São Paulo, sábado, 13 de março de 2004

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A DANÇA BRASILEIRA

A criação do bailado nacional

LEOPOLDO WAIZBORT

"A Formação do Balé Brasileiro" possui três méritos e alguns problemas. Os primeiros podem ser facilmente indicados: toma a dança como um objeto digno de história e reflexão, procura investigar o problema de uma "dança brasileira" e apresenta materiais há muito adormecidos em jornais e arquivos. Já os segundos são mais difíceis de apresentar em curta resenha. Em geral, o problema é que faltou potencializar as qualidades com reflexão, faltou refletir de fato sobre o problema enunciado no título e modelado historicamente nos materiais coligidos. O primeiro equívoco é o uso por demais instrumentalizado da noção de "formação", em uma história que é concebida institucionalmente: o núcleo da investigação é uma análise parcial de duas temporadas do balé do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1939 e 1943. Com efeito, a "formação" de que se fala é antes análise de caso bastante limitado, e jamais compreensão de uma estrutura histórica em processo. Trata-se na verdade do surto do período getulista, que, tendo na música expressão bem nítida, encontrou também na dança um "locus" privilegiado de modelagem: a velha discussão do nacional, erudito e popular, a criação do bailado nacional. Uma empresa claramente ideológica, um empreendimento de Estado que mobilizou coreógrafos, dançarinos, professores, cenógrafos, compositores, regentes, orquestras, escolas de dança, corpo de baile, críticos, prefeito, primeira-dama, intelectuais, ministro, jornais, DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), cinema, cassino, política de boa vizinhança, teatros de variedades e teatro municipal e muito mais.

VILLA-LOBOS IDEÓLOGO
T al dimensão configura desde o mais íntimo a empreitada, embora o livro só a destaque em seu capítulo final, quando então já é tarde demais para mostrar como, o tempo todo, era disso que se tratava. Há mais de 20 anos, José Miguel Wisnik ("O Coro dos Contrários", ed. Duas Cidades) demonstrou com clareza o problema no domínio da música ("casamento de arte e política" visando a "orquestrar a sociedade dividida"); o mesmo seria de se esperar com relação à dança, pois a proximidade é flagrante, sem desmerecer as especificidades. Assim, para exemplificar, ao Villa-Lobos ideólogo (no texto, dos anos 1940, "Educação Musical"), que propagandeia o amálgama de canto e dança "para criar uma nova forma de bailados tipicamente brasileiros", corresponde, "mutatis mutandis", a bailarina Eros Volúsia, recentemente morta, nomeada por Gustavo Capanema para expressivo cargo público e cumpridora fidedigna da ideologia de Estado. É o que se vê em seu texto, tão programático quanto o de Villa, "A Criação do Bailado Nacional" (1939), transcrito no livro. "Nacionalismo" e "estilização", então, precisariam ser compreendidos em sua tessitura ideológica e artística, entrelaçamento complexo no qual se constituiria um nexo de forma artística e processo social, velha rubrica deixada de lado pelo autor. A mesma tessitura pede atenção na discussão das "danças nacionais", pois elas mesmas são, uma vez retiradas de seu contexto de origem (local, "comunitário"), móveis ideológicos, empenhados na construção de uma identidade "nacional"; ou, dito de outro modo, é preciso expor a construção interessada que cria as "danças nacionais", estereotipização como expressão de um "temperamento". Isso, ademais, toca a questão da "estilização", que é sempre um problema espinhoso e cuja única solução, creio, seria analisar no maior detalhe a dança, no conjunto de seus elementos constitutivos. E é o próprio autor quem não dá a devida atenção à especificidade da dança, pois não avança na compreensão do recorrentemente mencionado "corpo que dança": como sabemos, desde Norbert Elias e Michel Foucault, produto de relações de poder, social, histórico, e jamais dado em uma naturalidade inocente. A criação de um "corpo brasileiro" e sua relação com o "bailado brasileiro" precisaria ser pensada concretamente: um corpo específico, criado e adestrado com uma finalidade específica; o corpo como resultado, "dominação da natureza no ser humano", como revelou magistralmente, com relação à dança, um aluno de Adorno. Mas agora, ao mesmo tempo, lugar da inscrição ideológica, o corpo encarna o nacional, popular e erudito finalmente pacificados. Ao revés da interpretação intentada por Roberto Pereira, a leitura do livro sugere não a "formação", mas sim um processo marcado por descontinuidades e carência ou dificuldade de acumulação, com semelhanças, a serem investigadas, como o que Paulo Emílio Sales Gomes formulou com relação à "trajetória no subdesenvolvimento" do cinema nacional, donde ter falado, acima, em "surto". O sugestivo enfoque de Paulo Emílio diz mais sobre a (im)possibilidade de formação da dança no Brasil do que o malabarismo de Pereira para descobrir na dança um processo de formação similar ao da literatura. Donde minha opinião, potencializando os anacronismos históricos que perpassam o problema e que Pereira por vezes assinala, de que não há propriamente um processo formativo na dança nacional, mas uma série descontínua e não cumulativa de surtos, um dos quais o estudado no livro. A descontinuidade encontra lastro histórico no próprio processo de diferenciação das formas de dança cênica, pois, quando se intenta criar o "bailado nacional" sob as forças históricas do balé (no Theatro Municipal), este, em parte esgotado como norma histórica específica, já se encontrava acometido pela concorrência de outras danças cênicas modernas, que lhe questionavam com enorme ímpeto histórico e artístico a exclusividade. Mas, com isso, já estamos para além dos marcos do livro de Roberto Pereira, o que demonstra uma quarta e grande qualidade sua, a de abrir campo para pensar os problemas da dança no Brasil.


LEOPOLDO WAIZBORT é professor de sociologia na USP e autor de "As Aventuras de Georg Simmel" (ed. 34)

A Formação do Balé Brasileiro - Nacionalismo e Estilização Roberto Pereira Ed. FGV (Tel.0/xx/21/2559-5542) 315 págs. R$ 38,00



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