São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999
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Memorial das íntimas ocorrências

VILMA ARÊAS

À semelhança do excepcional "Os Corpanzis", publicado em 1989 e detentor do prêmio Maurício Rosenblatt de romance, "Bolha de Luzes", segundo livro de João Inácio Padilha, exige ruminação vagorosa para que todas as alusões venham à tona e para que se siga a linha fina de seu desenho, longe entretanto da mera elegância dos que supostamente "escrevem bem".
Nisso o autor se irmana aos bons prosadores da ficção contemporânea brasileira, para quem o tempo presente é uma questão e um desafio. Estão longe portanto das formas despachadas e tagarelas que encontramos no mercado, às vezes tecnicamente tão lavadas que acabam por indicar apenas ausência de problemas, distância da necessidade vital de escrever que -se realmente existe- aflora na página, abalando o leitor. Tal necessidade encontramos na ficção a que me referi em primeiro lugar, realizando-se hoje entre nós -mas não apenas entre nós- mediante formas em geral breves, entretanto algo emperradas, lentas, certamente porque à caça de soluções. (Basta-nos pensar no livro recente de Rodrigo Naves, "O Filantropo", cujos brevíssimos textos escorrem devagar como uma gota de óleo).
Talvez intuir a contemporaneidade suponha tensionar subjetividade e esforço objetivo de compreender o circundante, eventualmente depondo contra ele sem outra escolha que não seja a de testemunha de acusação, no interior das formas quebradiças do que afinal se chama literatura.
Estando de fora a fantasia da intervenção social, indiscutível no século passado e inícios deste, parece que o dilema se coloca assim em "Bolha de Luzes": haverá fidelidade ou apaziguamento possível entre mundo e imagem do mundo, equilibrados nem que seja por um brevíssimo instante? Em segundo lugar, haverá alguma estratégia eficaz para que se aprisionem tais imagens em seu espaço próprio, livrando-as do esquecimento ou da mera irrelevância? A epígrafe dos "Animales de los Espejos", de Jorge Luis Borges, que introduz um dos melhores textos do volume, "Memorial do Esquecimento", fala dessa tensão e dessa guerra.
É tempo afinal de descrever o livro. Trata-se de 13 relatos que narram histórias talvez acontecidas, talvez não. Não passam de "íntimas ocorrências", afirmam Clara e Francisco Alvim, na orelha, "vivem dentro de bolhas, essas opacas e úmidas películas placentárias que as sustém na imaginação absorta, na memória e, sobretudo, no esquecimento". (João Inácio é um apaixonado pelas tramas apertadas e disfarçadas em "rêverie").
Às vezes essas histórias se organizam de forma vigorosamente realista, em outros textos é a fantasia que predomina, o que de maneira alguma significa arbítrio ou alheamento, e que é geralmente ritmada por "passadas no chão, reais e decididas" (o leitor não se extraviará nas "Instruções Finais" que encerram o livro).
Entretanto, a despeito do interesse pela trama das histórias, desenroladas -ou enroladas- por meio do fio caprichoso da prosa de João Inácio, o que mais me interessa é o tom desses textos, enviesado pela tração entre experiência direta e as "íntimas ocorrências", entre o que ocorreu e o que jamais ocorrerá, exalando o hálito de sua "secreta vida", mas não pela boca: "Por algum outro orifício qualquer, que tenho tantos". Portanto o tom é sombreado e baixo, apesar de certas transparências, salpicando-se a limpeza da fatura -que sempre implica distâncias- com o humor, a ironia, o sarcasmo ou a pura melancolia, tão próximos de nós, leitores.

A OBRA
Bolha de Luzes João Inácio Padilha Companhia das Letras (Tel. 011/866-0801) 142 págs., R$ 18,00



Do meu ponto de vista, os melhores textos são o primeiro, homônimo do livro, seguindo-se "Memorial do Esquecimento", "Viagens e Viajantes na História da Literatura", que acrescenta ao Machado paisagista de Bastide esse agora Machado viajante e "O Fenomenólogo dos Clarões".
Embora com traços individuais, esses textos também se articulam entre si e com as artes plásticas e a literatura, tradicional ou recente, que João Inácio comenta ou parodia, alterando às vezes as escalas. Por exemplo, coincidência ou não, o estado de violência crônica do Brasil, se assume certa coloração kafkiana no primeiro conto, pelo tratamento específico das fábulas de bichos, desequilibra a escala de um texto como o "Passeio Noturno", de Rubem Fonseca, alargando superfícies e referências. O que é episódico em Rubem, embora emblemático da violência do Brasil de 75 -não por acaso o livro foi censurado e recolhido, não sei se se lembram-, em João Inácio irradia-se em várias direções no tempo. A referência extrema traz Goya ao proscênio, Goya, o "anjo canino", com seu furioso sarcasmo contra a sociedade retrógada e carola de seu tempo, exibindo com paixão os monstros gerados pelo sono da racionalidade. (Imagino -sem forçar inspirações diretas- que a iluminação da cena fúnebre em Padilha, aquelas luzes que se cruzam formando uma "conjunção de focos" e "uma bolha de luzes", ajusta-se perfeitamente ao halo amarelo daquela enorme lanterna cúbica iluminando o "Fuzilamento", de Goya). Por outro lado -também sem nenhuma insinuação de "influências"-, aconselho ao leitor "Os que Passam por Nós Correndo", de Kafka (em "Contemplação e O Foguista"), que inverte o movimento da cena violenta e a textura das tintas, sem exclusão de seu caráter abjeto.
Talvez "Memorial do Esquecimento" e "O Fenomenólogo dos Clarões" sejam as narrativas mais intimamente ligadas, pois o individual e o histórico estão mais do que nunca na alça de mira de João Inácio. Serão esses tiros mortais? Talvez o sentido do precário e do casual -a arte é um fogo de palha que brilha um único momento na imaginação de um cego, sem suporte que a preserve- seja o que dirige o texto às cores foscas da melancolia, da angústia do esquecimento e dos becos sem saída da história.


Vilma Arêas é professora de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas e autora da "Terceira Perna" (Brasiliense).


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