São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999 |
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A prosa dos diplomatas
RENATO JANINE RIBEIRO
Ora, nas negociações, nossa antiga metrópole é humilhada seguidas vezes. A Espanha, que ainda não lhe engoliu a secessão, nega-lhe lugar à mesa de tratativas que encerra a guerra dos 30 Anos; França e Inglaterra, embora seus aliados, abandonam Portugal sempre que lhes convém. A posição subalterna desse país é o pano de fundo deste livro -que assim se abre para duas questões adicionais. A primeira é a da diplomacia. Ex-embaixador do Brasil em Barbados, Evaldo Cabral de Mello aqui se dedica, como nunca antes o fizera, à minúcia da negociação. Esta, embora eventualmente árida, constitui excelente chão para mostrar como as políticas nacionais e internacionais se ligam: leiam-se, por exemplo, suas páginas notáveis sobre o papel da opinião pública, mas também o da corrupção, num regime republicano como o dos Países Baixos, ou a bela análise da monarquia portuguesa, ainda não absolutista, em que o rei precisa sempre convencer os colegiados que o rodeiam, ou enfrentar uma Inquisição que é um verdadeiro Estado no Estado. Mas as relações internacionais também apontam outro rumo. Nosso século 20 pertenceu à economia, que dos anos 20 até ainda hoje fingiu triunfar (e o século parece terminar com ela escondendo seu fracasso, seu crime); ainda acreditamos nela, apesar de seu desastre; e ela nos acostumou a pensar que os atores políticos obedeçam a uma racionalidade, que é a de seus interesses. Olhando, porém, de perto, vê-se que nem na economia se procede racionalmente, porque a busca da vantagem imediata muitas vezes sacrifica o interesse de longo prazo e mais sólido. E o interessante na análise de Evaldo sobre portugueses e holandeses é que ele, praticante da história das mentalidades em outras obras suas, sabe mostrar o descompasso entre o interesse e a consciência que temos dele, entre a previsão seca e o desejo fremente, enfim, esse território vasto da ilusão que, no fundo, é o que mobiliza as pessoas e as massas. Afinal, se os portugueses não estivessem errados sobre a importância que ainda podiam exercer na cena do mundo, será que se teriam empenhado em lutar contra a Espanha, ou em recuperar de Holanda as terras que permitiriam a sobrevida do reino? Daí que, nesse livro sóbrio, talvez o mais sóbrio dos que escreveu, Evaldo deixe pairar sempre um quê de drama, ou mesmo de tragédia. De que serve tanto empenho, tanto furor, se o resultado é pequeno? É certo que jamais Evaldo critica o resultado das negociações luso-neerlandesas, ou porque salva o reino, ou porque preserva o Brasil com a unidade que lhe conhecemos; mas não há como ignorar um Portugal humilhado a cada página. Pois bem podem os luso-brasileiros vencer os neerlandeses, em sucessivas batalhas; isso apenas reduz o montante de dinheiro a lhes pagar. Há uma guerra heróica, em terra, na colônia, da qual Evaldo mal fala, porque sobejamente conhecida; mas, a seu espírito épico, contrapõe-se o prosaísmo dos negociadores. Porque talvez, no fundo, o que faça a diplomacia, pelo menos esta que relata Evaldo, seja converter em prosa, ou mesmo em matéria prosaica, e portanto em paz, o clamor que ressoa na guerra distante, ou a indignação que mobiliza as massas de Lisboa e as dos Países Baixos, umas e outras -mas em diferentes datas- revoltadas com a entrega da colônia. Tornar acordo a guerra, tornar prosa a épica, tornar futuro um passado que pesava: talvez seja esta a melhor tarefa da diplomacia. Renato Janine Ribeiro é professor de filosofia política na USP e autor, entre outros livros, de "A Última Razão dos Reis" (Cia. das Letras). Texto Anterior: Vilma Arêas: Memorial das íntimas ocorrências Próximo Texto: Angela de Castro Gomes: Imaginário e poder Índice |
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