São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999
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A prosa dos diplomatas

RENATO JANINE RIBEIRO

Em seu livro mais recente, Evaldo Cabral de Mello se volta para as longas negociações entre Portugal e os Países Baixos pela volta do Nordeste ao Brasil, realçando a história diplomática e não mais, como antes fez, as mentalidades. Essa obra é importante não só para o historiador de profissão, mas para o leigo interessado na construção de nosso país, e é para ele que vou levantar algumas questões que ela favorece.
Evaldo desfere rude golpe no orgulho, ou mesmo na auto-estima, daqueles que sempre viram na expulsão dos holandeses de Pernambuco, em 1654, uma vitória alcançada pela gente pátria, na ponta das armas, sobre o invasor. E isso não porque recorde que não havia Brasil na época e, portanto, o conflito se dava entre duas potências coloniais, ambas sequiosas de pilhar uma colônia rica. Mas porque mostra, com farta documentação, que, mesmo vencidos os holandeses no campo de batalha, Portugal precisou tratar longamente com eles, e pagá-los, para obter domínio manso e inconteste sobre a colônia do Nordeste.
Mais que isso: Evaldo argumenta que, não fosse a volta do Nordeste ao Brasil, nosso país não existiria. Sem a jóia de sua economia, então centrada no açúcar, o restante da colônia careceria de importância. Em vez de um país, teríamos hoje pelo menos três: um Nordeste de cultura calvinista e holandesa, um Brasil "downsized" e "downgraded" ao sul dele e uma Amazônia de fala portuguesa, mas separada do mini-Brasil sulista.
Essa questão, embora seja tratada rapidamente no livro (só no prefácio), merece destaque, sobretudo em tempos de preconceito do Sul contra o Nordeste: ou porque, em termos de nossas raízes, o Brasil é o que é por ter nascido do açúcar pernambucano e nordestino, ou porque, em termos do que poderíamos chamar uma lição da história, uma moral a dela extrair, assim como o Nordeste teve seu auge e depois decaiu, nada garante que o Sul, que hoje detém a hegemonia no Brasil, mantenha essa posição por muito tempo; a prudência, a moderação sempre foi algo que se aprendia com a história, e talvez isso volte a ser oportuno.
Sem o Brasil -isto é, sem o Nordeste-, Portugal não teria conseguido sua independência de Espanha. E isso exige que leiamos as páginas de Evaldo com um sentimento a respeito do qual ele é discreto, mas que me parece o mais adequado a sua matéria: o da tragicidade.
Portugal, ao se restaurar de 60 anos de domínio espanhol, não pode manter-se sem as colônias. Mas, destas, não pode conservar todas e precisa priorizar a mais rica, o Brasil (que, repito, era sobretudo o Nordeste açucareiro). Pode muito bem o povo português não ter noção disso, mas têm-na o rei e vários de seus principais. Daí que recorram a tudo o que possa trazer-lhes de volta a jóia da coroa.
Isso significa -a par das lutas armadas que depois enriquecerão a memória brasileira, que no século 19 anexará ao heroísmo nacional esse momento precursor, apagando nele o que era luso-brasileiro para só enfatizar o que prenunciava o Brasil- apostar pesadamente nas negociações. Sabia-se delas havia muito tempo, entre os historiadores, mas nem eles sabiam que tiveram peso tão grande (as negociações eram vistas como complemento da verdadeira ação portuguesa, que seria a guerra na colônia).

A OBRA
O Negócio do Brasil - Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669 Evaldo Cabral de Mello Topbooks (Tel. 021/233-8718) 273 págs., R$ 33,00



Ora, nas negociações, nossa antiga metrópole é humilhada seguidas vezes. A Espanha, que ainda não lhe engoliu a secessão, nega-lhe lugar à mesa de tratativas que encerra a guerra dos 30 Anos; França e Inglaterra, embora seus aliados, abandonam Portugal sempre que lhes convém. A posição subalterna desse país é o pano de fundo deste livro -que assim se abre para duas questões adicionais.
A primeira é a da diplomacia. Ex-embaixador do Brasil em Barbados, Evaldo Cabral de Mello aqui se dedica, como nunca antes o fizera, à minúcia da negociação. Esta, embora eventualmente árida, constitui excelente chão para mostrar como as políticas nacionais e internacionais se ligam: leiam-se, por exemplo, suas páginas notáveis sobre o papel da opinião pública, mas também o da corrupção, num regime republicano como o dos Países Baixos, ou a bela análise da monarquia portuguesa, ainda não absolutista, em que o rei precisa sempre convencer os colegiados que o rodeiam, ou enfrentar uma Inquisição que é um verdadeiro Estado no Estado.
Mas as relações internacionais também apontam outro rumo. Nosso século 20 pertenceu à economia, que dos anos 20 até ainda hoje fingiu triunfar (e o século parece terminar com ela escondendo seu fracasso, seu crime); ainda acreditamos nela, apesar de seu desastre; e ela nos acostumou a pensar que os atores políticos obedeçam a uma racionalidade, que é a de seus interesses.
Olhando, porém, de perto, vê-se que nem na economia se procede racionalmente, porque a busca da vantagem imediata muitas vezes sacrifica o interesse de longo prazo e mais sólido. E o interessante na análise de Evaldo sobre portugueses e holandeses é que ele, praticante da história das mentalidades em outras obras suas, sabe mostrar o descompasso entre o interesse e a consciência que temos dele, entre a previsão seca e o desejo fremente, enfim, esse território vasto da ilusão que, no fundo, é o que mobiliza as pessoas e as massas.
Afinal, se os portugueses não estivessem errados sobre a importância que ainda podiam exercer na cena do mundo, será que se teriam empenhado em lutar contra a Espanha, ou em recuperar de Holanda as terras que permitiriam a sobrevida do reino?
Daí que, nesse livro sóbrio, talvez o mais sóbrio dos que escreveu, Evaldo deixe pairar sempre um quê de drama, ou mesmo de tragédia. De que serve tanto empenho, tanto furor, se o resultado é pequeno? É certo que jamais Evaldo critica o resultado das negociações luso-neerlandesas, ou porque salva o reino, ou porque preserva o Brasil com a unidade que lhe conhecemos; mas não há como ignorar um Portugal humilhado a cada página.
Pois bem podem os luso-brasileiros vencer os neerlandeses, em sucessivas batalhas; isso apenas reduz o montante de dinheiro a lhes pagar. Há uma guerra heróica, em terra, na colônia, da qual Evaldo mal fala, porque sobejamente conhecida; mas, a seu espírito épico, contrapõe-se o prosaísmo dos negociadores.
Porque talvez, no fundo, o que faça a diplomacia, pelo menos esta que relata Evaldo, seja converter em prosa, ou mesmo em matéria prosaica, e portanto em paz, o clamor que ressoa na guerra distante, ou a indignação que mobiliza as massas de Lisboa e as dos Países Baixos, umas e outras -mas em diferentes datas- revoltadas com a entrega da colônia. Tornar acordo a guerra, tornar prosa a épica, tornar futuro um passado que pesava: talvez seja esta a melhor tarefa da diplomacia.


Renato Janine Ribeiro é professor de filosofia política na USP e autor, entre outros livros, de "A Última Razão dos Reis" (Cia. das Letras).


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