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ARQUEOLOGIA COGNITIVA
As origens da arte, da religião e da ciência
RENATO DA SILVA QUEIROZ
A mente dos humanos modernos produz conhecimentos e os redireciona para
propósitos diversos daqueles aos quais
se aplicavam originalmente. Tal capacidade mental requer um cérebro poderoso e multifacetado, organizado de tal
modo que os processos cognitivos em
seu interior, a despeito de especializados,
possam fluir e recombinar-se sem restrições. Disso decorrem a flexibilidade e a
criatividade do comportamento humano. O surgimento desse tipo de mente,
única entre os seres viventes, é produto
de um longo trajeto evolucionário, cuja
pormenorizada reconstituição encontra-se neste instigante livro de Steven Mithen, arqueólogo inglês que, para tanto,
recorre a saberes da biologia, antropologia e psicologia, entre outras disciplinas
científicas.
Todavia é o método arqueológico que
o conduz pelas sendas das demonstrações. "Se quiserem conhecer a mente,
não procurem apenas psicólogos e filósofos: certifiquem-se de também procurar um arqueólogo", adverte Mithen, enfatizando que a mente humana resulta
tanto da nossa história evolutiva quanto
dos contextos em que os indivíduos se
desenvolvem.
A mente dos humanos modernos é
fruto do processo de expansão cerebral,
conhecido como "encefalização", e do
desenvolvimento de inteligências especializadas, cujos conhecimentos, antes
nelas aprisionados, se integraram graças
ao mecanismo gerenciador exercido pela
consciência. Essas inteligências múltiplas -e o autor propõe a existência de
pelo menos quatro delas: social, naturalista, técnica e lingüística-, que se foram desenvolvendo de forma mais ou
menos estanque ao longo do processo
evolucionário, em resposta a numerosas
pressões seletivas, se integraram, finalmente, na transição do Paleolítico Superior ao Médio. Pode-se identificar o período em que se deu tal integração, caracterizada por uma enorme fluidez cognitiva, observando-se as primeiras manifestações de percepção estética traduzidas em obras de arte (figuras esculpidas e
pinturas rupestres) e a emergência de representações religiosas.
Escassas são as peças que se oferecem à
reconstituição da pré-história da mente
humana. Até o aparecimento das primeiras modalidades de escrita, surgidas
há uns 5.000 anos, os vestígios que nos
foram legados pelos nossos ancestrais
nos últimos 2,5 milhões de anos não vão
muito além de utensílios de pedra, restos
de alimentos, figuras fixadas em pequenas esculturas e pinturas rupestres. Entretanto esse exíguo material, submetido
ao rigoroso exame do autor e por ele
confrontado com o comportamento de
chimpanzés e grupos de caçadores-coletores modernos, conferiu suporte às suas
convincentes interpretações.
Um dos fundamentos da reconstituição empreendida por Mithen é o princípio da recapitulação, segundo o qual a
ontogenia recapitula a filogenia, postulando o autor que se podem vislumbrar
nas etapas de desenvolvimento mental
da criança as fases da evolução cognitiva
dos nossos ancestrais. Nessa medida,
tem-se, num primeiro período evolucionário, uma inteligência geral, indiferenciada, incapaz de sustentar a elaboração
de padrões complexos de comportamento, inteligência suficiente apenas para a aquisição de condutas relativamente
simples, sujeitas a erros freqüentes e dependentes de um ritmo lento de aprendizado. Depois, despontam as inteligências
especializadas, cada uma delas tomando
conta de um domínio comportamental
específico, com o que se amplia a capacidade das operações cognitivas.
Ocorre, porém, que nessa etapa intermediária os conhecimentos pertinentes
a cada um dos domínios ainda estão
contidos em seus módulos específicos (a
imagem é a das lâminas de um canivete
suíço), não se verificando, pois, significativo fluxo de informações entre eles. Finalmente, adquire-se a fluidez cognitiva,
donde a dramática ampliação das capacidades mentais e a plena configuração
da mente do homem moderno -criativa, flexível e imaginativa.
SELEÇÃO NATURAL
O mais importante arquiteto da mente, a seleção natural, processo lento e gradual, desprovido
de direção ou de objetivos predeterminados, terminou por favorecer a integração das inteligências múltiplas, dando
margem à riqueza dos processos mentais, que se traduzem em metáforas e
analogias, e à nossa inesgotável imaginação. Dessa perspectiva, a capacidade
simbólica e os estados mentais que se expressam por meio da arte, da religião e
da ciência, criações exclusivas do homem moderno, já germinavam nas
mentes de nossos ancestrais.
Steven Mithen rastreou o percurso da
construção dessa mente dotada de fluidez cognitiva, sem a qual os humanos seriam incapazes de construir e representar o ambiente culturalmente complexo
que fizeram para si mesmos. Em seus
comportamentos se entranham dimensões práticas e simbólicas, neles interligando-se profundamente a manipulação
e a transformação de objetos físicos,
coordenadas pela inteligência técnica, a
interação com o mundo natural, orientada pela inteligência naturalista, a habilidade de reconhecer indivíduos e inferir
os seus estados mentais, favorecida pela
inteligência social, e a aquisição e os múltiplos usos da linguagem, possibilitados
pela inteligência linguística.
O autor data as primeiras formas de expressão artística em aproximadamente
40 mil anos, situando-as no continente
europeu e na "explosão criativa" do Paleolítico Superior. Contudo novas descobertas parecem localizá-las em terras
africanas, há uns 80 mil anos. Mesmo estando corretas essas derradeiras estimativas, vê-se que a emergência do homem
moderno é bastante recente.
Logo, prematura pareceria qualquer
conclusão quanto à capacidade dessa
mente, tão complexa e cognitivamente
tão fluida, de prover a nossa espécie não
só das artes de subsistência como também -e sobretudo- de uma ciência
que nos proteja da extinção.
RENATO DA SILVA QUEIROZ é professor do
departamento de antropologia da USP.
A Pré-História da Mente Steven Mithen
Tradução de Laura Cardellini Barbosa de Oliveira
Ed. Unesp (Tel. 0/xx/11/3242-7171)
426 págs. R$ 45,00
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