São Paulo, sábado, 12 de setembro de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice O trabalho da memória
HELOISA DE SOUZA MARTINS
Mesmo reconhecendo que o relato de Hardman consiste em fragmentos da história, estranho a frase "a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências (sic) da Universidade de São Paulo estava, naquelas alturas (início dos anos 70), inteiramente desestruturada". Essa colocação expressa a versão que justificava e dava sentido até mesmo à própria criação da Unicamp (Universidade de Campinas) e que, como se nota, foi interiorizada por todos aqueles que a ela se ligavam na época. Num texto que se propõe mais como memória do que história, isso é até compreensível e aceitável. Mas, se retomarmos a crítica às generalizações apressadas feita por outros autores da coletânea, vemos sob uma nova ótica essa questão. Como o trabalho do cientista social é buscar entender o porquê das versões, situando-as historicamente, superando, portanto, as explicações que consagram uma versão oficial e generalizadora da história, levanto algumas questões no sentido de alargar a análise. A versão mistificadora da Unicamp como a única fonte de resistência político-cultural mais obscurece que contribui para a compreensão da história. Não se trata aqui de outra coisa senão de lembrar a necessidade de recuperar o contexto político e ideológico que cercava a vida universitária no período do regime militar. O próprio Hardman refere-se ao clima de repressão política existente na Unicamp, responsável pelas ambiguidades, ou pela "apologia das metáforas", como define Marco Antonio Guerra em seus comentários. Assim, o mesmo discurso com que Hardman critica "uma certa historiografia oficial das esquerdas", que levou ao ocultamento do movimento operário pré-30, talvez possa ser utilizado para relativizar a taxativa afirmação sobre a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Havia, sim, uma tentativa de desmantelamento da Faculdade desde as aposentadorias compulsórias de importantes cientistas, das prisões e perseguições de alunos e professores, do seu desmembramento em 14 unidades. Um processo iniciado em 1969 (talvez já em 1964) e que se prolongou por longos anos, apesar e contra a resistência daqueles que, assim como seus colegas da Unicamp, continuavam lutando e trabalhando. Principalmente lutando para desmascarar uma "certa história canônica", como diz Hardman, da direita e da esquerda, que procura legitimar a versão da desestruturação completa da Faculdade de Filosofia da USP. Essa mesma preocupação com o confronto entre a versão oficial e a memória nacional aparece nos comentários de Marco Antonio Guerra. Ele destaca o interesse de "resgatar, rever, estudar e redescobrir a própria história que foi tão escamoteada, tão editada, tão cortada, tão desvirtuada por vias oficiais ou por outras interpretações" e a necessidade da "busca dos porquês, daquilo que foi, do que aconteceu". Apesar desse discurso, entretanto, Guerra não deixa de se alinhar à versão mistificadora da Unicamp. Visto que não era possível criar um espaço como o AEL na USP, "da forma como ela se encontrava", e "uma vez que a USP ficou como ficou", aquela instituição universitária surgiu como uma alternativa de reconstrução. É evidente que este é um dos aspectos envolvidos na criação da Unicamp, mas há outros que precisam ser explicitados se quisermos, efetivamente, entender a política universitária da época. Em todas essas colocações há um conjunto de aspectos que desafiam, sem dúvida, o interesse de um bom pesquisador, aquele que valoriza a pesquisa empírica e não se contenta com afirmações apressadas. Mas fico apenas com a questão de como os fragmentos da memória só fazem sentido quando relacionados com o lugar de onde se fala. Será que podemos generalizar o que pode ser característica do espaço em que nos situamos e a partir do qual lançamos o nosso olhar para o passado e até mesmo para o presente? Creio que a resposta está dada em vários dos textos da coletânea, na medida em que afirmam buscar o sentido da história, superando as deformações das diferentes versões da história, a mistificação, a fantasia da memória. Concluindo, tomo outro ponto importante tratado por vários autores. Trata-se do que Marcia de Paula Leite chama de "ciência com consciência", ou seja, o questionamento da neutralidade da ciência e a afirmação de que "o sujeito do conhecimento não se coloca de fora do objeto como um observador neutro". Nesse sentido, ela se aproxima da proposta de Daniel James, feita na sessão sobre o movimento operário, de uma ciência feita a partir do compromisso ético e político, da solidariedade para com os trabalhadores, que define não só a história do movimento operário que se pretende construir, como também o reconhecimento da necessidade de preservação da memória e da tradição da classe trabalhadora. Isso não significa, entretanto, como entende Claudio Batalha, que Daniel James proponha um pesquisador militante, mas sim um pesquisador que, além do compromisso com a razão científica, não se descomprometa com os dominados e excluídos sociais. Trata-se de uma afirmação ética das mais significativas neste tempo marcado pelo individualismo e pela crença absoluta na razão e na técnica. O compromisso e a ética na pesquisa, reafirmados do primeiro ao último texto da coletânea, parecem-me perfeitamente adequados à celebração dos 20 anos do arquivo e uma justa homenagem ao seu patrono Edgard Leuenroth. Heloisa Helena T. de Souza Martins é professora no departamento de sociologia da USP e autora de "Igreja e Movimento Operário no ABC- 1954-1975" (Hucitec). Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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