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Memórias contam percurso de Augusto Boal
A peça jamais encenada
SÉRGIO DE CARVALHO
Em autobiografias, não é incomum que
o esforço de demarcar o sentido geral da
trajetória apareça tanto ou mais do que a
matéria das experiências vividas. Como
se os acasos e necessidades da vida, no ato
da rememoração, ao serem expostos numa ordem de valores, acabassem por
projetar também os desejos do escritor.
Talvez seja pela percepção dessa dupla
face de realizado e irrealizado -contida
em toda evocação- que Augusto Boal
preferiu chamar seu livro de "Memórias
Imaginadas". São relatos, anedotas, ânsias e tristezas cheias de paradoxos, que
recontam um percurso único na história
do teatro brasileiro. A referência à personagem de Shakespeare, no título, pode
ser lida menos como identificação a uma
melancolia reflexiva e mais como vontade de conhecimento sobre os trânsitos
possíveis entre a arte e a realidade, questão fundamental da obra de Boal. O
Hamlet atravessa essas "memórias imaginadas" como um espectro familiar e
desconfiável. É a peça sempre sonhada e
nunca encenada.
Uma das vertentes deste livro é a do
exame, das preparações, dos projetos e
também das perdas, das ausências. Entre
os escritos de Boal que conheço, esse me
parece dos mais bonitos, porque nele o
não-ser também existe. Não fique sugerido que assim predomina a dor, a elegia
ou o réquiem. Numa de suas definições
do ofício artístico, Boal escreve que o
"teatro é forma de se entender a dor, dominá-la. Fazemos teatro para sermos
maiores do que a dor."
Esse ideal de superação é reafirmado no
último capítulo, quando Boal menciona
um velho caipira do interior de São Paulo, que se julgava imortal porque dizia
que "não aprendeu a morrer". A frase faz
lembrar o ensaio de Montaigne sobre de
como "filosofar é aprender a morrer", título de afinidades hamletianas. Permito-me dizer que estas memórias, feitas de
pequenas crônicas mais ou menos ligeiras, versam também sobre o aprendizado
da morte. É por sua temporalidade extremada, sua leveza de coisa transitória, que
conseguem espelhar o vivido, na medida
indicada por Hamlet, que pede aos atores
que sejam a "crônica sumária e abstrata
do tempo".
Como crônicas que são, os diversos
fragmentos do livro contêm, para além
de vivências individuais, as conquistas e
fracassos de uma época do teatro brasileiro. Para as gerações mais novas, que têm
que lutar contra uma despolitização generalizada da sociedade, as lembranças
de Boal recuperam elementos para um
debate que só muito recentemente voltou
a despertar interesse fora das universidades. Refiro-me às relações entre política e
teatro, que animaram e orientaram a produção de vários grupos nos anos 60, entre
os quais o Teatro de Arena.
É enorme a distância que nos separa
daquela experiência coletiva, em que a
arte do teatro obtinha uma ressonância
maior, não apenas porque procurava formas e assuntos que representassem a urgência dos dias, mas sobretudo porque
estava próxima de movimentos sociais de
transformação dos padrões dominantes.
Arte engajada
Como exemplo deste "tema nosso de
cada dia", Boal conta de uma palestra no
Arena com Jean-Louis Barrault, em que
perguntaram ao ator francês o que pensava da arte engajada. A resposta foi que
política é uma coisa tão estranha ao teatro como um tiro de canhão em uma sinfonia. E ao que consta foi Alberto D'Aversa, o diretor italiano do Teatro Brasileiro
de Comédia (TBC), quem advertiu que,
na "Abertura 1812", de Tchaikovski, ouvem-se várias salvas de canhão em perfeita harmonia com o conjunto.
No conjunto do livro, porém, são raros
momentos como esse, em que a discussão entra no terreno estético. E isso me
parece que prejudica muitas das opiniões
de Boal, inclusive sobre a própria trajetória. Sem entrar no mérito de como o engajamento pode se tornar força estética
produtiva (o que nem sempre ocorre), ao
exteriorizar na obra seu processo de
construção, sem pensar na pesquisa de
formas críticas para conteúdos sociais
manifestos, Boal tende a considerar sua
fase dos anos 60 como a de um "antigo
teatro político", o que faz com que ele
próprio, sem querer, engrosse o coro dos
que julgam a politização do teatro como
sinônimo de doutrinarismo.
Segundo seu depoimento, a maior inquietação dos integrantes do Arena era
sobre qual o destinatário do teatro: "Nosso público era a classe média. Operários e
camponeses eram nossos personagens
(avanço!), mas não espectadores. Fazíamos teatro de uma perspectiva que acreditávamos popular -mas não representávamos para o povo". A procura de uma
platéia popular, idéia que estaria depois
na base da formação do Centro Popular
de Cultura (CPC), levou Boal ao confronto com um suposto limite da ação política
do teatro. Após uma apresentação no interior do Nordeste, de uma peça que incitava à luta contra os latifundiários, um
camponês convidou os atores do elenco a
pegar em armas contra os jagunços de
um coronel da região. Segundo Boal, foi
esse episódio que o fez compreender a
falsidade da forma "mensageira" de teatro político, porque, de acordo com Che
Guevara, "ser solidário é correr o mesmo
risco".
É verdade que a continuação do livro
desmente esse argumento, já que Boal e
todos os artistas críticos do período correram o mesmo risco de vida dos que pegaram em armas. As imagens de sua prisão e tortura, tão vivas e terríveis nos detalhes de seu relato, confirmam que a arte
mensageira do período não pode ser desqualificada pelo grau de concretização
das sugestões simbólicas da cena. Existem formas diferentes de uma mesma luta, e nisso a experiência de Boal fala mais
alto do que suas opiniões.
Mito sem mitificações
O aspecto pelo qual o teatro político pode ser questionado é de ordem estética, e
se liga a problemas de formalização e de
inserção nos mecanismos de produção.
A observação feita por Anatol Rosenfeld
em sua crítica ao "Arena Canta Tiradentes", de que o sistema curinga era aplicado a todas as personagens, menos ao protagonista, o que causava empatia equívoca com o herói, parece não ter sido aceita
até hoje por Boal, que no livro volta ao tema, invocando a seu favor uma espécie
de "mito sem mistificações", uma espécie
de heroísmo necessário em países infelizes. Acho essa idéia estranha e me parece
que o campo de atuação de um teatro de
assuntos sociais é muito maior quando a
radicalidade clássica da visão dialética é
levada às últimas consequências.
A verdade é que Boal sempre teve um
gosto maior por coisas que estão para
além da contemplação estética. E talvez
seja essa vontade de atuar diretamente na
vida que o torne um artista tão notável.
Na tentativa de recontar sua história de
modo a culminar no Teatro do Oprimido
e em suas variantes, Boal comete vários
enganos, como o de desqualificar experiências anteriores, ou o de dizer que foi
"além" do teatro de Brecht ao propor que
o próprio espectador assumisse o controle do pensamento da cena. Diz ele que
"mesmo em Brecht, só o dramaturgo toma a palavra -e com ela o poder!-, e
não o cidadão". E que no Teatro do Oprimido, "invadindo a cena, o espectador,
na ficção do teatro pratica um ato (...).
Transformando a ficção, ele se transforma a si mesmo".
Evidentemente, são fenômenos de propósitos culturais diferentes e a comparação não vem ao caso. A arte pode não ser
a maior das forças de transformação da
sociedade, mas que ninguém despreze
seu poder nas lutas simbólicas. O trabalho de Boal -um grande artista brasileiro, que não perdeu o bonde da história
nem se acomodou no esteticismo ou no
politicismo- está aí para nos lembrar
disso. Em seu hamletiano aprendizado
da morte, para além das "palavras, palavras, palavras", sua ação teatral nos serve
como lição e modelo.
Hamlet e o Filho do Padeiro -
Memórias Imaginadas
Augusto Boal
Record (Tel. 0/xx/21/585-2000)
348 págs., R$ 35,00
Sérgio de Carvalho é dramaturgo, diretor integrante da Companhia do Latão e professor de artes cênicas na Universidade Estadual de Campinas.
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