São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999
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O parceiro de Mozart

FRANKLIN DE MATOS

Em 1792, o poeta e libretista Lorenzo Da Ponte chegou a Praga a caminho de Paris. Perdera o emprego na corte de Viena, casara-se havia pouco em Trieste e ia tentar a sorte na capital francesa, como fizera antes dele Mozart, para quem escrevera várias óperas. Estava quase sem dinheiro e, por isso, foi ver um italiano (do Vêneto, como ele), velho conhecido dos tempos da Áustria, que estava nos arredores e lhe devia uma certa soma. A viagem foi inútil: a bolsa do amigo também andava à míngua e, em vez de dinheiro, Lorenzo obteve apenas alguns conselhos.
Aquele "extraordinário ancião", de boas maneiras e grande eloquência, que aliás causara profunda impressão na senhora Da Ponte, era Giacomo Casanova, célebre aventureiro que morreria dentro de poucos anos e naquele momento já começara a redigir suas "Memórias", publicadas entre 1822 e 1828. Quanto a Lorenzo, ainda viveria muito tempo e só escreveria as suas entre 1823 e 1827, certamente encorajado pelos exemplos de Casanova e tantos outros.

Cátedra e libertinagem
Emanuele Conegliano nasceu em Ceneda, hoje Vittorio Veneto, em 1749, de uma família judia, e morreu em Nova York, em 1838, com o nome de Lorenzo Da Ponte, emprestado ao bispo de Ceneda, que o convertera e batizara em 1763. Era o filho mais velho de um pequeno fabricante de couro, que sempre lutara com muita dificuldade e iria à ruína com a morte do bispo, protetor da família.
Desprovido de fortuna, Lorenzo logo compreendeu que teria de viver à sombra dos grandes e que suas chances seriam maiores se pudesse se distinguir pelas letras. Talvez por isso tenha entrado para o seminário, onde aprendeu -tardiamente, insiste ele- latim e italiano, foi tonsurado e tornou-se abade, podendo assim pretender aos benefícios da Igreja.
As "Memórias" cobrem com "as trevas do mistério" a vida eclesiástica de Da Ponte, ocultando, por exemplo, o momento em que a abandonou, do mesmo modo que não dizem uma só palavra sobre sua apostasia. O certo é que, estimulado pelas belezas de Dante e Petrarca, desde mocinho pôs-se a fazer versos italianos. Seu talento foi logo admirado, o que lhe valeu uma cátedra de retórica numa cidade próxima. Mas não ficou muito tempo no posto -partiu para Veneza, onde caiu na libertinagem, vivendo durante anos entre o jogo e as mulheres. Cansado dessa vida, voltou às aulas e assumiu o cargo de professor de letras latinas e italianas no seminário de Treviso. Fazia parte de seus deveres escrever composições sobre temas científicos, a serem recitadas pelos alunos ao fim do ano letivo. Numa delas, os inimigos de Da Ponte farejaram proposições ilustradas ou, quem sabe, rousseauístas. Denunciado, compareceu diante do Senado, cuja sentença o proibiu de "exercer o ofício de professor, leitor, preceptor, instrutor etc. etc. em qualquer colégio, seminário, universidade do sereníssimo domínio vêneto".
Impedido de ensinar publicamente, Lorenzo trabalhou como secretário e preceptor para duas casas da aristocracia veneziana. Um dia, quer devido ao soneto que prestava homenagem a um patrício malquisto pelos poderosos, como ele pretende, quer por causa de um adultério escandaloso, conforme outras fontes, Da Ponte foi denunciado ao "magistrado da Blasfêmia". A condenação era certa; antecipando-se a ela, abandonou Veneza.

Libretista e livreiro
Resolveu tentar a sorte primeiro em Gorízia, depois em Dresden, afinal em Viena. Aqui surgiu a chance de sua vida: José 2º, recém-coroado, decidiu reabrir um teatro italiano na cidade e precisava de um poeta oficial. Embora até então tivesse escrito apenas sonetos, odes ou epigramas, Da Ponte solicitou o cargo, calçado numa rede de proteções que incluía o prestígio do compositor Salieri. A aposta era decisiva, pois a ópera constituía o gênero poético-musical mais prezado na escala de valores da sociedade de corte. A audiência em que obteve o posto mostra tanto a ousadia do poeta quanto o enorme poder do seu patrono. Quantos dramas já compôs?, perguntou José a Lorenzo. Nenhum, respondeu este com franqueza. Teremos então "uma musa virgem", replicou sorrindo o soberano.
Assim começou a carreira do libretista que reinou em Viena durante dez anos seguidos, acossado pela inveja daqueles que lhe cobiçavam o lugar, mas felizmente amparado pela magnanimidade de José. Fazia um sucesso atrás do outro. Certa vez, compôs três óperas ao mesmo tempo: "Assur", para Salieri, "A Árvore de Diana", para Martín y Soler, e "Don Giovanni", para Mozart (é bom lembrar que escreveu ainda os libretos de "Così Fan Tutte" e "As Bodas de Fígaro").
Um dia, porém, o mundo desabou sobre Lorenzo. Morreu José 2º, sucedeu-o o irmão Leopoldo e os intrigantes indispuseram o poeta com o novo imperador. Da Ponte perdeu o cargo e foi convidado a deixar a capital e vizinhanças. Ficou em estado de prostração: parecia que o desfavor real o aniquilava.
Mas pôs-se outra vez a caminho à procura de trabalho. O momento era de novo decisivo: estava sendo levado a trocar o esplendor da corte por um mundo prosaico e muito mais feroz. Logo chegou a Trieste, onde deu um passo que somos tentados a julgar uma espécie de emblema dos novos rumos que estava tomando sua vida: casou-se com uma jovem inglesa, filha de comerciante, com a qual viveria o resto da vida. Resolveu então tentar a sorte em Paris, mas no meio do caminho tomou a direção de Londres, desencorajado com a notícia da prisão de Maria Antonieta.
Lorenzo Da Ponte chegou em Londres em 1792 e lá permaneceu até 1805. O teatro italiano da cidade não pertencia ao rei, mas a um particular de origem humilde, William Taylor, que enriquecera no negócio. Lorenzo trazia consigo a fama de suas óperas e acabou sendo nomeado para o cargo de poeta do teatro. Logo percebeu que o diretor não era José e que gostava mais da receita do que das musas. Mas pôs mãos à obra, mandou chamar Martin, refez a antiga parceria.
Entretanto acabou no meio das intrigas de duas cantoras rivais: esfriou com Martin, perdeu o velho amigo, sentia que o emprego andava por um fio. Talvez por isso tenha acabado por se familiarizar com Taylor e, para agradar-lhe, endossou uma porção de notas promissórias aceitas pelo patrão. Bem que Casanova lhe dissera para nunca assinar seu nome em Londres! Logo teve em seu encalço um bando de agiotas, esbirros e advogados inescrupulosos. Encarcerado, foi à bancarrota para pagar as dívidas. Ganhou o oposto do que esperava: Taylor demitiu-o.
Mas Da Ponte reuniu forças para recomeçar do zero: tornou-se livreiro e tipógrafo, trabalhando com obras italianas. O negócio já prosperara enormemente, quando os credores de Taylor voltaram à carga. Lorenzo tentou resistir, mas havia uma dezena de mandados de prisão contra ele. Nada a fazer senão fugir de novo, agora para a América, onde a mulher e os filhos o aguardavam.

A OBRA
Memórias Lorenzo Da Ponte Tradução: Vera Horn Lacerda Editores (Tel. 021/537-7189) 432 págs., R$ 45,00



Chegou a Nova York em 1805. Para encurtar a história, nos seus 30 e tantos anos de América, tentou até se tornar comerciante de especiarias na Pensilvânia, mas foi com seu trabalho intelectual que sobreviveu e sustentou a família: retomou o negócio dos livros e ensinou língua e literatura italianas para a elite de Nova York.

O gênio e o aventureiro
A biografia de Lorenzo Da Ponte não tem os mesmos lances teatrais que marcaram a vida de Casanova, mas revela um personagem similar. Os dois se parecem em várias coisas: tentaram a vida eclesiástica; foram "confidentes" -quer dizer, espiões- a serviço de Veneza (e calaram-se sobre o tema em suas "Memórias"); viram-se obrigados a deixar às pressas várias cidades em que viveram (entre 1759 e 1771, contam-se 11 expulsões na vida de Casanova!). Mas há algo mais decisivo: tanto um quanto o outro encarnam uma figura típica do século 18, o aventureiro das letras, que se desloca incessantemente à procura de trabalho e põe seu talento a serviço de um príncipe, um ministro ou um rico particular.
O aventureiro fascina e inquieta, explicam os historiadores, porque sua mobilidade anuncia o fim de uma sociedade rigidamente hierarquizada. Para bem compreender essa figura, não custa ter presente as mudanças nas relações entre o homem de letras (ou o artista) e a vida social.
Nesse sentido, o caso de Mozart é muito instrutivo. Num livro célebre, Norbert Elias argumenta que o desfecho trágico da vida de Mozart, que morreu abandonado pelo público vienense, pode ser explicado em pouquíssimas palavras: Mozart foi "um gênio antes da época dos gênios" (1). Na Alemanha e na Áustria do século 18, se quisesse sobreviver, o músico tinha de obter um posto na rede das instituições da corte e seguir os padrões de gosto da audiência, socialmente superior a ele. Ao deixar Salzburgo -onde vivia a serviço do príncipe-arcebispo-, em 1777 e 1781, seguindo primeiramente para Paris e, depois, para Viena, Mozart procurou romper com aquelas condições. Representou, assim, o primeiro músico livre, que confiava acima de tudo em sua inspiração individual e procurava ganhar a vida dando aulas de piano, vendendo as partituras impressas de suas composições e organizando concertos para um público pagante e anônimo. Ora, devido à precariedade do mercado à disposição do compositor, que só amadureceria um pouco na época de Beethoven, Mozart perdeu a batalha e morreu prematuramente, esquecido e amargurado.
O destino de Da Ponte foi muito diferente, mas pode ser compreendido à luz dessa transição do patronato para o mercado livre. Embora já existisse em toda a Europa um mercado editorial relativamente desenvolvido para o homem de letras, o poeta Lorenzo Da Ponte jamais apostou em seu gênio. Sua trajetória é exemplar por outras razões. Como se viu, a princípio viveu à sombra da Igreja. Em seguida, procurou avidamente um posto numa das mais luxuosas cortes da Europa e, ao obtê-lo, agarrou-se a ele com unhas e dentes, sempre ameaçado por inimigos implacáveis. Anos depois, ao cair em desgraça, desesperou-se a princípio, mas não demorou em se adaptar. Foi obrigado a mergulhar no mercado, não como gênio, mas aventureiro, que vende seu talento e vai vivendo como pode. Desse modo, primeiro trabalhou para um rico particular, depois para si mesmo, tentando de vários modos seu próprio negócio.
O gênio e o aventureiro são figuras contemporâneas, que nem sempre aparecem do mesmo lado, mas às vezes se tornam solidárias. Os autores da ópera "Don Giovanni" não se posicionaram do mesmo modo diante do mercado, mas pode-se dizer que, ao escrever suas memórias, Lorenzo Da Ponte deixou-se levar por um impulso similar àquele que fazia Mozart confiar em sua inspiração individual. Cada um à sua maneira, ambos estavam reivindicando as singularidades de suas pessoas e contribuindo assim para a invenção da moderna mitologia em torno do artista e do escritor.
De fato, durante o século 17 e parte do 18, o gênero memorialístico era essencialmente histórico e aristocrático (2). É como atores e testemunhas privilegiadas do reino de Luís 14 e da regência que o cardeal de Retz e o duque de Saint-Simon redigem suas memórias, publicadas respectivamente em 1717 e 1740-55. É como representantes de uma linhagem que um e outro falam, não para se entregar à introspecção e contar a história de uma formação pessoal.
O romance, que experimentou um acelerado desenvolvimento no século 18, logo apoderou-se do gênero. Multiplicaram-se então as memórias fictícias, escritas por indivíduos de condição modesta, em todo caso por pessoas privadas, que se põem a contar a própria vida mediante uma narrativa retrospectiva, que mede o tempo decorrido e estima a experiência adquirida (para escolher exemplos entre outros, lembremos "La Vie de Marianne", de Marivaux, ou "Les Égarements de l'Esprit", de Crébillon).
Esse pequeno desvio leva o gênero ao memorialismo plebeu do final do século, cujo grande modelo é "As Confissões", de J.-J. Rousseau (1782). O prestígio da linhagem cede definitivamente à ideologia do mérito pessoal: agora trata-se de relatar a formação de uma personalidade e convidar o leitor a estimar a distância entre o memorialista e suas origens. O indivíduo e sua história ganham o primeiro plano, e as memórias se transformam em "autobiografia", acentuando a infância e suas experiências fundadoras.
O leitor reconhecerá com facilidade os mesmos traços nas "Memórias" de Da Ponte. As páginas sobre a infância são poucas, mas certeiras: retratam a desastrosa experiência das primeiras letras, com um professor rústico e despótico; a negligência paterna quanto à educação do menino que entretanto leu precocemente Metastasio; a ida para o seminário, o tardio aprendizado do latim, o primeiro exercício poético, o primeiro soneto admirado. Pode-se dizer que o leitor das "Memórias" é convidado a apreciar tanto a enorme distância que separa Emanuele Conegliano de Lorenzo Da Ponte quanto a persistência com que este -tantas vezes- dá a volta por cima e recomeça do zero, contando apenas com a força do talento.
Da Ponte não tem o fôlego de Rousseau ou de Casanova, mas suas "Memórias" se parecem com os melhores romances realistas do século 18. Não se põem a exaltar o prazer, como as de Casanova e tampouco são torturadas como as de Jean-Jacques, embora tenham a obsessão pelos inimigos e o tom amargurado das "Confissões". Aliás, talvez Da Ponte tenha percebido esse parentesco e, por isso, trocou de tom no último volume, quem sabe para esquivar-se da imagem de ressentido. De todo modo, não tinha razões para sê-lo: foi não apenas libretista de Mozart, mas também seu parceiro e de tantos outros na invenção do artista e do escritor modernos.

Notas 1. Elias, Norbert - "Mozart - Sociologia de um Gênio", Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1994, pág. 24;
2. Sobre as memórias, ver, por exemplo, os verbetes "Autobiographie", "Mémoires" e "Roman-Mémoires" in: Goulemot, Jean-Marie e outros, "Vocabulaire de la Littérature du 18e. Siècle", Paris, Minerve, 1996.


Franklin de Matos é professor de estética no departamento de filosofia da USP, tradutor de Diderot e autor de vários ensaios sobre o século 18.


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