes
iconográficas, seja ao desvendar veios experimentais explorados por diferentes
artistas, seja ao confrontá-los, quem sabe,
aos seus contemporâneos de geração e
condiscípulos dos mesmos mestres, procedentes de outros países então ainda periféricos (EUA, México).
Após certo tempo de andança, tem-se a
sensação de estar passeando pelos corredores de um antiquário ou casa de leilões,
como se diversos colecionadores quisessem se desfazer, ao mesmo tempo, desses
trabalhos desemparelhados. Tamanha
zoeira de obras, artistas e fases, presta um
desserviço, ganhando tradução no texto
sentencioso e anedótico do catálogo, assinado por Nelson Aguilar. Mas a impressão de estar numa pré-exposição de leiloeiro serve de gancho à continuidade da
visita no mesmo andar, onde se encontram reunidos pequenos acervos de artistas modernos consagrados.
Dois critérios dominantes teriam presidido à seleção dos artistas aí homenageados: grandes nomes canonizados da vanguarda -Helio Oiticica e Lygia Clark-
estão postos ao lado dos artistas mais cotados e colecionados no mercado de arte
-Volpi e Sergio Camargo-, "acossados", pelos flancos, por artistas de igual
projeção, relegados à sombra como acólitos de honra da linhagem louvada.
Critérios de mercado
Talvez por terem sido pinçados com o
fito de celebrar o "nec plus ultra" de um
gênio artístico, os 39 trabalhos de Volpi
transmitem, ao invés, um itinerário de
extremado convencionalismo. Desnudam etapas por meio das quais um artista
fabuloso foi dessorando sua fatura e decantando os estilemas de sua linguagem
num léxico inconfundível, fórmula de
aceitação segura com grande liquidez no
mercado. Ao cabo, chega-se a uma pintura previsível, sem segredo, descrita, na
linguagem de seus cultores, como poética
despojada e rigorosa, risco e geometria,
síntese de logotipos caipiras (portas, casario, bandeirinhas), numa camisa-de-força sobre fundo branco, cujo mérito estaria equacionado por truques de forma,
linha e cor.
A dada altura do vídeo exibido na mostra "Imagens do Inconsciente", ao se indagar por que nunca lhe perguntam onde
estão os autores dessas telas inquietantes,
Nise da Silveira esclarece, pesarosa, que
os doentes mentais encontram-se amontoados em "tristes lugares", os hospitais
psiquiátricos. Mal comparando, poder-se-ia contrastar o paradeiro institucional
das obras de Oiticica -hoje abrigadas
em museus e fundações, justo o circuito
do qual ele queria se libertar- às finalidades pedagógicas de suas experiências
de "arte pobre", feita dessa mescla de delírio conceitual imaginoso, crítica social
ferina e sintonia com caracteres populares, distante de badulaques e materiais
nobres, demandando a participação do
espectador.
O fenômeno Oiticica é ilustrativo do
que caracteriza o esvaecimento institucional de uma proposta artística festejada
como "radical" e "revolucionária". Em
lugar do desgaste inevitável dos materiais
empregados, altamente perecíveis, constata-se empenho em preservar obras frágeis, feitas muito mais a título indicativo
do que como acabadas e dotadas de aura.
A apreensão crítica se tornou especialidade de decifradores, prontos a mobilizar
crivos pós-modernos, dando vazão a
uma série redundante, bastante tediosa,
de leituras espiritualizadas e cada vez
mais distantes dos alvos prosaicos mirados pelo artista. Não obstante, sua presença destoa um bocado das obras selecionadas como fio de prumo histórico do
que teria sido a contribuição estética dos
movimentos concreto e neoconcreto, fazendo pulsar a inquietação de uma atitude quase etnográfica perante vivências
populares que furavam sua vista. Um
momento desnorteante, como convém à
magia de um feiticeiro.
Ainda que discorde dos critérios adotados pela curadora Maria Alice Milliet ao
privilegiar a linhagem dos concretos em
detrimento de artistas descompassados
desse metro, trata-se de uma escolha
plausível e fundamentada. Eu teria preferido atribuir posições de destaque a artistas de outro naipe: Amilcar de Castro, cujas dobras enormes de ferro se reconfiguram no entorno em sombra e luz coada,
atraindo o espectador para um duplo de
mistério; Iberê Camargo e suas telas tumultuadas, estuantes de paixão e sofrimento na medida. O tom apologético do
texto no catálogo ficaria minorado se
buscasse algum fundamento histórico-conceitual nas ligações dessas obras
construtivistas com teorias semióticas e
da informação, linguagens gráficas em
publicidade, desenho industrial e comunicação visual.
A despeito das intenções da curadoria,
o arranjo de obras, os textos e entrevistas
nos catálogos e a copiosa cobertura de
imprensa a respeito da mostra vão chamando a atenção para os diversos agentes que hoje já se tornaram tão ou mais
importantes para a dinâmica da vida artística do que os próprios criadores. Críticos, curadores, restauradores, museólogos, animadores, galeristas, dirigentes de
fundações, integrantes dos conselhos
dessas entidades, esses profissionais e
grupos de interesse, gravitando em torno
da atividade artística, logram viabilizar
seus projetos em razão dos recursos políticos e, sobretudo, do cabedal de relações
sociais de que dispõem junto aos colecionadores, às instituições culturais públicas, aos grandes patrocinadores privados, às editoras especializadas, ou seja, às
balizas de armação político-institucional
do mercado de arte. Entre panoramas para fruição da corte e bólides entronizados
por "connaisseurs", um prato cheio para
a reflexão da legião de estetas, defensores
convictos da autonomia da obra de arte,
que nos têm proporcionado fórmulas lapidares dessa modernidade suada.
Mostra do Redescobrimento:
Século 19, Arte Moderna,
Arte Contemporânea
3 vols., 224, 256 e 256 págs.,
R$ 80,00 cada volume
Sergio Miceli é professor de sociologia na USP,
autor, entre outros, de "Imagens Negociadas - Retratos da Elite Brasileira, 1920-1940" (Cia. das Letras) e organizador de "O Que Ler na Ciência Social
Brasileira" (Sumaré).
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