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Memorial das íntimas ocorrências
VILMA ARÊAS
À semelhança do excepcional "Os Corpanzis",
publicado em 1989 e detentor do prêmio Maurício Rosenblatt de romance,
"Bolha de Luzes", segundo livro
de João Inácio Padilha, exige ruminação vagorosa para que todas
as alusões venham à tona e para
que se siga a linha fina de seu desenho, longe entretanto da mera
elegância dos que supostamente
"escrevem bem".
Nisso o autor se irmana aos bons
prosadores da ficção contemporânea brasileira, para quem o tempo
presente é uma questão e um desafio. Estão longe portanto das
formas despachadas e tagarelas
que encontramos no mercado, às
vezes tecnicamente tão lavadas
que acabam por indicar apenas
ausência de problemas, distância
da necessidade vital de escrever
que -se realmente existe- aflora na página, abalando o leitor.
Tal necessidade encontramos na
ficção a que me referi em primeiro
lugar, realizando-se hoje entre
nós -mas não apenas entre
nós- mediante formas em geral
breves, entretanto algo emperradas, lentas, certamente porque à
caça de soluções. (Basta-nos pensar no livro recente de Rodrigo
Naves, "O Filantropo", cujos brevíssimos textos escorrem devagar
como uma gota de óleo).
Talvez intuir a contemporaneidade suponha tensionar subjetividade e esforço objetivo de compreender o circundante, eventualmente depondo contra ele sem
outra escolha que não seja a de
testemunha de acusação, no interior das formas quebradiças do
que afinal se chama literatura.
Estando de fora a fantasia da intervenção social, indiscutível no
século passado e inícios deste, parece que o dilema se coloca assim
em "Bolha de Luzes": haverá fidelidade ou apaziguamento possível entre mundo e imagem do
mundo, equilibrados nem que seja por um brevíssimo instante?
Em segundo lugar, haverá alguma
estratégia eficaz para que se aprisionem tais imagens em seu espaço próprio, livrando-as do esquecimento ou da mera irrelevância?
A epígrafe dos "Animales de los
Espejos", de Jorge Luis Borges,
que introduz um dos melhores
textos do volume, "Memorial do
Esquecimento", fala dessa tensão
e dessa guerra.
É tempo afinal de descrever o livro. Trata-se de 13 relatos que narram histórias talvez acontecidas,
talvez não. Não passam de "íntimas ocorrências", afirmam Clara
e Francisco Alvim, na orelha, "vivem dentro de bolhas, essas opacas e úmidas películas placentárias que as sustém na imaginação
absorta, na memória e, sobretudo, no esquecimento". (João Inácio é um apaixonado pelas tramas
apertadas e disfarçadas em "rêverie").
Às vezes essas histórias se organizam de forma vigorosamente
realista, em outros textos é a fantasia que predomina, o que de
maneira alguma significa arbítrio
ou alheamento, e que é geralmente ritmada por "passadas no
chão, reais e decididas" (o leitor
não se extraviará nas "Instruções
Finais" que encerram o livro).
Entretanto, a despeito do interesse pela trama das histórias, desenroladas -ou enroladas- por
meio do fio caprichoso da prosa
de João Inácio, o que mais me interessa é o tom desses textos, enviesado pela tração entre experiência direta e as "íntimas ocorrências", entre o que ocorreu e o
que jamais ocorrerá, exalando o
hálito de sua "secreta vida", mas
não pela boca: "Por algum outro
orifício qualquer, que tenho tantos". Portanto o tom é sombreado
e baixo, apesar de certas transparências, salpicando-se a limpeza
da fatura -que sempre implica
distâncias- com o humor, a ironia, o sarcasmo ou a pura melancolia, tão próximos de nós, leitores.
A OBRA
Bolha de Luzes
João Inácio Padilha
Companhia das Letras (Tel. 011/866-0801)
142 págs., R$ 18,00
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Do meu ponto de vista, os melhores textos são o primeiro, homônimo do livro, seguindo-se
"Memorial do Esquecimento",
"Viagens e Viajantes na História
da Literatura", que acrescenta ao
Machado paisagista de Bastide esse agora Machado viajante e "O
Fenomenólogo dos Clarões".
Embora com traços individuais,
esses textos também se articulam
entre si e com as artes plásticas e a
literatura, tradicional ou recente,
que João Inácio comenta ou parodia, alterando às vezes as escalas.
Por exemplo, coincidência ou
não, o estado de violência crônica
do Brasil, se assume certa coloração kafkiana no primeiro conto,
pelo tratamento específico das fábulas de bichos, desequilibra a escala de um texto como o "Passeio
Noturno", de Rubem Fonseca,
alargando superfícies e referências. O que é episódico em Rubem, embora emblemático da
violência do Brasil de 75 -não
por acaso o livro foi censurado e
recolhido, não sei se se lembram-, em João Inácio irradia-se
em várias direções no tempo. A
referência extrema traz Goya ao
proscênio, Goya, o "anjo canino", com seu furioso sarcasmo
contra a sociedade retrógada e carola de seu tempo, exibindo com
paixão os monstros gerados pelo
sono da racionalidade. (Imagino
-sem forçar inspirações diretas- que a iluminação da cena fúnebre em Padilha, aquelas luzes
que se cruzam formando uma
"conjunção de focos" e "uma
bolha de luzes", ajusta-se perfeitamente ao halo amarelo daquela
enorme lanterna cúbica iluminando o "Fuzilamento", de Goya). Por outro lado -também
sem nenhuma insinuação de "influências"-, aconselho ao leitor
"Os que Passam por Nós Correndo", de Kafka (em "Contemplação e O Foguista"), que inverte o
movimento da cena violenta e a
textura das tintas, sem exclusão de
seu caráter abjeto.
Talvez "Memorial do Esquecimento" e "O Fenomenólogo dos
Clarões" sejam as narrativas mais
intimamente ligadas, pois o individual e o histórico estão mais do
que nunca na alça de mira de João
Inácio. Serão esses tiros mortais?
Talvez o sentido do precário e do
casual -a arte é um fogo de palha
que brilha um único momento na
imaginação de um cego, sem suporte que a preserve- seja o que
dirige o texto às cores foscas da
melancolia, da angústia do esquecimento e dos becos sem saída da
história.
Vilma Arêas é professora de teoria literária da
Universidade Estadual de Campinas e autora da
"Terceira Perna" (Brasiliense).
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