São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999 |
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O parceiro de Mozart
FRANKLIN DE MATOS
Chegou a Nova York em 1805. Para encurtar a história, nos seus 30 e tantos anos de América, tentou até se tornar comerciante de especiarias na Pensilvânia, mas foi com seu trabalho intelectual que sobreviveu e sustentou a família: retomou o negócio dos livros e ensinou língua e literatura italianas para a elite de Nova York. O gênio e o aventureiro A biografia de Lorenzo Da Ponte não tem os mesmos lances teatrais que marcaram a vida de Casanova, mas revela um personagem similar. Os dois se parecem em várias coisas: tentaram a vida eclesiástica; foram "confidentes" -quer dizer, espiões- a serviço de Veneza (e calaram-se sobre o tema em suas "Memórias"); viram-se obrigados a deixar às pressas várias cidades em que viveram (entre 1759 e 1771, contam-se 11 expulsões na vida de Casanova!). Mas há algo mais decisivo: tanto um quanto o outro encarnam uma figura típica do século 18, o aventureiro das letras, que se desloca incessantemente à procura de trabalho e põe seu talento a serviço de um príncipe, um ministro ou um rico particular. O aventureiro fascina e inquieta, explicam os historiadores, porque sua mobilidade anuncia o fim de uma sociedade rigidamente hierarquizada. Para bem compreender essa figura, não custa ter presente as mudanças nas relações entre o homem de letras (ou o artista) e a vida social. Nesse sentido, o caso de Mozart é muito instrutivo. Num livro célebre, Norbert Elias argumenta que o desfecho trágico da vida de Mozart, que morreu abandonado pelo público vienense, pode ser explicado em pouquíssimas palavras: Mozart foi "um gênio antes da época dos gênios" (1). Na Alemanha e na Áustria do século 18, se quisesse sobreviver, o músico tinha de obter um posto na rede das instituições da corte e seguir os padrões de gosto da audiência, socialmente superior a ele. Ao deixar Salzburgo -onde vivia a serviço do príncipe-arcebispo-, em 1777 e 1781, seguindo primeiramente para Paris e, depois, para Viena, Mozart procurou romper com aquelas condições. Representou, assim, o primeiro músico livre, que confiava acima de tudo em sua inspiração individual e procurava ganhar a vida dando aulas de piano, vendendo as partituras impressas de suas composições e organizando concertos para um público pagante e anônimo. Ora, devido à precariedade do mercado à disposição do compositor, que só amadureceria um pouco na época de Beethoven, Mozart perdeu a batalha e morreu prematuramente, esquecido e amargurado. O destino de Da Ponte foi muito diferente, mas pode ser compreendido à luz dessa transição do patronato para o mercado livre. Embora já existisse em toda a Europa um mercado editorial relativamente desenvolvido para o homem de letras, o poeta Lorenzo Da Ponte jamais apostou em seu gênio. Sua trajetória é exemplar por outras razões. Como se viu, a princípio viveu à sombra da Igreja. Em seguida, procurou avidamente um posto numa das mais luxuosas cortes da Europa e, ao obtê-lo, agarrou-se a ele com unhas e dentes, sempre ameaçado por inimigos implacáveis. Anos depois, ao cair em desgraça, desesperou-se a princípio, mas não demorou em se adaptar. Foi obrigado a mergulhar no mercado, não como gênio, mas aventureiro, que vende seu talento e vai vivendo como pode. Desse modo, primeiro trabalhou para um rico particular, depois para si mesmo, tentando de vários modos seu próprio negócio. O gênio e o aventureiro são figuras contemporâneas, que nem sempre aparecem do mesmo lado, mas às vezes se tornam solidárias. Os autores da ópera "Don Giovanni" não se posicionaram do mesmo modo diante do mercado, mas pode-se dizer que, ao escrever suas memórias, Lorenzo Da Ponte deixou-se levar por um impulso similar àquele que fazia Mozart confiar em sua inspiração individual. Cada um à sua maneira, ambos estavam reivindicando as singularidades de suas pessoas e contribuindo assim para a invenção da moderna mitologia em torno do artista e do escritor. De fato, durante o século 17 e parte do 18, o gênero memorialístico era essencialmente histórico e aristocrático (2). É como atores e testemunhas privilegiadas do reino de Luís 14 e da regência que o cardeal de Retz e o duque de Saint-Simon redigem suas memórias, publicadas respectivamente em 1717 e 1740-55. É como representantes de uma linhagem que um e outro falam, não para se entregar à introspecção e contar a história de uma formação pessoal. O romance, que experimentou um acelerado desenvolvimento no século 18, logo apoderou-se do gênero. Multiplicaram-se então as memórias fictícias, escritas por indivíduos de condição modesta, em todo caso por pessoas privadas, que se põem a contar a própria vida mediante uma narrativa retrospectiva, que mede o tempo decorrido e estima a experiência adquirida (para escolher exemplos entre outros, lembremos "La Vie de Marianne", de Marivaux, ou "Les Égarements de l'Esprit", de Crébillon). Esse pequeno desvio leva o gênero ao memorialismo plebeu do final do século, cujo grande modelo é "As Confissões", de J.-J. Rousseau (1782). O prestígio da linhagem cede definitivamente à ideologia do mérito pessoal: agora trata-se de relatar a formação de uma personalidade e convidar o leitor a estimar a distância entre o memorialista e suas origens. O indivíduo e sua história ganham o primeiro plano, e as memórias se transformam em "autobiografia", acentuando a infância e suas experiências fundadoras. O leitor reconhecerá com facilidade os mesmos traços nas "Memórias" de Da Ponte. As páginas sobre a infância são poucas, mas certeiras: retratam a desastrosa experiência das primeiras letras, com um professor rústico e despótico; a negligência paterna quanto à educação do menino que entretanto leu precocemente Metastasio; a ida para o seminário, o tardio aprendizado do latim, o primeiro exercício poético, o primeiro soneto admirado. Pode-se dizer que o leitor das "Memórias" é convidado a apreciar tanto a enorme distância que separa Emanuele Conegliano de Lorenzo Da Ponte quanto a persistência com que este -tantas vezes- dá a volta por cima e recomeça do zero, contando apenas com a força do talento. Da Ponte não tem o fôlego de Rousseau ou de Casanova, mas suas "Memórias" se parecem com os melhores romances realistas do século 18. Não se põem a exaltar o prazer, como as de Casanova e tampouco são torturadas como as de Jean-Jacques, embora tenham a obsessão pelos inimigos e o tom amargurado das "Confissões". Aliás, talvez Da Ponte tenha percebido esse parentesco e, por isso, trocou de tom no último volume, quem sabe para esquivar-se da imagem de ressentido. De todo modo, não tinha razões para sê-lo: foi não apenas libretista de Mozart, mas também seu parceiro e de tantos outros na invenção do artista e do escritor modernos. Notas 1. Elias, Norbert - "Mozart - Sociologia de um Gênio", Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1994, pág. 24; 2. Sobre as memórias, ver, por exemplo, os verbetes "Autobiographie", "Mémoires" e "Roman-Mémoires" in: Goulemot, Jean-Marie e outros, "Vocabulaire de la Littérature du 18e. Siècle", Paris, Minerve, 1996. Franklin de Matos é professor de estética no departamento de filosofia da USP, tradutor de Diderot e autor de vários ensaios sobre o século 18. Texto Anterior: Angela de Castro Gomes: Imaginário e poder Índice |
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